Por menos gurus e mais analistas

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Neste contexto de isolamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus tenho visto a reprodução de discursos otimistas no que diz respeito à criação de um novo mundo, mais harmônico e solidário, após o findar da crise de saúde pública vivida em escala global. Dessa maneira, em face à angústia do meu próprio isolamento, venho questionar os fundamentos desse otimismo. Parece que a crença na existência do “eu” como uma entidade autônoma, especialmente perante a popularização de abordagens relativas ao “autoconhecimento”, que prometem o acesso ao “eu superior” ou ao “eu verdadeiro”, é a base fundamental na qual se sustenta o otimismo a respeito da emergência utópica de um novo mundo.

Não é novidade que tal promessa é realizada por diversos “coachs” que comumente disseminam o entendimento de que um conhecimento mais profundo de si possibilitaria ao indivíduo o sucesso no mercado de trabalho. Nesse sentido, o repertório raso da “autoajuda” é uma forma de reduzir o próprio desejo do sujeito a uma adequação à lógica de competição do mercado capitalista. Desse modo, é comum “coachs” venderem a compreensão implícita de que o “eu superior” deve representar especularmente o desejo por consumo e competição normalizado em uma sociedade que cultua em última instância o dinheiro, ou o “Deus mercado”. Assim, muitos “coachs” se prestam a realizar na esfera secular o que muitos pastores fazem em igrejas neopentecostais, ou naquelas que pregam a teologia da prosperidade, responsáveis por associar diretamente a “vontade de Deus” à prosperidade financeira vulgarizada pelo capitalismo.

A lógica desse entendimento metafísico do mundo associa de forma mecânica os conceitos de “eu superior”, “Deus” e “mercado”, em uma relação que pressupõe a harmonia com os “objetos” utilizados para a definição identitária especular, por sua vez, responsável por sustentar as subjetividades autocentradas, reflexos do que seria absolutamente “bom” e “necessário”. Mediante a uma relação de espelhamento entre o desejo consciente do sujeito e a utilização do objeto como instrumento de gozo, constitui-se uma lógica discursiva binária, que pressupõe a divisão e a complementariedade entre as partes, integrantes de um todo ideal concebido como a única forma possível de experiência da realidade. Dessa maneira, é ratificada a ilusão de que o mundo neoliberal permite a fruição livre e igualitária do desejo consciente de todos ao viabilizar o gozo através da produção e do consumo automatizado (Cf. GOÉS, 2012).

De imediato, é notório que essa lógica metafísica não suporta a complexidade do real vazado pelo inconsciente. Ora, o “eu superior” sempre será confrontado com as ausências e excessos que lhe constituem, constatação que deveria ser trivial em uma cultura que rotinizou a presença da depressão e das crises de pânico, mas que optou por silenciá-las a partir do abuso das medicações em prol da produtividade. Por sua vez, o entendimento de um “Deus” suprassensível e incondicionado tem que responder à existência daquilo que não faz sentido ou não pode ser explicado, como a morte de uma criança brincando em um parquinho, ocasionada por uma bala perdida, ou o desespero de milhares de pessoas que perderam os seus familiares vitimados pela Covid-19. Por fim, o “mercado” como entidade metafísica atemporal, que metaforiza a presença de “Deus”, é confrontado a responder cotidianamente a respeito da reprodução das injustiças sociais, que vão da “uberização” do trabalhador ao trabalho análogo ao escravo em escalas globais; a produção de tal alienação ideológica é epitomizada pelo financiamento corporativo de fake news visando a negação da ciência e do político, fatores decisivos para a disseminação ainda em maior escala do novo coronavírus.

Com efeito, o entendimento do “eu” enquanto uma entidade autônoma só faz sentido em um mundo que pressupõe a existência de “objetos” que estão plenamente presentes, à disposição, para realizar o desejo supostamente consciente desse “eu”. Ademais, o “eu superior”, “Deus” e o “mercado” são instâncias inquestionáveis em meio aos seus “rebanhos”, pois se consolidaram enquanto cadeias de significantes que reproduzem crenças a partir das quais o “outro”, no presente, no passado ou no futuro, pode ser reduzido a um “objeto” à mão para a fruição do gozo de uma entidade incondicionada. Entretanto, a frustração produzida pelo “outro” nos conduz à reflexão sobre a fratura angustiante do “eu”.

Há uma ligação intrínseca entre a estrutura temporal própria da modernidade, que separa passado, presente e futuro, instâncias pretensamente autônomas e encerradas em si mesmas, que se moveriam de forma linear e sucessiva em direção a uma emancipação utópica, e a concepção de um “eu” incondicionado, plenamente consciente dos seus desejos e de suas ações. Esse entendimento da temporalidade só pode ser articulado discursivamente à medida em que produz e é reproduzido por sujeitos autocentrados, ávidos por controlar o passado, o presente e o futuro em prol da realização dos seus desejos pretensamente conscientes. A partir dessa percepção, o tempo histórico pode ser compreendido enquanto um objeto de consumo, que convidaria à fruição dos desejos dos sujeitos autônomos. Essa perspectiva é decisiva, por exemplo, para a disseminação em massa de fake news e releituras revisionistas do passado por empresas como o Brasil Paralelo, uma vez que o importante para muitos indivíduos é que a história lhes sirva como um espelho para a contemplação do próprio narcisismo, sustentado em preconceitos de gênero, raça e classe. Desse modo, o desejo pela fruição do próprio desejo sem restrições produz a negação de qualquer protocolo teórico, epistemológico e ético, fundamental na busca pelo o que mais se aproxima da complexidade do real.

A existência do inconsciente e a sua complexidade, como constatado por Freud, que pressupõe a relação interativa entre ego, superego e id, evidencia os prejuízos implicados na ideia de subjetividade autocentrada burguesa, que move o necrocapitalismo. Freud mostra que a personalidade se constitui perante as censuras do ego e do superego, que colocam limites aos desejos inconscientes, favorecendo à adaptação social do indivíduo. Nesse sentido, não seria possível falar da essência do desejo de um “eu superior”, uma vez que muitos desejos sequer vêm à consciência, permanecendo em latência, por serem incompatíveis com a preservação do ego e do superego. O entendimento da constituição do sujeito pela psicanálise é fundamentalmente político, pois é imprescindível a existência do “outro” para o reconhecimento do “eu”. Freud considera que a linguagem é parte constitutiva da relação de construção do “ego” em meio ao inconsciente. Assim, escreve em O Eu e o ID (1923): “A questão: ‘Como algo se torna consciente?’ seria, mais apropriadamente formulada: ‘Como algo se torna pré-consciente?’. E a resposta seria: pela ligação com as representações verbais correspondentes” (FREUD, 2010, p. 17).

A incomensurabilidade dos desejos, ou mesmo a impossibilidade de acessá-los em sua plenitude, apontam para a experiência da finitude do ser humano no mundo, expressa por Jacques Lacan na disjunção entre significante e significado (Cf. GÓES, 2012; BEZERRA, 2018). A inviabilidade de uma referência última a partir da qual todos os desejos fizessem sentido torna inexorável a emergência da angústia do ser humano perante o inacabado, a falta e o inconsciente. Dessa forma, Lacan escreve em seu seminário sobre a angústia:

 

Por causa da existência do inconsciente, podemos ser esse objeto afetado pelo desejo. Aliás, é na condição de ser assim marcada pela finitude que nossa própria falta, sujeito do inconsciente, pode ser desejo, desejo finito. Na aparência, ele é indefinido, porque a falta, que sempre participa de algum vazio, pode ser preenchida de várias maneiras, embora saibamos muito bem, por sermos analistas, que não a preenchemos de mil maneiras (LACAN, 2005: 35).

 

Esse estado de inacabamento do humano diz respeito às ausências em meio à quais o próprio sujeito se constitui, que o remetem a dimensões insondáveis do inconsciente, à indisponibilidade do outro, à instabilidade do presente, à incomensurabilidade do passado e à imprevisibilidade do futuro. Por essa perspectiva, o presente não pode ser compreendido como um momento de estabilidade ideal no qual é possível emergir de forma atemporal o “eu superior”. Percepção que comumente organiza o discurso de místicos e gurus mundo afora, que legitimam o ascetismo como meio mais adequado para a busca da “essência do ser” a custo do esvaziamento do engajamento crítico com a realidade. A partir dessa perspectiva, a ação política é destituída de importância perante a garantia de um futuro utópico de redenção.

Em contrapartida à ilusão da “plena presença” do “eu superior”, que direciona a sua ação de forma harmônica para a realização de um futuro utópico, a possibilidade de abertura de historicidades democratizantes torna imprescindível que venhamos considerar que o presente existe enredado em ausências, enquanto confluência angustiante de inacabamentos passados, instabilidades presentes e imprevisibilidades futuras. A angústia ante à ausência de sentido último da vida, ante à incomensurabilidade do desejo do outro, impossibilita que possamos congelar em uma representação especular o que eu sou em “essência”, o que é plenamente presença, pois o real se constitui em meio aos enredamentos imprevisíveis entre fragmentos de múltiplas experiencias temporais.

Não tenho dúvida de que os variados repertórios analíticos das humanidades são indispensáveis no que tange à possibilidade da emergência de um mundo no qual seja viável a inscrição da presença desconfortante da ausência última de sentido, da angústia própria à vulnerabilidade humana, cuja dignidade se constitui perante a inescapável falta que somos para nós mesmos e para os outros, o que torna premente a valorização do político como esfera de mediação dos nossos desejos fraturados. Parece incontornável o fato de que precisamos de menos gurus, “coachs” e líderes religiosos e de mais analistas, professores e pesquisadores em humanidades.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BEZERRA, Danieli Machado. Lacan para historiadores. Curitiba: Appris, 2018.

GOÉS, Clara de. História e Psicanálise: a construção da realidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

FREUD, Sigmund. “O Eu e o Id”. In:_____. O Eu e o ID, “Autobiografia”, e outros textos (1923-1925). Obras Completas. Vol. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

 

 

 


Créditos na imagem: René Magritte, Le Double secret, 1927. Óleo sobre tela (44 7/8 × 63 3/4 in – 114 × 161.9 cm)

 

 

 

SOBRE O AUTOR

André da Silva Ramos

Professor de Teoria da História e História da Historiografia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Realizou estágios de pesquisa na Universidade de Lisboa, na Stanford University e na Wesleyan University. Teve pesquisas financiadas pela Capes, Cátedra Jaime Cortesão (USP) e Fulbright. É autor do livro "Robert Southey e a experiência da história: conceitos, linguagens, narrativas e metáforas cosmopolitas" (2019), publicado pela parceria editorial entre a Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e a editora Milfontes.

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