Ranajit Guha (1923-2023): relembrando o mestre de uma das escolas historiográficas mais influentes do século XX

Ranajit Guha, eminente historiador indiano, faleceu em 28 de abril de 2023, a poucas semanas de completar 100 anos de idade (nascera em 23 de maio de 1923). Seu falecimento motivou obituários de importantes historiadores do seu país de origem, como Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Sanjay Subrahmanyam. Os necrológios a este historiador “não convencional” (CHATTERJEE, 2023), destacaram uma biografia que aliou militância política a uma prática historiográfica desafiadora. Esta última, por vezes de difícil aceitação nos espaços acadêmicos e editoriais de seu tempo, traduziu-se numa trajetória intelectual e acadêmica ímpar, que perpassou três continentes e instituições e publicações por vezes periféricas, mas abertas a inovação e contestação. Os vários artigos em lembrança de Guha não deixaram de destacar seu papel fundamental em um dos movimentos historiográficos mais influentes a emergir do Sul Global nas últimas décadas do século XX: o grupo e projeto editorial dos Estudos Subalternos. Conquanto existam traduções de volumes dos Estudos Subalternos para o espanhol, ainda poucos textos do grupo (ou de seus principais membros, como Guha), receberam tradução para o português. Conhecer essa historiografia e a riqueza metodológica de suas propostas passa por entender a prática de pesquisa e escrita da história de Ranajit Guha.

O historiador nasceu em Bakarganj, Bengala, território atualmente pertencente a Bangladesh. Na década de 1930, frequentou o Presidency College, em Calcutá, uma instituição de ensino de grande prestígio no Sul da Ásia (denominação que abrange os territórios posteriormente constituintes dos estados nacionais independentes de Índia, Paquistão, Nepal, Butão, Sri Lanka e Bangladesh, após o fim do domínio britânico).  Durante sua graduação, Guha participou de um ambiente intelectual e político em que a força do socialismo se fazia sentir em abordagens teóricas e metodológicas na universidade – Ranajit foi influenciado pelo historiador marxista Sushobhan Sarkar –, assim como na atuação política de muitos acadêmicos. Filiou-se ao Partido Comunista indiano e, entre 1946 e 1947, estabeleceu-se em Paris como representante deste partido junto à Federação Mundial da Juventude Democrática. Viajou, então, pela Europa Oriental, pelo Oriente Médio e pela China, antes de retornar a Calcutá, em 1953. De volta à terra de origem, atuou como líder sindical e, posteriormente, como professor universitário. São desse período seus primeiros textos sobre Bengala rural, mais especificamente sobre as origens dos acordos sobre o uso do solo e a renda extraída da terra, estabelecidos entre a Companhia das Índias Orientais e senhores de terra locais na década final do século XVIII (Permanent Settlement of Bengal, 1793) (DAMODARAN, 2023; SUBRAHMANYAM, 2023). Em última instância, os estudos de Ranajit Guha, nesta época, levaram-no a investigar também as origens dos privilégios de sua própria família, composta inicialmente por proprietários de terras que se beneficiaram dos acordos em questão.

Na segunda metade dos anos 1950, o historiador se desvinculou do Partido Comunista indiano, após a invasão da Hungria pela União Soviética em 1956 (evento que motivou semelhante decisão em outros historiadores vinculados ao PC pelo mundo, como E. P. e Dorothy Thompson, na Inglaterra). Ainda com a tarefa não concluída de finalização e defesa de sua tese de doutorado sobre a história econômica de Bengala no período colonial britânico, Ranajit Guha esteve por um curto período na Universidade de Manchester, no Reino Unido, iniciado em 1959, antes de ser contratado, em 1962, como professor adjunto da Universidade de Sussex, onde permaneceu até 1980. O caminho até Sussex teria se aberto no ano de 1957, quando Guha conheceu o historiador social Asa Briggs (1921-2016), então de passagem por Calcutá. Briggs se tornaria o responsável pela formação da Escola de Ciências Sociais, bem como da área de história indiana, da então recém-formada Universidade de Sussex. O historiador britânico considerava que seu brilhante colega bengali, Ranajit Guha, seria um acréscimo importante a este empreendimento iniciado em princípios da década de 1960.

Em seus anos iniciais, marcada por um ambiente de liberdade criativa, a universidade estabeleceu pelo menos dois centros interdisciplinares: o Instituto para Estudos do Desenvolvimento e a Escola de Estudos Africanos e Asiáticos (AFRAS, na sigla em inglês, que permaneceu ativa até 2002). A nova visão que se buscava construir em Sussex transparecia na abordagem da AFRAS, que pretendia estudar temas relacionados à África e à Ásia de um ponto de vista pós-colonial. Neste sentido, diferenciava-se significativamente de instituições como a School of Oriental and African Studies, e as universidades de Cambridge e Oxford, em que os estudos regionais haviam se estabelecido como parte dos requisitos imperiais de formação de administradores coloniais. A nova instituição também incorporara a seus quadros alguns historiadores importantes no movimento da “história vista de baixo”, como Stephen Yeo, Eileen Yeo e Alun Howkins, membros ativos na criação e operação da revista History Workshop (DAMODARAN, 2023).

Desta forma, a despeito da percepção de que os anos de Guha em Sussex haviam sido caracterizados por obscuridade, escassa produção intelectual e até mesmo certo mistério (SUBRAHMANYAM, 2023), o que se observa é que o historiador bengali integrou um período bastante criativo e estimulante da instituição. Suas aulas eram apreciadas pelos estudantes e sua atuação em sala de aula e como orientador influenciou significativamente a formação profissional de muitos deles. Richard Price, historiador das classes trabalhadoras britânicas orientado por Ranajit Guha durante sua pesquisa de doutorado, destacou alguns aspectos do estilo de trabalho de seu orientador que influenciaram significativamente sua formação como historiador: o estudo da história em termos conceituais, processuais e não simplesmente narrativos; o rigor analítico, ou seja, conceituação teórica aliada a pesquisa de arquivo rigorosa, estratégia demonstrada em seus dois primeiros livros A Rule of Property for Bengal: An Essay on the Idea of Permanent Settlement (1963) e Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India (1982); a importância de se escrever com clareza e precisão (PRICE, 2023). David Hardiman, que conheceu o historiador bengali na Índia, antes de doutorar-se em História pela Universidade de Sussex, em meados dos anos 1970, lembrou que Guha era um professor carismático, que ensinava um novo tipo de “história vista de baixo”, e que, já em seus anos na universidade britânica, tinha a ambição de criar uma nova escola de história da Índia, que desafiasse os métodos tradicionais praticados até então (DAMODARAN, 2023).

Esta oportunidade surgiria no início dos anos 1980, quando Ranajit Guha se aposentou e foi convidado por Anthony Low (1927-2015), durante muitos anos seu colega em Sussex, a vincular-se à Universidade Nacional da Austrália. Guha e o grupo de jovens historiadores sul-asiáticos com quem compartilhava ideias, leituras e conversas desde seu tempo na Inglaterra iniciaram, neste período, a publicação de volumes de estudos sobre história social do Sul da Ásia. O primeiro dos Subaltern Studies saiu em 1982, pela Oxford University Press de Nova Déli, com um curto artigo introdutório de cunho historiográfico escrito por Guha, intitulado “On Some Aspects of the Historiography of Colonial India”. Os temas dos estudos definem, na prática, a categoria de subalterno, inspirada pela obra de Antonio Gramsci. São textos sobre história social das comunidades agrárias de diferentes regiões do sul da Índia, e sobre revoltas camponesas no período colonial indiano (1857-1947). O primeiro volume inclui entre os autores, além de Ranajit Guha, Partha Chatterjee, Shahid Amin, David Arnold, Gyan Pandey e David Hardiman.

O segundo volume dos Subaltern Studies, por sua vez, continha texto fundamental de Ranajt Guha para compreender uma das principais preocupações metodológicas do grupo. “The Prose of Counter-Insurgency” (“A prosa da contra-insurgência”) examina como extrair de documentação essencialmente hostil ao camponês como sujeito político (isto é, a documentação dos agentes coloniais, ou de agentes locais e historiadores posteriores que assumiram tal perspectiva), a lógica e os modos de agir e pensar daquele sujeito subalterno. Apresenta uma reflexão sobre leitura e crítica documental que questionava caracterizações naturalistas do subalterno (grupos cuja revolta se assemelharia a fenômenos naturais, como tempestades ou terremotos) ou, quando humanizadas, que o tratava como seres inferiores em uma escala civilizatória. Para Guha, importava ver como essa visão do subalterno, produzida pela documentação colonial, chegou até a historiografia, e nela se perpetuou, e como produzir outra interpretação desses relatos. Uma crítica de discursos sofisticada é apresentada no estudo, diferenciando as narrativas em primárias, secundárias e terciárias, conforme sua identificação com visões oficiais, distância para os eventos aos quais se refere e distribuição dos componentes de sua narrativa. Guha reconhece sua dívida com o estruturalismo francês, em especial a análise de narrativa de Roland Barthes, além da linguística de autores como Émile Benveniste. O que estes autores identificaram como componentes da linguagem no geral (como a presença de índices e funções), valia, segundo Guha, para a linguagem da história. Assim, o autor foi capaz de estabelecer uma espécie de tradução do código que registrou as revoltas populares na Índia colonial. Nessas chaves de leitura, “insurgente” seria o “camponês”; “fanático” seria o “fiel islâmico puritano”; “perturbar a ordem pública” seria “lutar por uma ordem pública melhor”, entre outros exemplos (GUHA, 1983, p. 15, traduções nossas). Por este tipo de análise, e a preocupação com a linguagem da documentação com que lidavam, Guha e o grupo dos Estudos Subalternos são considerados introdutores das preocupações do giro linguístico na historiografia sul-asiática.

No mesmo ano de 1983, veio à luz o livro Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India, uma síntese do esforço de Guha de compreender a lógica e a estrutura das revoltas camponesas. A pesquisa em arquivos era combinada com constante preocupação conceitual. Embora seus trabalhos sejam comumente associados à história social, a discussão teórica e conceitual do grupo dos Estudos Subalternos envolvia pensar o que era considerado político, e que sujeitos sociais integravam (ou eram excluídos) dessa definição (preocupação presente no primeiro volume, por exemplo, no estudo “The Indian ‘Faction’: A Political Theory Examined”, de David Hardiman). Ranajit Guha editou os seis primeiros volumes dos Subaltern Studies, entre 1982 e 1989. Mais quatro volumes ainda foram publicados até 1999.

Após sua participação no projeto editorial dos Estudos Subalternos, Guha retomou tema que esteve presente em seus primeiros estudos, a literatura bengali. De início, essa incursão não significou o abandono de suas preocupações com a história. Em um conjunto de palestras ministradas na Italian Academy for Advanced Studies in America, da Universidade de Columbia (EUA), entre outubro e novembro de 2000, Guha adensou suas reflexões anteriores sobre o caráter elitista da historiografia colonial (já presentes em Dominance Without Hegemony [1997]). Nestas palestras, reunidas em livro com o título History at the limit of world-history (2002), Guha examina a concepção de “história mundial” presente em G. W. F. Hegel (herança do Iluminismo), e as operações de exclusão da história de regiões e culturas extra europeias por ela realizadas. A essa concepção, Guha contrapõe a noção de “historicalidade”, para designar a “verdadeira existência histórica do ser humano no mundo” (GUHA, 2002, p. 3, tradução nossa). Desse modo, Guha deixou, em History at the limit of world-history, uma importante contribuição às reflexões sobre eurocentrismo e escrita da história (tema de relevantes estudos recentes, como, para o caso do Sul da Ásia, o livro de Priya Satia, Time’s Monster: How History Makes History [2020]).

O ano de 2023 já marcaria, por certo, rememorações de sua vida e obra, em razão do centenário do nascimento de Ranajit Guha. Algumas publicações nesse sentido já começaram a aparecer em 2022 (MUKHERJEE, 2022). Como costuma ocorrer na historiografia, efemérides relacionadas a nascimentos e falecimentos de historiadores ensejam momentos de releitura e revisão de suas obras. No caso de Ranajit Guha, a recepção a sua obra se combina aos debates e balanços em torno do legado dos Estudos Subalternos. Tanto conhecê-lo em si mesmo, sua trajetória e ideias, como partilhar de uma visão mais ampla dos Estudos Subalternos (formação do grupo, diferenças de geração e pensamento, discordâncias internas e debates), podem permitir à historiografia brasileira intercâmbios mais ricos e produtivos com essa importante historiografia do Sul Global: a historiografia sul-asiática.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

CHAKRABARTY, Dipesh. Dipesh Chakrabarty remembering Ranajit Guha: My guru, my friend. The Indian Express, 02 mai. 2023. Disponível em: <https://indianexpress.com/article/opinion/columns/dipesh-chakrabarty-remembering-ranajit-guha-my-guru-my-friend-8586418/>. Acesso em mai. 2023.

CHATERJEE, Partha. Ranajit Guha, the Unconventional Historian. The Wire, 05 mai. 2023. Opinion – History. Disponível em: <https://thewire.in/history/ranajit-guha-the-unconventional-historian>. Acesso em: 08. ago. 2023.

DAMODARAM, Vinita. Ranajit Guha (1923-2023): The Sussex Years or as his contemporaries there remember him. Broadcast – University of Sussex. Disponível em: <https://www.sussex.ac.uk/webteam/gateway/file.php?name=finaltwovdgsfinalranajit-guha-1923-(2).pdf&site=253>. Acesso em: 08. ago. 2023.

GUHA, Ranajit. The Prose of Counter-Insurgency. In:_______________ (Ed.) Subaltern Studies II: Writings on South Asian History and Society. Delhi: Oxford University Press, 1983, p. 1-42.

GUHA, Ranajit. History at the limit of world-history. New York: Columbia University Press, 2002.

MUKHERJEE, Somak. Ranajit Guha, India’s oldest living historian, starts his 100th year with a dazzling legacy. Scroll.in, 23 mai. 2022. Disponível em: <https://scroll.in/article/1024494/ranajit-guha-indias-oldest-living-historian-starts-his-100th-year-with-dazzling-scholarship>. Acesso em: 17. ago. 2023.

PRICE, Richard. Remembering Ranajit Guha (1923-2023). H-Empire Net, 05 mai. 2023. Disponível em: <https://networks.h-net.org/node/5293/discussions/12805860/remembering-ranajit-guha-1923-2023>. Acesso em: 08. ago. 2023.

SATIA, Priya. Time’s Monster: How History Makes History. Harvard: Harvard University Press, 2020.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Grey Eminence. New Left Review, 10 mai. 2023. Sidecar. Disponível em: <https://newleftreview.org/sidecar/posts/grey-eminence>. Acesso em: 25 jul. 2023.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Mural no Presidency College, em Calcutá, que celebra seus estudantes mais célebres. Os nomes de Ranajit Guha e Partha Chatterjee, ambos membros do grupo dos Estudos Subalternos, podem ser vistos na parede central captada pela foto. Pinakpani (2022), CC BY-SA 4.0 , via Wikimedia Commons.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Pedro Afonso Cristovão dos Santos

Sou Professor Adjunto na Universidade Federal da Integração Latino-Americana desde 2015, com atuação na área de Teoria e Metodologia da História. Docente do Programa de Pós-Graduação em História da UNILA (PPGHIS/UNILA). Dentre os temas que pesquiso incluem-se História da Historiografia, em especial a erudição histórica no século XIX, e, no âmbito da Teoria da História, questões ligadas ao eurocentrismo e às possibilidades de historiografias decentradas e periféricas.

 

SOBRE A AUTORA

Mirian Santos Ribeiro de Oliveira

Professora Adjunta, Universidade Federal da Integração Latino-Americana (2014-), com atuação na área de História da Ásia. Docente do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS). Temas de pesquisa incluem história da Índia contemporânea; práticas corporais sul-asiáticas; viagens e viajantes entre Ásia e América Latina (1950-1980); processos transnacionais de transmissão de ideias, práticas e objetos a partir do Sul da Ásia.

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