Minha primeira incursão de pesquisa sobre música e cultura pop na área de história ocorreu ainda em 2016, quando cursava uma disciplina sobre “História e Oralidade”, ainda na graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Na época fomos convidados/as pela professora ministrante da disciplina, a Profa. Dra. Márcia Ramos de Oliveira, a produzir uma reflexão a respeito das oralidades como forma de narrativa através de canções e/ou do registros fonográficos. Partindo da proposta desenvolvi uma reflexão, ainda que inicial mas que para mim foi muito significativa no contexto, sobre as diferentes representações do(s) feminino(s) elaboradas a partir da canção música NØ, da cantora Meghan Trainor.
Embora tenha sido meu primeiro movimento de pesquisa na área, por ser um trabalho final de disciplina, não me aprofundei suficientemente (em especial em função do tempo disponível no contexto) nas múltiplas discussões possíveis tendo, o trabalho resultado muito mais em um ensaio, partindo de um estudo de caso específico. Contudo foi o suficiente para despertar uma maior curiosidade, aliada a um senso crítico e reflexivo, acerca do campo da “cultura pop”, em especial da música, como possibilidade de pesquisa historiográfica. Campo que resolvi me enveredar em 2017, quando iniciei o mestrado em história, com área de concentração da História do Tempo Presente, na mesma instituição em que me graduei, sob orientação da Profa. Dra. Márcia Ramos de Oliveira. Inicialmente meu projeto visava discutir as diferentes formas de apropriação e usos do passado mobilizados na escrita sobre a história da música pop em portais brasileiros a partir de dois grupos específicos: o girlgroup Fifth Harmony (Estados Unidos e a banda 5 Seconds of Summer (Austrália).
Na proposta inicial, o foco do projeto transitava pelos campos dos estudos sobre memória, história pública, usos do passado, mídias e história digital, áreas que vinha trabalhando desde a graduação. Porém, como já é consolidado na área de história (e nas ciências humanas e sociais), apesar da pesquisa se basear em referenciais teóricos, instrumentos heurísticos, metodologias a serem aplicadas, e de documentos localizados ela é tudo exata, e os resultados apesar de formarem hipóteses iniciais são impossíveis de controlar.
Logo nos primeiros passos da pesquisa, nas primeiras semanas para ser mais preciso, meu mapeamento da documentação me levou a perceber um processo bastante curioso a respeito de uma dar artistas que por algum tempo integrou o grupo Fifth Harmony: o lançamento de duas canções consideradas como “pop latino” pela cantora Camila Cabello. Particularmente uma destas músicas, nomeada Havana, me chamou a atenção pelas representações das relações entre Estados Unidos e Cuba elaboradas em sua narrativa, aliado a uma “surpresa” com o que depois vim a entender como guinada latina na carreira de Camila Cabello. Logo que comecei esse “estranhamento” com a questão procurei minha orientadora que me provocou ao afirmar que “tinha algo de interessante ali e se eu teria interesse em observar um pouco pelos próximos dias”. Não foi preciso nem mesmo uma semana e já havíamos decidido: eu iria realizar um novo recorte na pesquisa, que veio a mudar completamente sua proposta, e passaria a trabalhar com a trajetória artística de Camila Cabello entre 2012 e 2018, com ênfase nos processos artísticos e midiáticos envolvidos, nos embates de memória e na elaboração de determinadas representações.
Apesar da opção por mudar o projeto ter tido talvez uma das decisões mais fáceis que tomei no andamento do mestrado, a sua recepção foi bastante diversa. Para alguns eu estava deixando de trabalhar com “história” para caminhar pelo lado da comunicação; Outros me encorajavam a mergulhar pelas teias que compõem nossa indústria fonográfica; Algumas vezes me questionaram os motivos de estudar uma música “estrangeira”, e principalmente “comercial” ao invés de gêneros como a MPB ou o Samba no Brasil. Em vários momentos tive sugestões e recepções positivas e calorosas, em outros nem tanto. Em resumo, meu tema por onde ia despertava debates que me levaram a um movimento constante de recuperar energias ou me questionar se valia a pena continuar investindo na área. Acredito, dialogando com alguns colegas, que esse tipo de repercussão ocorra em todas as áreas, mas em alguns temas as críticas são mais direcionadas a não legitimidade do trabalho que é desenvolvido. Foram raros os casos em que isso ocorreu, mas fico feliz que tenham acontecido.
Se aventurar a pesquisar temas como “cultura pop” ou “música pop” na área de história é um campo arenoso. Em contraposição essa área de pesquisa/estudos, ao menos no Brasil, já é consolidada em disciplinas como a comunicação social e os estudos de mídias. Nesse sentido, existe uma visão pré-determinada que tal tema deve ser preferencialmente abordado pelos estudos no campo da área de ciências sociais aplicadas. Essa mesma perspectiva ocorria no país quando se iniciaram os primeiros movimentos que tomaram a música como fonte de pesquisa para o historiador, documentação que era geralmente considerada como trabalho para musicólogos e etnomusicólogos (NAPOLITANO, 2016).
Contudo, as reflexões da História Cultural e, mais recentemente da História do Tempo Presente, contribuem diretamente na problematização de fontes do cotidiano e de nossa contemporaneidade possibilitando o que Henry Rousso (2016) nomeou de “desaceleração da marcha do tempo”. Propor o estudo da música, e cultura, pop significa historicizar parte da sociedade contemporânea que muitas vezes consome esse gênero musical em espaços públicos como lojas, cafés, festas ou rádios sem perceber ou, ainda que perceba, naturalize todo um sistema de produções simbólicas, projetos de marketing e estratégias de consumo que influência na constituição de identificações no presente.
Apesar de ser um gênero majoritariamente estadunidense a canção definida como pop é ampla, sendo sua melhor definição a ideia de uma música popular-midiática, o que a diferencia da própria ideia de música popular (geralmente associada ao folclore) (SOARES, 2015), e também a afasta de uma ideia pré-concebida de características limitadoras, mesmo que a presença do piano eletrônico ser um elo comum nas composições. Desde sua emergência como gênero, nas décadas de 1960 e 1970, a música considerada como pop é demonstrativa da ideia de hibridez presente nas obras de arte discutidas por Canclini (2015) ao articular línguas, sonoridades, instrumentos, imagens e representações múltiplas e, em alguns casos até mesma contraditórias.
Em meio a essa complexidade, além de produzir representações, a cultura pop é também responsável pela criação de movimentos de identidades, por articular projetos sociais e políticos, por mobilizar parte considerável da indústria cultural contemporânea, que muitas vezes reivindicam determinadas visões e/ou usos do passado. A cantora Madonna foi fundamental nesse contexto, como citado na coluna do mês de julho/2019, assim como artistas a exemplo de Gloria Estefan e Camila Cabello contribuem(iram) na construção de determinadas visões sobre a migração e a américa caribenha.
Mais do que ficar argumentando as bases teóricas ou a relevância de tal temática para a historiografia, gostaria de concluir a coluna deste mês destacando algumas possibilidades de pesquisa na área, questões que me ocorreram no decorrer destes dois anos e que pretendo seguir debatendo no doutorado estou iniciando na mesma instituição em que cursei o mestrado. As reflexões teóricas, assim como uma tentativa de uma história da historiografia da música pop serão retomadas em colunas futuras, como tem sido feito desde que comecei a publicar na HH Magazine, pois acredito que nesse primeiro momento de discussão sobre o campo, pensar em possibilidades convida a refletir sobre abordagens, levando a discussão conceitual e teórica.
- As relações entre indústria cultural, consumo e identificações na música pop;
- A trajetória artística, social e política dos artistas de música pop;
- Os usos da música pop pela indústria fonográfica e cultural;
- As relações entre cultura pop, moda e processos de construção do “eu”;
- Narrativas, usos do passado e representações elaboradas pelas canções, videoclipes e performances artísticas;
- Construções discursivas, relações de poder e criação de estereótipos;
- Gênero, colonialidade e manifestações artísticas na indústria da música pop;
- Redes sociais, mídia e práticas de sociabilidade na construção do campo entre os séculos XX e XXI.
- Materialidades, Marketing e produção de mercado;
- Biografias, Cinebiografias e culturas públicas/privadas na construção dos artistas;
Esses foram apenas alguns casos ou campos possíveis, porém estudar música pop é tão complexo e amplo como estudar qualquer gênero como samba, MPB ou rock (tema que tem crescido nas pesquisas historiográficas). A um primeiro olhar talvez eles não pareçam dialogar diretamente com perspectivas historiográficas, mas são eixos gerais que vão se adaptar a estudos de casos, realidades ou propostas diferentes. O que se tentou destacar foi a pluralidade de temáticas e possibilidades, visando estimular o debate e o diálogo em torno desse campo de estudos e pesquisa.
REFERÊNCIAS
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. 4. ed. 7 reimp. São Paulo: Edusp, 2015.
NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. 3. ed. rev. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
ROUSSO, Henry. A Última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2016.
SOARES, Thiago. Percursos para estudos sobre música pop. In: SÁ, Simone Pereira de; CARREIRO, Rodrigo; FERRARAZ, Rogério (Orgs.) Cultura Pop. Salvador: EDUFBA; Brasilia: Compós, 2015.
Créditos na imagem: Cena do videoclipe de Havana, de Camila Cabello. Foto: Reprodução/YouTube.
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Igor Lemos Moreira
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