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Um ato de fé exige sempre grandes sacrifícios?
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Um ato de fé exige sempre grandes sacrifícios? 

Na parte VI do livro Os carrascos voluntários de Hitler, Daniel Goldhagen busca responder as seguintes questões: o que motivou os alemães a matar brutalmente os judeus? Como essa motivação foi engendrada? E por que muitos alemães, mesmo quando não tinham ordens específicas para fazê-lo, tomavam a iniciativa de matar judeus? Ao ponto de apresentarem-se voluntariamente aos batalhões policiais para as operações de massacre[1].

Transpondo para a cena atual, talvez a enunciação que se apresenta em meio a tantos enunciados que nos atravessam dia a dia, refere-se a um limite entre a crença e a tragédia. Em nome da manutenção de um projeto, o sujeito relativiza sua singularidade de forma a se adaptar e aderir ao discurso do líder. Desse modo, surgem os questionamentos a respeito das políticas adotadas pelo presidente da república diante da pandemia COVID-19 e de seus apoiadores, que desrespeitam os protocolos científicos e voluntariamente se apresentam como armas em potencial, prontos para contrair e disseminar o vírus a um número incalculável de pessoas.

Com relação ao nazismo, em linhas gerais, o autor aponta para uma série de crenças alemãs preexistentes a Hitler sobre os judeus e a necessidade de sua aniquilação. Com as propagandas nazistas, a imprensa alemã não mediu esforços para despertar o que estava silenciado. “A crença na legitimidade do empreendimento regularmente levava os alemães a tomar a iniciativa de exterminar os judeus com a ardorosa devoção característica de verdadeiros crentes” (GOLDHAGEN, 1997, p. 420). Ao longo do capítulo, o autor descreve o processo social e político alemão que culminou no Holocausto e deflagra, a partir de documentos, relatos, fotografias, a posição voluntária de muitos alemães em contribuir de forma ativa na “Solução final” da questão judaica.

O fascismo voluntário[2] é um termo atual para uma prática antiga, como podemos constatar no trabalho de Goldhagen. Ambos convergem em pontos fundamentais: o desejo coletivo por um líder, a assunção democrática do líder e a crença incondicional no líder. Em outras palavras, a inclinação inconsciente à barbárie é inerente ao sujeito, mas deve ser reprimida para manutenção civilizatória. No entanto, uma vez que determinada sociedade autoriza e estimula a crueldade sobre determinado grupo, a barbárie impera sem culpa e longe de qualquer reflexão, visto que toda renuncia pulsional busca um ato compensatório.

A negação e o descrédito frente a letalidade do vírus apontam, à primeira vista, para um ato perverso: sei que a doença existe, acompanho o avanço da pandemia no mundo, a progressão de infectados e o números de mortos, mas prefiro desmentir, fingir que os fatos não existem. Na lógica perversa, a alteridade é negada na tentativa de reduzir o outro a objeto de gozo. Na esteira de Jean-Pierre Lebrun, não estaríamos diante do que nomeou o psicanalista de uma “perversão comum”? Isto é, de um funcionamento perverso no laço social, cujo objetivo é recusar a autoridade para transgredir a lei.

A descrença absoluta no Outro (ciência, instituições de ensino, mídia) produz uma espécie de “horizontalidade generalizada[3]” que cria o cenário ideal para o surgimento do líder. Em outras palavras, ao anular o discurso do Outro, os crentes blindam sua fé para assegurar a existência suprema do líder como o legítimo portador da verdade. É uma tarefa de manutenção da crença, e por isso, um ato narcísico, visto que qualquer diferença que ameace a imagem do líder, deve ser combatida. Para o fiel seguidor, um ato de fé exige sempre grandes sacrifícios. Mas não era essa uma das máximas do regime nazista para justificar o Holocausto?

 

 

 


REFERÊNCIAS

GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o

Holocausto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LEBRUN, Jean-Pierre. A perversão comum: viver junto sem o outro. Rio de Janeiro:

Companhia de Freud, 2008.

MALISKA, Maurício Eugênio; WERNER DOS REIS, Vitor Augusto. Do sujeito précartesiano

ao contemporâneo: as novas formas de gozo do Outro. Revista Crítica

Cultural, Palhoça, v. 14, n.1, p. 11-21, jan./jun., 2019.

MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de

Janeiro: Companhia de Freud, 2008.

 

 

 


NOTAS

[1]  O primeiro e o terceiro parágrafo foram retirados do artigo: Do sujeito pré-cartesiano ao contemporâneo: as novas formas de gozo do Outro, escrito pelo autor e pelo psicanalista Maurício Maliska, publicado na Revista Crítica Cultural.

[2] Termo proposto pelo psicanalista francês Charles Melman.

[3]  LEBRUN, J-C, 2008.

 

 

 


Créditos na imagem: Holocausto pintado por suas vítimas.

 

 

 

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