Carta de um soldado anônimo

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Querido Tio,

Não saberia como escrever essa carta para mamãe ou papai. Eles ficariam preocupados comigo, e não quero lhes causar dor. Hoje acordei com o corpo macerado, as pernas pesadas e o coração seco. O dia é cinzento e abafado, e os insetos testam a sanidade. Encontrei o capitão próximo à fogueira. Só pelo seu modo de andar, soube que vinha merda. Seus passos eram tensos, firmes e resolutos. Caminhava com as pernas duras e meio abertas, como se tivesse imensas bolas de touro. Estufou o peito ainda mais ao me ver. Sem sequer um “bom dia”, ordenou-me que reunisse a infantaria. Como eu o odeio! Deus me perdoe, eu o odeio! Odeio El-Rei, a justiça e toda esta merda de conquista. Está vendo por que eu não podia escrever à mamãe e ao papai?

Marchamos por três horas, seguindo os rastros dos índios. Os batedores nos encontraram para o almoço e ficamos a par a situação. Tratava-se de um grupo de cem tapuias, no máximo, entre eles muitas mulheres e crianças. O conselheiro tupinambá disse que são nômades e vinham atraídos pela estação do caju. “Eu vou mostrar a eles o meu caju!”,  a boca do capitão se retorceu num sorriso petulante.

O que acontece aqui é um crime. Não há palavra mais própria. O conselheiro tupinambá se recusou a ter sua honra manchada e retornou a Salvador com seu destacamento. Ao ver suas costas sumindo no horizonte, morri de inveja e ódio de mim mesmo. Segui a companhia bovinamente, apertando o cabo da espada, imaginando de onde eu arranjaria coragem para rasgar o estômago de camponeses. “Eles são selvagens”, o senhor poderia argumentar. E eu te digo que são camponeses, como você, a mamãe e o papai. O pior é que não usam escudos, armaduras. As carnes… o sangue… tudo está exposto…

Não há serviço digno que se possa fazer neste lugar. Todos os ofícios requerem homens duros e maus. Não tenha orgulho de mim.

 

(O soldado olha a carta, joga-a ao fogo; enche a taça de vinho, pega outra folha de papel e começa a escrever)

 

Sertões do Paraguassu, dia 24 de setembro do ano 1694 de nosso senhor Jesus Cristo.

A El-Rei Nosso Senhor convém que lhe mantenha informado do grande merecimento do teu Estado, de suas qualidades e riquezas, para que lhe ponha os olhos e bafeje com seu poder. O Brazil se engrandece em riqueza e felicidade a cada dia, como se engrandecem todos os Estados que reinam sob Vossa régia proteção.

Hoje nosso honrado capitão Carlos Botelho obteve uma vitória esplendorosa sobre um bárbaro exército de índios tapuias…

 


 

SOBRE A AUTORA

Amanda Martins

Amanda Martins é doutora em História com ênfase no Segundo Reinado. Em sua trajetória passou pela UFOP, UFRGS e pela universidade de Ghent, na Bélgica, onde mora atualmente. Desenvolve pesquisas independentes na área de ficção histórica, é host do podcast Águas Futuras e está escrevendo seu primeiro romance, “Ultramar”.

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