O apaziguamento da diferença, a impossibilidade da alteridade e/ou duas experiências no Pelourinho: uma crônica-resenha sobre “Agonia do Eros”, de Byung-Chul Han.

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O semblante de Byung-Chul Han diz muito sobre uma postura a ser adotada para nos defrontarmos com os diagnósticos que o autor apresenta em “Agonia do Eros” (2017). Observar o filósofo sul-coreano, que fez carreira na Alemanha e se destaca como um dos grandes ensaístas da contemporaneidade é, provavelmente, um primeiro exercício para mergulharmos em sua filosofia ensaística. A serenidade de seu rosto, o olhar perdido e a postura melancólica de filósofo, a lá monge budista (inerente ao pedestal que tendemos a alçar os grandes pensadores) ou personagens de filmes de kung fu orientais (dado a áurea pop que seus leitores vêm construindo em torno de sua figura), nos remetem a uma outra temporalidade, a uma outra possibilidade de lidarmos com a compressão do espaço-tempo de uma economia globalizada, ou melhor, de questionarmos a máxima capitalista Time is Money.

As palavras de Han nos passam a sensação de que o filósofo se encontra, a todo o momento, meditando em seu Jardim Secreto como forma de buscar a transcendência na imanência, de sentir o peso das coisas reais (ainda que doloridas), buscando se distanciar daquilo que nomeia como Mero Viver. Grosso modo, esse seria um modo de inteligibilidade social dominante nos dias de hoje, estruturado na produtividade neoliberal que, ao nos seduzir com a falsa promessa de uma vida bem-sucedida, nos demanda o ganho de espólios espúrios, levando-nos, em consequência, a um empreendedorismo de si, auto-exploração e auto-cobrança, elementos característicos daquilo que Han nomeia como Sociedade do Desempenho – uma intensa busca pela realização pessoal e obtenção de sucesso – que tem na depressão seu principal sintoma. O filósofo parece dizer que, se anteriormente, numa sociedade do controle, nos termos de Foucault, as instituições exerciam seu poder no sentido de domesticar nossos corpos, na sociedade do desempenho, de relações extremamente racionalizáveis, mediadas pela técnica e que se dão no cálculo de lucros, viramos todos escravos de nós mesmos. O que seria o frisson em torno dos coachings senão isso?  Nada mais narcisista.

Para o filósofo, a radicalização do empreendedorismo de si causa a narcisificação do sujeito que, ao não ter mais capacidade de se defenestrar, de olhar para o lado e se lançar ao outro, corrompe o amor. O problema é que hoje, segundo Han, esse cenário se estabelece como configuração dominante da vida, calcada no consumismo, na positividade do inferno do igual, na espetacularização dos corpos, na assepsia dos objetos e dos espaços.

Certa vez, na casa de minha avó, uma mulher (que por coincidência malograda do destino é minha tia) contava sobre sua primeira experiência turística em Salvador (BA), oportunizada por essas empresas de turismo como a CVC. Lembro de ela dissertar sobre seu desconforto com o Pelourinho. “Não é nada daquilo que a gente vê na televisão. É um lugar sujo, com gente estranha. Me decepcionei muito e até hoje me arrependo de ter ido lá…”. Quanto preconceito em um comentário! A violência daquelas palavras não permitiu que eu ficasse calado. Obviamente, retruquei. Tentei mostrar a ela que era exatamente aquilo que fazia do Pelourinho, Pelourinho. Que era a negatividade do Pelourinho que tinha me encantado. Que naquele espaço cheio de vida me permiti deambular por suas ruas e seus convidativos becos. Que em seus bares tive a oportunidade de degustar o cravinho (bebida de dose muito doce, porém gostosa), apesar de muito diferente da cachaça mineira que aprecio. Que ali, assim como em vários outros lugares, me abri para a conversa com aqueles tantos outros que por lá estavam (especialmente o dono de um boteco que me foge à memória) e sorvi, numa cupidez erótica, o saboroso sotaque baiano, muitas vezes somente para ouvir a palavra amor, usual nas relações sociais da cidade, seja diante de conhecidos ou não. “Moça, traz uma cerveja para mim, por favor? ”, Claro, amor.”. De nada adiantou…

No pensamento de Han, a palavra amor não se limita à paixão dos enamorados, nem à impossibilidade platônica da relação com aquele que gostamos, mas precisa ser estendida ao campo da negatividade, da cupidez ou erotismo, isto é, como dispositivo afetivo que nos despossui na presença do outro atópico, “desse outro que não pode ser abarcado pelo regime do eu[1]”. Desse modo, um permitir ser-se na presença do outro, ou, segundo Han (2018, p.103) “ ‘deixasse estar’, confirmando-o em sua alteridade, em seu ser assim”, um “sim ao assim que se chama amistosidade”, o que para o autor não consistiria em uma relação de passividade com o outro, mas dialógica, ativa e “participante em seu ‘ser assim[2]’ ”.

Como um filósofo, talvez, da destruição, ou melhor, que só encontra solução para a problemática que ele apresenta em “Agonia do Eros” na aceleração da produção capitalista, crendo que, a partir dessa, ele se autodestruirá, Byung-Chul Han faz um exercício de análise da sociedade em sua obra, anunciando que não há como vivenciarmos uma experiência erótica verdadeira, uma abertura radical ao outro em sua alteridade, posto que estamos “constantemente comparando tudo com tudo, e com isso nivelamos tudo ao igual, porque perdemos de vista justamente a experiência da atopia do outro[3]” pelo fato de o deslumbramento consumista ter-nos impossibilitado de enxergar o outro que espreita. Se há diferenças, são diferenças reificadas, consumíveis e apaziguadoras, a exemplo da viagem da mulher a Salvador ou do modo como determinadas pautas identitárias vêm sendo consumidas pelo mercado. “Hoje a negatividade está desaparecendo por todo o lado. Tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo[4]”, vaticina Han. Por isso a necessidade de nos travestirmos com a roupa da cupidez erótica para vencermos a depressão.

Capa do livro Agonia do eros de Byung-Chul Han

Reverenciando o pensamento de Han, identifico nele um hiato, um certo espaço que o diagnóstico de “Agonia do Eros” não alcança (ao menos para problematizarmos o Brasil de hoje). Explico: a ideia de inferno em Han, vincula a impossibilidade da experiência atópica ao estabelecimento do apaziguamento das diferenças por meio do consumismo neoliberal. Em nosso contexto político, o inferno do igual parece se dar de uma outra maneira. Talvez não só pelo consumo (ou extrapolando o consumo), mas através de um paradigma de se exercer o poder – ainda que, de certa forma, ancorado no poderio econômico – que elimina o diferente, sobretudo aquele que não pode ou não quer se enquadrar em um “igual dominante”. Assim, olhar para o Brasil de Bolsonaro demanda um semblante não tão sereno como o de Han, mas com a certeza de que aqui, a impossibilidade da cupidez erótica estaria não só no nivelamento dos sujeitos ao império do igual pelo viés do consumo, mas na indiferença, na intolerância (lembrando que para Han, a tolerância é a única experiência dialógica que a sociedade do desempenho permite com relação ao outro) e na eliminação do outro, apreendido como objeto intrusivo, como aquele que invade um espaço antes intocável, ou determinado sistema de crenças, cujo gozo faz crescer em parte importante da sociedade uma vontade de morte, menos como pulsão do que como barbárie.

 

 

 


REFERÊNCIAS

HAN, Byung-Chul. Agonia do eros. Petrópolis: Vozes, 2017.

_____. Topologias da violência. Petrópolis: Vozes, 2018.

 

 

 


NOTAS

[1] (HAN, 2017, p. 8).

[2] (HAN, 2018, p.103).

[3] (HAN, 2017, p.9).

[4] (HAN, 2017, p.9).

 

 

 


Créditos na Imagem:  Byung-Chul Han. Imagem: Reprodução.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Saulo Rios

Mestre em Comunicação e Temporalidades pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto, é jornalista, assessor de comunicação e pesquisador do grupo de pesquisa Quintais: cultura da mídia, arte e política (PPGCOM|UFOP).

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