SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. Tradução de Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007

 

Capa do livro Tempo Passado de Beatriz Sarlo

 

Nesse livro de ensaios, cuja edição original foi lançada em 2005 pela editora espanhola Siglo XXI e publicado no Brasil dois anos depois em uma parceria da Companhia das Letras com a Editora da UFMG, a jornalista, escritora, professora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo (1942), apresenta considerações acerca dos variados aspectos referentes ao chamado boom da memória, principalmente àquela relacionada à algumas experiências traumáticas e sensíveis (como as ditaduras de segurança nacional vigentes no Cone Sul entre as décadas de 1960 a 1980) que tanto caracterizaram o século passado.

O capítulo inicial, “Tempo Passado”, começa logo com a constatação de que as interpretações do passado são disputadas entre a memória e a história. Em linhas gerais, pode-se estabelecer uma distinção entre essas duas formas de representação do passado de acordo com os seguintes critérios: enquanto a primeira seria o reduto das experiências afetivas dos sujeitos que lembram, a segunda seria marcada pelo distanciamento, pelo exercício da criticidade, pela aprovação externa (e não pela busca de auto identidade) e pela condição de alteridade dos tempos idos. O antropólogo Jöel Candau sintetiza essa condição exposta acima: “Ora, a memória, com frequência, recusa calar-se. Imperativa, onipresente, invasora […] é comum evocar que seu império se deve à inquietude dos indivíduos e dos grupos em busca de si mesmos.” (CANDAU, 2011, p.125).

Dando sequência na exposição sobre os embates entre a história profissional e as formas menos formais e institucionalizadas de construção de sentido para um passado recente, a autora aponta que nas últimas décadas (a despeito do que se esperava de tempos “pós-modernos”, que aparentemente iriam relegar o pretérito à um plano secundário) há uma enorme demanda social pelos “lugares de memória” e os romances e filmes com pano de fundo histórico destinados ao grande público proliferam. Tais obras se orientam de acordo com as marcas do presente e das expectativas de seus consumidores.

Entre essas produções realizadas fora do ambiente acadêmico estão muitos dos escritos amparados em testemunhos referentes ao período das ditaduras militares no Cone Sul. Essa preponderância do “eu” encontra sua justificativa na “guinada subjetiva”, isto é, em uma mudança epistemológica que ocorreu no interior das ciências humanas nos anos de 1970 e 1980. No lugar das estruturais econômicas e socais, houve a revalorização da experiência pessoal e do ponto de vista subjetivo e “nesse sentido, as prerrogativas do testemunho se apoiam na visibilidade que o pessoal adquiriu como lugar não simplesmente de intimidade, mas de manifestação pública” (SARLO, 2007, p. 20-21). A história oral e as narrativas autobiográficas tornaram-se fontes e objetos legítimos para a análise histórica, uma vez que as memórias, especialmente as de acontecimentos traumáticos, para além de uma dimensão particular, possuem um conteúdo eminentemente político e se contrapõem às políticas de esquecimento.

E é justamente na denúncia ao esquecimento que surge o slogan “Nunca Mais”, que insiste na condição pedagógica da lembrança. A importância dos relatos das vítimas contidos nesse movimento do “Nunca “Mais” está no fato de que eles não apenas se tornaram fontes imprescindíveis para a historiografia das ditaduras, mas também foram o principal elemento pelo qual os processos judiciais contra os agentes estatais e particulares responsáveis pelas graves violações de direitos humanos pudessem existir.

Em síntese, trabalhar sobre as memórias produzidas no contexto das ditaduras de segurança nacional instaladas no Cone Sul durante os anos 1960/1970 é uma atividade fundamental na compreensão das disputas em torno do quê e de como se deve lembrar (ou esquecer) desse passado sensível. Conforme aponta a autora em questão, disputas entre as interpretações do passado não se dão apenas entre a memória e a história acadêmica, mas a própria memória é um espaço de querela. A autora assinala que no caso dos regimes autoritários no subcontinente tais embates ocorrem justamente entre os que aderem os valores do “Nunca Mais” e os que relativizam, justificam e até mesmo negam as atrocidades cometidas em nome da “segurança nacional”.

Os dois próximos capítulos, “Crítica do Testemunho: Sujeito e Experiência” e “A Retórica Testemunhal”, tratam sobre as condições nas quais o testemunho pode emergir. Para ilustrar os impasses que fazem parte do ato de lembrar, Sarlo reporta-se ao ensaio “O Narrador: Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin. Neste texto, o filósofo alemão expõe que a Primeira Guerra induziu o fim do relato. O conflito entre as potências europeias liquidou a experiência, na medida em que as formas tradicionais de depoimento simplesmente não eram suficientes para descrever o horror das trincheiras. Nesse sentido, tanto Beatriz Sarlo quanto Walter Benjamin concordam que a experiência, para se configurar como tal, precisa ser comunicável. No entanto, a escritora argentina argumenta que apesar de toda a carnificina produzida na Primeira Guerra, esse não foi um evento que rompeu com a elaboração dos testemunhos. O que se observa é justamente o fenômeno oposto. Após a Segunda Guerra, os discursos memorialísticos em diferentes formatos e linguagens (literatura, artes plásticas, cinema, obras jornalísticas…) ganharam a atenção da esfera pública.

Um desses discursos cuja matéria prima é a memória, consiste nas narrativas dos sobreviventes do Holocausto. O genocídio dos judeus foi um caso-limite, e dessa forma os relatos sobre os campos de concentração como Auschwitz,

“[…] são uma exceção sobre a qual é complicado (quase impróprio) exercer o método historiográfico […] O testemunho do Holocausto se transformou em um modelo testemunhal. O que significa que um caso-limite transfere suas características a casos não-limites […] a idéia de que sobre um tipo de testemunho seja difícil, quando não impossível, exercer o método crítico da história significa uma restrição que diz respeito não a suas funções sociais ou judiciárias, mas a seus usos historiográficos […] O testemunho, por sua auto-representação como verdade de um sujeito que relata a sua experiência, exige não ser submetido às regras que se aplicam a outros discursos (SARLO, 2007, p. 37-38)

 

Na metade da década de 1980, dois debates que colocaram as memórias das vítimas do autoritarismo em evidência ocorreram simultaneamente: as transições democráticas na Argentina, Chile, Uruguai e Brasil e o surgimento das teses revisionistas/negacionistas da Shoah na Europa. Durante ambos os processos, o “dever de memória” foi amplamente evocado para se contrapor às ações que buscavam suavizar e até mesmo apagar os rastros da violência. Essa aproximação entre o Holocausto e as ditaduras na América Latina é possível se seguirmos a noção de “uso exemplar” utilizada por Todorov (2000). Essa categoria não nega as particularidades de um certo passado, mas a partir de um evento específico instrumentaliza-se um modelo de compreensão para situações semelhantes, permitindo analogias e comparações.

No entanto, o historiador ou cientista social precisam manter uma postura disciplinar mesmo diante do tom afetivo e moral do “dever de memória” e fazer do seu ofício, conduzido pelo rigor teórico e metodológico, uma forma de elucidar aspectos de eventos traumáticos a partir de um olhar um pouco distante e crítico, mas também empático diante das dores e exigências legítimas das vítimas. Mas apesar de tal distanciamento, Jeanne Marie Gagnebin complementa as observações da Beatriz Sarlo, apontando as funções ética e política implicadas no árduo trabalho do historiador que se debruça sobre processos que beiram os casos-limites e que apresentaram um grau de violência extremo:

 

O historiador atual se vê confrontado com uma tarefa essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável […] Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética […] as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos e a cavar um túmulo para aqueles que foram privados” (GAGNEBIN, 2006, p.55)

 

No quarto capítulo, “Experiência e Argumentação”, Sarlo apresenta dois textos que se referem ao cárcere na ditadura argentina, escritos de acordo com os cânones acadêmicos e impessoais. Trata-se de “La Bemba” do sociólogo Emilio de Ípola e “Poder y Desaparacíon: Los Campos de Concentracíon en Argentina” da cientista política Pilar Calveiro. Uma marca interessante desses textos é o fato de que apesar dos seus autores terem sidos encarcerados, o tom que eles escolhem é da ordem do conhecimento disciplinar. Propositalmente, eles colocam a primeira pessoa em uma dimensão secundária e privilegiam as operações intelectuais em detrimento do “eu”. Os exemplos supracitados demonstram os impasses de pessoas que lidaram a repressão a partir de uma dupla condição: vítimas, mas também analistas profissionais de regimes ditatoriais.

O capítulo seguinte, “Pós-Memória, Reconstituições” trata do conceito de “pós-memória”. Em linhas gerais, essa categoria pode ser entendida como uma lembrança daquilo que não se viveu. É uma definição que busca explicar como se constrói uma identidade a partir de um passado que não fez parte da experiência pessoal, sendo, via de regra, a memória dos filhos sobre a memória dos pais. Os teóricos da pós-memória apontam duas características que justificariam a validade dessa categoria: a transmissão entre duas subjetividades (as das testemunhas oculares e os seus descendentes) e o seu caráter vicário ou mediado.

Beatriz Sarlo contesta essas especificidades defendidas pelos que sustentam a utilização do termo em questão. Em primeiro lugar, ela argumenta que as recordações dos filhos não constituem de fato uma memória no sentido estrito da palavra, visto que a princípio, a memória de alguém acompanha a trajetória da sua vida. No lugar de pós-memória, Sarlo propõe que se utilize uma acepção menos problemática: “memória de segunda geração”, isto é, uma elaboração de um sentido para um certo evento que não é produzida a partir da experiência, mas através dos registros de autoria dos outros. Em segundo, como já foi exposto acima, o nosso contato (direto ou indireto) com os tempos idos é mediado por análises alheias. Dessa maneira,

 

se o passado não foi vivido, seu relato só pode vir do conhecido através de mediações; e, mesmo se foi vivido, as mediações fazem parte desse relato […] A pós-memória […] seria a reconstituição memorialística de fatos recentes não vividos pelo sujeito que os reconstitui […] Mas mesmo caso se admita a necessidade da noção de pós-memória para descrever a forma como um passado não vivido, embora muito próximo, chega ao presente, é preciso admitir também que toda experiência do passado é vicária, pois implica sujeitos que procuram entender alguma coisa colocando-se […] no lugar dos que a viveram de fato […] O vicário não é específico da pós-memória. (SARLO, 2007, p.93/94, grifos da autora)

 

Por fim, o capítulo final, “Além da Experiência”, que é uma espécie de conclusão, a autora retoma alguns dos pontos relativos aos desafios postos pela narrativa em primeira pessoa desenvolvidos nos capítulos anteriores: as manifestações da memória são imprevisíveis, dispensam o arcabouço metodológico e se legitimam nas demandas do espaço público. Em suma, se pode afirmar que embora a autora mencione as utilizações e consequências jurídicas dos relatos daqueles que foram vitimados pelos diversos mecanismos repressivos (censura, exílio, torturas, desaparecimento…), típicos de regimes de exceção, o cerne da sua análise consiste em apontar os problemas que os historiadores e cientistas sociais lidam diante dessa explosão dos discursos memorialísticos que possuem como pano de fundo a violência política recente.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CANDAL, Joël.  Memória e Identidade.  Tradução de Maria Leticia  Ferreira.  São Paulo: Contexto, 2011

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. Tradução de Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007

TODOROV, Tzvetan. Los Abusos de la Memoria. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2000

 

 

 

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