Papel, diário e carta

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Eu escrevo para me deslocar de mim para o livro. Para massacrar-me, desperdiçar-me, abismar-me no parto do livro. (…) Isso dá certo. À medida que escrevo, existo menos. 

Marguerite Duras

 

O problema do desejo

“Eu não posso dar o que os homens chamam amor… e é pena!” (ASSIS, 1908, p. 8), escreve Aires, o narrador de Memorial de Aires, último romance de Machado de Assis, confessando-se. Aires é um diplomata carioca aposentado que passa sua velhice no Brasil. Mantendo em continuidade o exercício de sua profissão, ele não demonstra muito de si socialmente, é muito discreto, prefere abster-se a gerar confusões. É também hábil com as palavras, erudito e gentil. Seu jeito calmo e observador leva a crer que ele se assemelha ao que Hipócrates chamou de fleumático, segundo a teoria dos quatro humores da Antiguidade (CEI, 2016). Todavia, sua solidão e sua impossibilidade de dar o que os homens chamam de amor não significa que ele não queira e não se esforce para dar – e receber amor. Inclusive, seu desejo por Fidélia, filha postiça do casal Aguiar e quem ele gostaria de esposar, é da ordem do erótico e ao mesmo tempo do intelectual. 

Este desejo sui generis também pertence a Elizabeth Vogler, personagem enigmática e intrigante do filme Persona, do diretor sueco Ingmar Bergman, lançado em 1966, o que permite a tentativa de comparação entre as duas obras do presente trabalho. Elizabeth é uma atriz que foi internada num hospital psiquiátrico, pois permaneceu em silêncio durante a atuação em sua última peça de teatro, ao invés de encenar e por isso foi considerada louca. A enfermeira Alma, designada para cuidar dela, descreve-a como tendo um “rosto juvenil e um olhar diabólico” (BERGMAN, 1966), silenciosa e imóvel. A primeira tem um desejo também erótico e intelectual pela segunda, porém num cenário de maior complexidade, por se tratar de uma relação amorosa entre duas mulheres e envolver uma relação que mistura trabalho e cuidado.     

Diante disso, o trabalho tem como desiderato investigar como o desejo erótico e intelectual se dá em ambas as obras. Tanto numa quanto na outra, ele aparece no papel, no diário de Aires e na carta de Elizabeth, respectivamente, o que demonstra também uma relação íntima, não-separada pela utilidade (TEIXEIRA, 2005), com a escrita. O que essa vontade diz sobre quem a tem? O que ela diz sobre as desejosas, Fidélia e Alma? Se considerados fleumáticos, Aires e Elizabeth são realmente insensíveis à dor? Tal inspiração é da ordem da dominação científica, que tem de apreender um objeto segundo leis necessárias? Essas são questões que nortearão o texto. 

 

Memorial de Aires: o papel amigo como confessionário

Aires não é um sujeito melancólico – que não consegue identificar o que perdeu num objeto de amor, perda essa que acaba por originar a própria perda de si, na medida em que a autoestima é flagelada em grau muito elevado (FREUD, 2011) – como eram Brás Cubas e Bento Santiago, personagens principais de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, romances anteriores de Machado de Assis. O narrador de Memorial de Aires já é um observador e um cético mais maduro que, tal qual um esteta, possui interesse em investigar a beleza das aparências sociais de forma branda e conciliadora, conforme a herança de seu ofício da diplomacia. “Nasci com tédio aos fracos” (ASSIS, 1908, p. 43). 

A forma de romance-diário é bastante peculiar e quiçá única na história da literatura, ou, ao menos, na literatura brasileira. Se o diplomata prefere agir falsamente em sociedade para manter o seu status, como manifestar-se discretamente sobre a abolição da escravatura em 1888 e sobre a passagem do Segundo Império para a República, no diário isso não é necessário. É ali que ele deposita seus desejos, ambições, angústias e quetais com honestidade, pois só ele irá ler o que está escrito, sendo, portanto, um “historiador de si mesmo” (DURAS, 2020). Trata o papel como seu amigo: 

Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor. 

Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco do telhado, entre a rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o que mais podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios. (ASSIS, 1908, p. 19).

E, com o passar dos dias, Aires desenvolve vontade de se aproximar de Fidélia, uma mulher jovem de beleza extrema, filha postiça do casal Aires, melancólica, que se mantém fiel ao finado marido. Sua inabilidade para fazer o trabalho de luto (FREUD, 2011) é motivo de inquietude para Aires, que quer investigá-la. Ele diz: “O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se tiver ocasião.” (ASSIS, 1908, p. 19). Ele realmente diz que ela é um “objeto de estudo” (ibidem, p. 21) para ele, que tem por ela “admiração pura” (ibidem, p. 41), devido a sua “harmonia moral” (ibidem, p. 42). Todavia, ele também sente medo de se aproximar por Fidélia porque ele já era um sexagenário e ela uma viúva muito jovem. Ele admite que não será capaz de casar-se com ela, mas não deixa de nutrir seu sentimento investigativo acerca da mesma.  

 

Persona: Trabalho, amizade ou romance? 

No filme Persona, de Bergman, há também uma sujeita fleumática e extremamente inteligente, Elizabeth Vogler, que é tida como apática, posto seu nunca-dizer. Permanecendo em silêncio, ela não tem que fazer papéis sociais nem teatrais, os quais talvez, ao fim e ao cabo, sejam o mesmo. Além disso, Elizabeth é uma mulher que não corresponde ao ideal de mãe do patriarcado, pois ela não desejava ter filhos, tentou abortar e não conseguiu. 

Na viagem para a casa de praia da médica, Elizabeth e Alma são muito carinhosas uma com a outra, por mais que a primeira não diga nada. Seu silêncio permite que a segunda fale sobre si mesma, conte sua história de vida e faça confissões que permaneciam recalcadas. Assim, a relação de cuidado é invertida: a enfermeira é cuidada pela artista, que lhe ouve com peculiar interesse; a cuidadora é quem mais carece de cuidado. Alma diz para Elizabeth: “Você me ouve. Acho que é a primeira pessoa que me ouve” (PERSONA, 1966), o que permite concluir que a relação entre elas não é mera relação de trabalho. É uma amizade? Um amor? 

Elizabeth e Alma se divertem enquanto analisam e cortam cogumelos na praia. PERSONA, 1966.

Elas nunca se beijam, mas sempre se tocam, como num platô que sofre diversas modulações, mas nunca atinge o seu clímax. Há uma bela cena no espelho, em que Elizabeth acaricia Alma e ambas se veem a si e a outra:

Elizabeth acaricia o cabelo e o rosto de Alma. PERSONA, 1966.

 A atriz não fala, mas fotografa, fuma, bebe, escreve. Sua falta de palavras, seu não-dizer é razão de confusão para Alma, apesar de que muitas vezes, não é necessário dizer para demonstrar o afeto. Ao pedir que esta envie uma carta a seu marido, Alma lê a carta, que é sobre ela mas não endereçada a ela. No papel, a paciente constata que é mimada por Alma e que talvez esta esteja “apaixonada de forma inocente e encantadora” por ela. Elizabeth revela ter um interesse particular por Alma, para analisá-la e “estudá-la” (esta é a palavra utilizada). Aqui é o momento derradeiro para a trama, pois a partir daí a relação entre elas muda: em primeiro lugar, porque Alma ama Elizabeth e neste momento se vê como não correspondida, e, em segundo, talvez porque ela não percebeu a tempo que o objeto de estudo da relação de trabalho fosse Elizabeth e não ela mesma, o que a enraivece, cinde e trai. Dito de outro modo, Alma se encontra desolada ao perceber que é um objeto de estudo para seu objeto de amor. Tudo o que ela quer é uma resposta, uma mínima palavra da artista, mas não obtém nem uma nem outra. 

Elizabeth Vogler escreve a derradeira carta, na qual aborda seu interesse em analisar Alma.

Intelecto, arte e erotismo

Ambos os desejos erótico-intelectuais de Aires e Elizabeth por Fidélia e Alma, respectivamente, são oblíquos e opacos para estas, mas claros para si mesmos, claridade essa que é perceptível na matéria do papel, onde escrevem seu diário e sua carta, também respectivamente. Ali eles trabalham suas sombras internas (DURAS, 2020) e são fiéis, se não são fiéis socialmente, pois “Uma palavra escrita não pode nunca ser apagada. Por mais que o desenho tenha sido feito a lápis e que seja de boa qualidade a borracha, o papel sempre vai guardar o relevo das letras escritas” (TUDO, 2019). Posto que as artes são predominantes em suas vidas, os escritores não parecem ter um desejo cognitivo de dominação científica. O desejo erótico-intelectual de ambos se sabe impossibilitado de se realizar naquelas circunstâncias e, não obstante, permanece, o que é belo e trágico no amor. Talvez, sua parte intelectual-investigativa-artística seja justamente a saída para tal impossibilidade erótica. 

 

 

 


REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. 1908. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/10_3b418d3289f560235fccf338378de5bf. Acesso em: 19 de março de 2021. 

CEI, Vitor. A voluptuosidade do nada: niilismo e galhofa em Machado de Assis. Annablume Editora, São Paulo, 2016. 

DURAS, Marguerite. Voz em off – parte 1. Tradução de Natan Schäfer. Sob Influência, São Paulo, 2020. Disponível em: https://www.sobinfluencia.com/blog/voz-em-off?rq=marguerite%20duras. Acesso em: 19 de março de 2021.  

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone. Cosac Naify, São Paulo, 2011. E-book. 

PERSONA. Direção de Ingmar Bergman. Estocolmo, 1966. 84 min. Disponível em: https://youtu.be/OqzRzdXqT7M Acesso em: 23 de março de 2021. 

TUDO que é apertado rasga. Direção de Fábio Rodrigues Filho. Bahia, 2019. 27 min. 

TEIXEIRA, Antônio. Da soberania do inútil. KRITERION, Belo Horizonte, nº 111, jun/2005, pp. 91-103.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Todas as imagens foram retiradas de cenas de “Persona” (1966) de Ingmar Bergman.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula Coelho Barroso Magalhães

Graduanda em Filosofia pela UFMG, é arte-educadora no museu Espaço do Conhecimento UFMG.

 

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