Como em tempos de pandemia parece que temos tempo pra tudo e para quase nada ao mesmo tempo e que estamos às voltas com o tempo e ele lidando com a gente de várias maneiras, eu inventei de tentar lidar com ele a partir das diversas temporalidades da pandemia no país. Algo meio mórbido e funesto, eu confesso. Mas parece que não temos muito como escapar a essa temporalidade macabra. Quero aqui me ater a pensar ao menos três temporalidades que nos afetam nesse momento e o abissal descompasso entre elas: a temporalidade dos dados sobre a pandemia, a temporalidade do vírus ou da própria pandemia, e a nossa percepção da atual temporalidade que nos toca e atravessa.

 

1 – A TEMPORALIDADE DOS DADOS SOBRE A PANDEMIA.

A primeira é a temporalidade dos dados sobre a pandemia. No interior dessa há três temporalidades distintas e operando por protocolos mais ou menos diferenciados entre si: a temporalidade dos dados das secretarias municipais, a temporalidade dos dados compilados pelas secretarias estaduais de saúde e, por fim, a temporalidade do Ministério da Saúde – MS.

Começo por aquela que julgo a mais atualizada em relação a temporalidade do vírus, que é aquela fruto dos dados das secretarias municipais de saúde. Hoje os municípios tem dados mais atualizados sobre a pandemia que qualquer outro ente federativo. No entanto, a sua atualização diz respeito tão somente ao território sob sua jurisdição. Esses dados pouco se comunicam no mesmo compasso temporal com os dados estaduais e os dados nacionais, mesmo o SUS sendo um sistema universal e integrado. Mesmo assim, dentro dos sistemas municipais os dados estão cerca de 15 dias atrasados em relação ao tempo do vírus, pois os resultados dos testes feitos nestes entes federativos ainda estão demorando um certo tempo para ficarem prontos. Apenas a poucos dias que chegaram os testes rápidos. E a medida que cada caso confirmado tem o potencial de contaminar outros quatro, isso produz uma defasagem temporal ainda maior. Uma vez que ao sair o resultado positivo de um teste, mais quatro que podem ter sido contaminados sequer foram identificados e muito menos testados ainda. A curva se acentua. O vírus abre mais vantagem temporal ainda.

A outra temporalidade é a dos dados produzidos pelas secretarias estaduais, que hoje tem como base os hospitais regulados pelo estado, juntamente com algum cruzamento com os dados vindos das secretarias municipais de saúde. Contudo, não há uma transmissão imediata e coordenada dos dados dos municípios para o estado. O que gera outro gap e uma distância ainda maior em relação ao tempo do vírus. Por fim o tempo dos dados do MS, que são contabilizados a partir das informações enviadas por secretarias estaduais e municipais. Também sempre feitos com atraso. Isso aponta para um atraso desses dados oficiais em relação ao vírus de, pelo menos três semanas, principalmente se pensarmos a partir da identificação e testagem até a contabilização ofical pelo MS. Isso implica dizer que, pelos dados oficiais, estamos contabilizando mortos de mais ou menos três semanas atrás e infectados de mais ou menos 5 semanas atrás, a julgar pelo período de incubação do vírus até o aparecimento dos primeiros sintomas, que é de mais ou menos duas semanas. Isso significa dizer que, do ponto de vista da infecção, o vírus está cinco semanas a nossa frente. Do ponto de vista das mortes, a três. Já do ponto de vista da disseminação e do contágio, nunca saberemos.

 

2 – A TEMPORALIDADE DA PANDEMIA OU DO VÍRUS.

Isso nos leva à segunda temporalidade, que é a do vírus. Ele está a mais de um mês a nossa frente. Em todos os cenários ele é nosso horizonte de expectativa. Isso significa dizer que grande parte do nosso futuro ele já desbravou e realizou. É de lá que ele nos interpela. E isso é profundamente assustador. Por que apesar dos prognósticos matemáticos, dos gráficos, de todos aqueles estudos e pesquisas que apontam para as possibilidades de cenários futuros, nenhum desses prognósticos conseguem apontar para caminhos seguros para que possamos percorrer essa distância temporal entre nós e o futuro como tempo do vírus. E não temos caminhos seguros por que não testamos em massa, daí não conseguirmos mapear que caminhos o vírus trilhou até esse futuro que nos aguarda. Não respeitamos ou cumprimos a quarentena como deveríamos, para desacelerar o caminhar do vírus em direção ao futuro, ao ponto de produzirmos uma abreviação maior entre o tempo dos dados e o tempo do vírus, de modo a preparar estratégias que possibilitassem uma diminuição da mortandade. Dar uma vantagem de cinco semanas, no nosso relógio cronológico, para um vírus que contamina em escala geométrica, parece ter sido nossa maior tragédia. E pior ainda é ter a certeza que será quase impossível abreviar essa distância entre um tempo e outro, se continuamos sem testar em massa e afrouxando cada vez mais o isolamento social.

 

3 – A NOSSA PERCEPÇÃO DA ATUAL TEMPORALIDADE.

A terceira temporalidade é a nossa. Estamos em suspensão entre os dados de ontem e o vírus já no nosso amanhã. Experimentando viver uma quarentena que só existe na nossa parca percepção da realidade que nos devora. Esse descompasso entre o tempo dos dados e o tempo do vírus, parece ter, no Brasil, nos colocado pela primeira vez, nos últimos anos em que buscávamos viver permanentemente atualizados, em um outro registro temporal que nos coloca em permanente desatualização, apesar da imensa produção de informações que se querem atualísticas. O vírus instalou um corte abissal aí. Nos deixou em suspensão entre esses vários tempos. O que tem produzido a vivência de uma temporalidade profundamente angustiante, justo por não sabermos em direção a qual temporalidade nos referenciarmos e ter no horizonte apenas o vírus como possibilidade já realizada, pelo menos nesse futuro próximo. O futuro do vírus nos é assustador. O passado dos dados não nos permite fazer experiência e não nos dar garantia alguma, a não ser a da precariedade das coisas e da vida.  Assim o presente acizentou-se, tornou-se por demais opaco e sufocante. Estamos vagando em meio a essas temporalidades, tateando e sentido apenas o cheiro da morte a nossa volta.

 

 

 


Créditos na imagem: Fotografia Ana Marina Coutinho (Coordcom/UFRJ). 

 

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