Durante a quarentena desenvolvi um hábito um tanto quanto mórbido. Após tomar o café da manhã, entro na página da Secretaria de Saúde do Estado (https://www.saude.mg.gov.br/coronavirus/painel) para monitorar os casos suspeitos de Covid-19. Apesar da morbidez, é fundamental tentar perceber se as medidas das secretarias de saúde, tanto estadual quanto municipal, estão sendo condizentes com o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem falado sobre o tema. Além disso, é a partir do número de casos confirmados que poderíamos pensar na volta progressiva das atividades gerais, como vem sendo destacado por Átila Iamarino, Doutor em Microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Átila Iamarino é, além de especialista na área, divulgador científico no Youtube. Desde os primeiros vídeos disponibilizados em seu canal, Iamarino tem falado da importância do distanciamento social (e depois, do isolamento social), da importância da conscientização em relação à propagação do vírus e sobre o critério de diagnóstico da propagação da doença, que é o que gostaria de ressaltar hoje. A importância do critério para o diagnóstico dessa situação pandêmica é fundamental para os cientistas (incluindo das Ciências Humanas) entenderem o aumento ou não dos casos contabilizados pelos governos, ao redor do mundo.
Neste sentido, em live disponibilizada no dia 18 de março, na plataforma Youtube, Iamarino aponta um aumento drástico do número de novos casos por dia, referentes ao COVID-19 na China: no dia 12 de fevereiro, a China anunciou um pico de casos pois o país, já em quarentena, tinha passado a contabilizar junto aos casos positivos, os familiares dos pacientes com o Coronavirus. Adicionados a esta situação, é importante destacar o número massivo de testes que foram realizados na China, assim como na maioria esmagadora de outros países, ainda em enfrentamento da pandemia[1]. Após o pico, o governo chinês desistiu do referido método, pois não teria sido informativo. Logo após esse evento, foi estipulado o Lockdown em Wuhan.
Mas o que isso tem a ver com o meu hábito mórbido de conferir o site da Secretaria Estadual de Saúde? A questão é que o layout do site mudou, informando agora apenas o número de “casos confirmados”, mediante exames realizados. Dentre os “confirmados”, as categorias se subdividem em “casos em acompanhamento” (definidos por casos com acompanhamento médico em hospitais ou acompanhamento por isolamento social e tratamento domiciliar), “casos recuperados” (ou seja, casos que foram confirmados por exames de pacientes que já são considerados curados) e “óbitos”.
Até poucos dias atrás, também eram informados os números de “casos descartados” (ou seja, os que realizaram exame com resultado negativo), o número de “casos suspeitos”, (os que ainda não tinham realizado o exame necessário ou estavam na espera do seu resultado), e o número total de “casos notificados”, que é a soma de todos os casos “suspeitos”, “confirmados”, “descartados” e “óbitos”. As categorias de “casos descartados”, “casos suspeitos” e “casos notificados”, não estão sendo mais apresentadas no site, com a exceção de “casos recuperados”, que é um dado mais recente. Mais o que isso quer dizer na prática?
Ao negar o acesso público ao número total de “casos notificados”, de “casos suspeitos” e ao de “casos descartados”, a Secretaria Estadual da Saúde omite uma variável fundamental para a contabilização dos números de testes realizados no Estado. Também omite a atual situação do chamado “gargalo”, da relação entre o número de testes realizados e seus resultados, que tem sido um problema sério no país como um todo. Até a semana do dia 11 de maio, por exemplo, a cidade de Juiz de Fora contava com quase 2 mil casos notificados. No dia 19 de maio de 2020, o layout da página apresentava apenas o número das categorias já mencionadas, como mostra a imagem abaixo.
O total de “casos confirmados” (“em acompanhamento”, “recuperados” e “óbitos”) é de 412 indivíduos, ou seja, são exclusivamente aqueles que fizeram o exame. O que não contabiliza nem 25% dos quase 2 mil casos que, até a semana anterior, haviam sido notificados. O que aconteceu com os outros casos que não estão sendo mais contabilizados, dentro das atuais categorias definidas? O que não fica evidente, nesta forma de apresentar os dados, é que o número de casos “em acompanhamento” já diz respeito ao próprio número de casos “confirmados”. Sendo assim, não podem ser confundidos por “casos suspeitos”, como já demonstrado. Tendo em vista que o número de “casos confirmados” é a soma das categorias “em acompanhamento” junto aos casos “recuperados” e “óbitos”, o número que dizia respeito ao “gargalo” de exames esperando resultado ficou omitido, assim como os exames que não foram nem feitos. A mensagem é a de que, em Juiz de Fora, só haveria 412 casos do COVID-19, em uma cidade de população estimada em 568.873 habitantes[2]. O problema é que a divulgação dos dados, realizada dessa forma, não causa a preocupação que deveria afetar às pessoas. Se não há preocupação evidente, não haveria também do que se precaver.
Quantos casos foram descartados? Quantos casos ainda são suspeitos? Quantos exames não têm resultados? Não há informação e, por isso, fica impossível contabilizarmos o número de “casos confirmados” em relação aos casos que não foram investigados ainda. Ou seja, não conseguimos analisar o número de potenciais pessoas infectadas que estão circulando pela cidade sem o diagnóstico devido (e por consequência, pelas demais cidades de Minas Gerais). O que quer dizer que os dados estão sendo subestimados, principalmente considerando os resultados de exames que não foram liberados, ou seja, o “gargalo”.
A mudança do layout pode até ter sido feito para evitar o pânico, como a mudança da análise de dados feitas em Wuhan, mencionada anteriormente. A diferença urgente no nosso caso é de que não estamos entrando em pânico, e sim querendo voltar com atividades que só deveriam ser cogitadas após a diminuição da curva de contágio. Algo que parece estar longe de acontecer, visto que não estão sendo realizados testes suficientes para entender como a pandemia se alastra pelo país.
Essa situação remete-se ao que Darrel Huff, chama de “número semidesligado”. No livro Como mentir com Estatística, o autor declara “se você não consegue provar o que deseja, demonstre alguma coisa e finja que são equivalentes. Em meio a confusão resultante do choque entre as estatísticas e a mente humana, dificilmente alguém notará a diferença” (HUFF, 2016, p. 86). Neste trabalho, publicado pela primeira vez em 1956, Huff aponta como a utilização do número semidesligado é efetiva para um público amplo, com histórico em dificuldade nas Ciências Matemáticas (e aqui, cabe-se dizer, também nas Ciências Humanas e Sociais) e que se contenta com a demonstração de qualquer relatório, demonstrado como capaz de ser lido apenas pelos especialistas da área.
Sabemos que as Ciências Exatas têm uma linguagem própria que, muitas vezes, se distancia do próprio português. A linguagem são números, logaritmos, gráficos, enfim, ferramentas que uma parcela considerável da população tem dificuldade ou completa inabilidade em ler. Além disso, a linguagem matemática também poderia ser utilizada enquanto incontestável, como se estivesse acima do bem e do mal, e das ideologias mundanas da humanidade. Huff demonstra o contrário, abordando como os números, apesar de reais, poderiam ser rearticulados para apresentar ideias específicas que comportariam uma mensagem equivocada ou alcunhada como “neutra”, ou ainda, supostamente evidenciada pelos parâmetros científicos.
Aqui, a mensagem do governo do estado de Minas Gerais parece ser sobre a divulgação do chamado projeto “Minas Consciente”, que supostamente se baseia em protocolos sanitários para a volta progressiva das atividades comerciais. Com a divulgação de números desarticulados ou, como mencionado, de números semidesligados, a secretaria Estadual de Saúde aponta um suposto controle da situação com número abaixo de casos confirmados. Além de desinformar a população, o distanciamento entre a análise quantitativa da qualitativa traz a falsa sensação de controle. Cabe ressaltar que a análise quantitativa colabora com a qualitativa, e vice-versa.
A exclusão dos números de casos suspeitos e dos casos descartados traz a sensação equivocada de segurança. Além disso, ocorre a adição dos dados sobre “casos monitorados”: a realidade é que se trata de casos notificados, com acompanhamento médico ou isolamento domiciliar, enquanto muitas pessoas acham que são casos descartados. Essa informação ainda invisibiliza a realidade de subnotificação de casos, pois muitos deles simplesmente não são relatados às respectivas secretarias de saúde de suas cidades. Em casa, esses pacientes podem estar conscientemente isolados ou em livre circulação.
O caso das notificações e subnotificações de Minas Gerais é grave[3], e o projeto “Minas Consciente” não se apoia nessa situação preocupante. Parte do princípio equivocado de que a situação no estado está controlada, enquanto a realidade é outra. O “Minas Consciente” é pensado por empresários, para empresários, se esquecendo da própria saúde da população e da abrangência do contágio dessa doença.
REFERÊNCIAS
Censo estimativo de 2019. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/juiz-de-fora/panorama . Acesso em 19/05/2020.
HUFF, Darrel. Como mentir com Estatística. Rio de Janeiro – RJ, Editora Intrínseca, 2016.
IAMARINO, Átila. Live 18/03: Como a pandemia pode acontecer no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7jHgS4yxS0A&t=1177s . Acesso em: 19/05/2020.
Perfil Geográfico do COVID-19. Disponível em: https://www.saude.mg.gov.br/coronavirus/painel . Acesso em: 19/05/2020.
ROXO, Sérgio. Com alta subnotificação, MG registra oficialmente baixa contaminação por coronavirus. 15 de maio de 2020, O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/com-alta-subnotificacao-mg-registra-oficialmente-baixa-contaminacao-por-coronavirus-24429059 . Acesso em: 19/05/2020.
NOTAS
[1] “Considerando apenas essa quantidade de testes, o Brasil estaria na 65ª posição do ranking de 82 nações, segundo comparação feita pela BBC News Brasil a partir da plataforma de dados ‘Our World in Data’, da Universidade de Oxford — o Brasil não aparece nessa comparação por falta de dados atualizados”, como aponta reportagem feita pela BBC, em 1/5/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/05/01/mortes-testes-e-contagio-como-o-brasil-se-compara-a-outros-paises-na-pandemia-do-coronavirus.htm .
[2] De acordo com a estimativa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/juiz-de-fora/panorama .
[3] Como mostra a reportagem de15/05/2020, “Com alta subnotificação, MG registra oficialmente baixa contaminação por coronavirus”, feita pelo “O Globo”.
Créditos na imagem: Reprodução.
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Excelente análise, Helena, precisa e pontual. A sugestão do livro também é pertinente haja vista que a divulgação de informações sobre o COVID-19, ao invés de avançarem, tem sido adaptadas aos interesses dos governadores – especialmente em MG – para driblarem e pormenorizarem o isolamento social.