Alvorada ou para o despertar de um novo dia

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O dia não se levanta sem que o céu o chame em alvorada.  Em algum lugar o som dos clarins corta o tempo, os estalos no céu anunciam as batalhas e o levante de sua gente. O dia se renova todo dia como disse o poeta, assim como as lutas, medos e sensações que nos fazem ficar de pé. Sair ainda no escuro, vestir o manto de ternura e se lançar na espera do nascer do dia é um ato que revela que a luta é contínua e por isso existem momentos que devemos celebrá-la. Estaremos em Quintino, na Praça da República ou em cada esquina dessa cidade que se lança o gole ao chão para firmar a bravura, amizade e alegria.

Aqui nessa terra a mão que segura a faca também esquenta o couro para fazer a festa. A sina dos batalhadores é manter os corpos aquecidos e as esperanças acesas com a quentura de seus corações. Os campos de batalha ensinam que mais do que conquistas ou derrotas há um sentido na vida que se tece nos ciclos, nas transformações e trocas. Daí, que ser guerreiro não é algo que se faz só, mas sim na companhia de um mar de gente, pois não existe glória que se desfrute sozinho e a principal honra é viver.

Se alembrem que uma das astúcias do campo de batalha é saber ouvir o silencio, resguardar a simplicidade e se dispor a estar junto. A preta-velha disse: Ninguém faz nada sozinho. Até quando se pensa ou se quer estar só, não se está. Não se confundam, mas quanto mais manso o palavreado mais profundo é o conhecimento sobre as artes de guerrear. Sem a sutileza de moldar o ferro no calor o guerreiro jamais empunharia a espada.

Eu matuto com o Brasil, me embolo com ele, me embrenho nos seus dizeres cheios de dilemas, sortes e tristezas. Como sementes do universo foi aqui que brotamos, em um chão profundo de mistérios e ensinamentos. Nascido e criado no subúrbio em que cada casa tem um canto para guardar o guerreiro é com esse corpo que observo os rumos da vida e as batalhas de nossa gente. É desse lugar também que forjo os sonhos e belezas que lançarei aos céus em explosão de cores e palavras de força quando baixar o dia.

O santo guerreiro não poderia estar de fora dessa quizumba que vivemos. Afinal, só é popular porque sabe ouvir as contendas e demandas dos comuns. Esse ano sem o mar vermelho nas ruas, as rodas de samba, as pernadas da capoeira, abraços, viradas no tambor e brado dos caboclos nos terreiros da Guanabara o que ficará é a lembrança do santo que vive na minha memória de menino. Ele morava em uma dessas casinhas feitas na parede e alumiada com uma luzinha vermelha. Um dia ele saiu de lá para as minhas mãos, como moleque vadiei com o guerreiro. Hoje sei que a casinha que reside o santo sou eu, assim como todas e todos aqueles guardados na sua companhia. O santo faz morada no corpo e a festa é para não esquecermos de brindar a vida e fortalecer as nossas lutas, mesmo quando a batalha da vida nos pede para ouvir o que o silencio tem a dizer.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luiz Rufino

Luiz Rufino é pedagogo. Doutor em Educação (UERJ), atualmente realiza pós-doutorado em Relações Étnico-Raciais (CEFET/PPRER). Desenvolve pesquisa sobre crítica ao colonialismo, epistemologias, educações e pedagogias outras e brasilidades.

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