O mais do mesmo nas análises do conservadorismo brasileiro

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Nos últimos anos foram incessantes as publicações, quer sejam jornalísticas, quer sejam acadêmicas, para tentar explicar o avanço conservador no cenário político brasileiro. Ainda que existam variações nessas abordagens, a questão fundamental passa por leituras que consideram o sistema capitalista com elemento central para construção dessa nova-velha face do poder. De modo geral, as produções justificam o apoio dos segmentos menos favorecidos que partilham o pensamento conservador como sendo grupos manipulados pela ideologia, em um ambiente de crescente controle dos oligopólios nas mídias, especialmente, na atualidade, nas redes sociais.  A questão a ser posta é se o reducionismo racional de meio e fim típico dessa perspectiva conseguiria responde tudo quando se trata do jogo de poder.

Ocorre que as ações racionais, manipulação calculista e o propagandismo nem sempre explicam tudo na política. Especialmente ao considerar que o poder deriva de múltiplas formas de representações, o que apresenta desdobramentos significativos menos simplistas, pois aliança manifestações de sentidos relacionadas também ao instinto. Não é apenas o beber, o comer, o morar, o vestir-se, que garante a sobrevivência. Materialmente, proteger-se contra a ameaça do outro também é uma forma de manutenção da vida. Essa defesa, que tem sua origem no medo e que se desdobra nas relações de poder, independe do trabalho, ainda que ambos se entrecruzem nas relações sociais constantemente.

O poder origina do medo. Este é o mediador entre o indivíduo e o mundo,  trazendo mais segurança às situações desconhecidas diante dos muitos riscos surgidos nas complexas convivências do dia a dia. Todas as reações diante do medo são os fundamentos do exercício do poder: a garantia diante de uma ameaça, a proteção às incertezas, a segurança às situações desconhecidas, a busca em diminuir os riscos. É a partir desses fundamentos que se reconhece o poder como sendo uma imposição da própria vontade em relação à outra pessoa ou um grupo, mesmo havendo resistências, entendimento já consolidado a partir do olhar weberiano.

A grande lacuna deixada por Max Weber ou grande parte do pensamento ocidental, quer seja através do olhar à direita ou mais à esquerda (e que exerce forte influência na formação intelectual brasileira), é que essas experiências emocionais não estão relacionadas necessariamente às ações racionais, se tornando linguagens públicas a partir de vivências conduzidas por variações históricas.  Essas experiências partilhadas não são formadas em planos lógicos no qual se busca maximizar satisfações e minimizar custos objetivando eficácia.   São condutas  construídas que assumem papel coletivo, de vivências duradouras, estabelecendo regras e ganhando formas de grupo através das instituições.

Ora, o instituído no Brasil está longe das regras definidas pelo Estado Democrático de Direito. Se é possível estabelecer um definidor para a chamada essência brasileira, ela é formada pelo patrimonialismo, patriarcalismo e racismo. Não há na literatura brasileira elementos tão presentes na cultura nacional como esse tripé. Ainda que as regras formalmente se tornem visíveis através das leis, existe de modo paralelo um emaranhado de uma cultura política muito enraizada que se ajusta, se adequa e também se choca com o legal.

Desse modo, é preciso ampliar o leque de análise dos comportamentos sociais, inclusive retirando das camadas excluídas politicamente o papel passivo de um segmento manipulado e provocar investigações quanto aos múltiplos e complexos interesses construídos socialmente. Boa parte desse tripé da cultura política brasileira se formou a partir das relações desiguais ainda no sistema colonial, mas se tornaram referência em todos os segmentos sociais. O poder é exercido no seu cotidiano e por múltiplos atores, não apenas por quem tem a posse dos meios produtivos ou controle estatal, mas também dentro de relações horizontais e seus espaços de convivência.  Envolve um fio de vínculos domésticos que se entrelaçam com os espaços além da casa e interagem entre si em uma rede complexa, muitas vezes difusa. Não são facilmente identificáveis porque estão pulverizadas e, concomitantemente, em práticas contrárias à legalidade.

Portanto, é através dessa perspectiva que deve ser identificada a força do movimento conservador. Este não surgiu nas primeiras décadas do século XXI. Esteve emudecido com o processo de abertura política brasileira nos anos de 1980, mas foi ganhando outro formato através de diversos discursos. O regime pós 1964 se prendeu em um forte apelo à moralidade, blindando a penetração de mudanças que ocorriam quanto à igualdade de direitos que cresciam no mundo ocidental, como o caso das questões de etnias e gêneros. O governo militar adiou os debates e as mudanças que vinham ocorrendo no mundo liberal. A dificuldade de penetração de propostas fundadas em valores típicos do discurso do liberalismo democrático até os anos 70 conseguiram “empurrar” para o período de abertura política debates que já estavam na ordem do dia no ocidente. Propostas de rupturas que incorporavam temas diversos, especialmente vinculados à igualdade de gênero ou direitos humanos. Exemplo desse movimento pode ser dado com a Primeira Parada do orgulho LGBT ocorrida em Nova York em 1970. Com o processo de abertura dos anos 80 vieram à tona essas novas demandas políticas, especialmente aquelas defendidas pelo Estado Democrático de Direito.

Do final dos anos de mil e novecentos e  até meados da segunda década do século XXI, através de diversas frentes políticas, passando por governos de centro direita até outros de centro esquerda, crescentemente foram incluídas pautas e criadas, concomitantemente, ferramentas legais que davam robustez a projetos inclusivos. É o caso de medidas para combater à corrupção, igualdade racial, direito das mulheres e LGBTQIA+.  Parte da sociedade brasileira que carregava valores e regras fortemente marcados por uma cultura política patrimonialista, patriarcalista e racista, não se identificou com a legitimidade proposta pelo Estado Democrático de Direito. E com a dificuldade de alternativa legal de fazer frente e neutralizar o discurso de inclusão e igualdade de direitos, esses atores buscaram outros espaços para reforçar regras próprias já consolidadas historicamente. O neopentecostalismo é o movimento mais visível, mas não a única expressão reativa nascida na Nova República, reforçando e reestruturando em um discurso que encontrou identificação no Conservadorismo.

Este discurso multifacetado e pulverizado funcionou, e funciona, como freio e regulagem para conter os avanços democráticos pouco próximos às relações de poder historicamente consolidadas no Brasil. É o grande desafio a ser enfrentado no próximo movimento de abertura democrática, qual seja um projeto amplo de reconstrução que consiga de modo definitivo eliminar o patrimonialismo, o patriarcalismo e o racismo como princípios norteadores das instituições brasileiras. O passo inicial para realização dessa empreitada é reconhecer nos brasileiros sujeitos ativos e autônomos nas suas relações de poder.  Se se permanecer o modelo atual de análise e alternativas,  identificando o Estado e o mercado como as únicas esferas de relações de poder, ou privilegiando forças ideológicas e manipuladoras como mecanismos exclusivos de entendimento político, vamos repetir de tempos em tempos reações conservadoras como as ocorridas em 1930, 1964 e 2016.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Foto: Dário Oliveira/ Estadão Conteúdo.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Márcio Achtschin Santos

Pós doutor em História pela UFMG, professor da UFVJM, autor dos livros "A Filadélfia não sonhada" e "A Formação econômica, política, social e cultural do Vale do Mucuri", dentre outros.

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