Por uma filosofia do acontecimento            

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É certo que Claudio Ulpiano foi um pioneiro na difusão do pensamento de Deleuze no Brasil. O leitor dos escritos do filósofo francês logo reconhece prontamente aquela filosofia nas aulas do professor brasileiro. Mas não estamos ante uma transposição direta e linear, pois há, aí, um processo de mediação. O conceito de apropriação, elaborado por Roger Chartier, aparece como uma boa orientação teórica para percebemos os processos de letramento filosófico executados por Ulpiano. A filosofia de Deleuze é, nesse sentido, recebida ante à “pluralidade de usos, à multiplicidade de interpretações, à diversidade de compreensão dos textos” (CHARTIER, 1998, p. 249). Nas aulas há, então, múltiplas interpretações e usos diversos dos textos do filósofo da diferença. O sucesso de Ulpiano como professor se dava justamente por sua habilidade de letramento amparado em uma ideia não só de apropriação de sua parte dos textos de Deleuze, mas dos próprios alunos através da sua mediação, em um gesto de fazê-los enfrentar a complexidade de maneira orientada. Como se percebe no material disponível em aulas transcritas, o filósofo carioca criou condições práticas para que alunos e alunas encontrassem chaves de leituras que os capacitassem na leitura dos difíceis textos deleuzianos por meio de um modo de fruição que os direcionava criticamente para a cultura que os enredava.

Ulpiano levaria ao lime a ideia de agenciamento, que trataremos a seguir, porque a sua filosofia, como ele mesmo admitia, era uma filosofia dos encontros, das misturas. Vejamos a sua proposição: sou filósofo, mas me misturo com santos medievais, poetas malditos franceses, pintores modernistas, música da pesada, matemática (…). E no meu entender isso é um meio de produzir alguma coisa nova, e talvez muito bonita (ULPIANO, 2017). Sílvia Ulpiano, a companheira do filósofo, nos oferece algumas pistas do exercício filosófico de Claudio em sua tese, onde se percebe aquela vocação para os encontros do pensamento, para o gesto da complexidade, para o movimento transversal, para o resgate daquilo que estava em potência nos filósofos com quem dialogou: “Não é um livro sobre, e sim com Deleuze. Claudio queria extrair aquilo que estava virtual no pensamento de Deleuze, assim como o próprio Deleuze havia feito com Espinosa, Nietzsche, Bergson, Leibniz e tantos outros filósofos” (ULPIANO, 2017). Percebemos que o ethos filosófico elaborado por Ulpiano interage filosofia e vida, texto e aulas.

A percepção do professor e escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza reforça o nosso argumento: “Quando Claudio falava, não era como uma aula, era uma prática filosófica. Ele fazia questão de oferecer ao interlocutor tudo que sabia. Eu via filas de alunos atrás dele, parecia um filósofo pré-socrático andando por Atenas. Era a expressão viva da filosofia” (ROZA, 2017). Este depoimento nos faz ver o esforço de pensamento de Ulpiano, porque as aulas, assim como a leitura, invocam, de maneira imprescindível, os horizontes da cultura local. A sua postura mediadora se direcionou, de uma forma ou de outra, para o gesto de fazer dialogar as ideias de Deleuze com as convenções sociais que circunscreviam as suas turmas nas décadas de 80 e 90 no Brasil, tornando-se as suas aulas relevantes meios para aquelas pessoas interagirem com a realidade que se apresentava.

 

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A teoria do acontecimento é uma preocupação para Claudio Ulpiano. Segundo o filósofo carioca, ela embasa toda a filosofia de Gilles Deleuze. A sua filosofia se debruça sobre problemas, e menos sobre autores, por isso não se preocupava com a dimensão eclética da sua proposta de pensamento, na medida que para se alcançar a complexidade dos fenômenos seria necessário abordá-los de maneira multifocal. “Meu problema é o problema. É essa a minha questão. Eu posso usar qualquer coisa – indiferentemente – desde que aquilo sirva” (ULPIANO, 1989). Em todo caso, Ulpiano se concentrará nos estoicos, bem como em Lucrécio e Epicuro, o que o fará refletir acerca das formas (im)possíveis de dar sentido aos fenômenos. O primeiro passo seria, então, pensar a comunicação em seu nível mais básico, qual seja, o das palavras. Elas, em sua leitura particular de Aristóteles, são cingidas pela noção de equivocidade, quer dizer, pela polissemia, pela pluralidade de significados. São os usos das palavras mais a pressão contextual que tornam (im)possível a ideia de significado comunicacional. O entendimento das performances das palavras servirá para o filósofo desdobrar o seu pensamento.

O mesmo ocorre com o pensamento, mais especificamente com as obras, seja qual for a sua natureza. O professor brasileiro cita, à título de exemplo, Freud e Marx. De acordo com a sua percepção, as obras são lançadas ao mundo e se articulam a outros modos de pensamento. A sacada de Ulpiano é que não é possível compreender um pensamento, ou uma obra em si, mas somente a partir dos seus devires, que são as várias formas de articulação e de rearticulação que ele sofreu ante o tempo. Poderíamos dizer que Ulpiano elabora uma sofisticada teoria da recepção, que seria até mesmo uma maneira de concebermos a sua reflexão filosófica. Esse processo o professor brasileiro chama de agenciamento, conceito movido por Deleuze e por Guattari. Que seriam os modos de composição, que são múltiplos e dinâmicos no plano da duração. Aqui há algo da teoria das multiplicidades. O movimento é duplo: uma ideia, um pensamento, um conceito devem ser entendidos, primeiramente, pelo que são, para, correlatamente, empreender a assimilação das composições. É o movimento do uno e do múltiplo. Essa perspectiva abre a possibilidade de compreendermos o movimento do pensamento. Fiquemos com a noção de ideia: ela só pode ser entendida se pensarmos nas suas composições. Esse é o processo de agenciamento. Ulpiano resume o certame: “Então, é pelas composições que nós vamos entender qualquer coisa. E isso é um modelo de pensamento” (ULPIANO, 1989).

Algo bastante importante: o movimento de agenciamento, o movimento de composições, nos faz perceber o devir das coisas. Contudo, mesmo que algo esteja no plano das composições, ele ainda, mesmo que se verifique algo novo, invoca as propriedades que lhes são próprias, algo como forças originárias. Esta formula nos parece importante: temos o mesmo ser ante os múltiplos agenciamentos. Contudo, a diferença emerge destes.

Podemos, acompanhando o raciocínio de Ulpiano, pensar na seguinte lógica: um objeto qualquer, uma ideia, possui uma essência, sendo que ela, correlatamente, tem uma potência. Mas isso não significa que ela tenha um significado anterior, pois essa instância só será possível através dos agenciamentos. Em suma, as coisas são o que são porque estão em modo de composição. O filósofo brasileiro esclarece o todo da sua argumentação: “Todo ser tem, o quê? Tem potência! Mas não tem, o quê? Significado! Ele não tem significado – ele tem potência. Agora, quando a potência de um ser entra em contato com a potência de outro ser, há um efeito – o efeito é o significado” (ULPIANO, 1989). E o campo dos efeitos das potências, o âmbito das suas performances, é a linguagem. Isso nos leva a compreender que é na linguagem que os efeitos da potência se realizam. O ser não possui, em si, uma significação inata ou anterior, uma metafísica ou uma providência orientadora. “O ser não tem significado – tem potência” (ULPIANO, 1989). Nos agenciamentos sociais, nos encontros, nas composições com o mundo que a potência ganha significado, e esse movimento ganha significação através da linguagem.

Estaríamos diante de dois mundos que se encontram e se informam mutuamente. De um lado os significados, que se manifestam na linguagem, e de outro as potências, que são as coisas postas no mundo. A leitura realizada por Claudio Ulpiano é de reversão do platonismo pelo estoicismo, quer dizer, para Platão o significado é a essência, enquanto que para os estoicos a essência é a potência, o mundo das possibilidades, ou um “germe em expansão”. A discussão de Ulpiano é com os estoicos, dela derivará a teoria do acontecimento. Existiria, sim, um campo de significado no estoicismo, um campo onde se poderia perceber os efeitos da potência. Segundo eles, esse campo são os corpos, onde se percebe os efeitos das potências. Assim a equação é a seguinte: campo das potências = campo dos corpos; campo do significado = campo da linguagem. Podemos deixar mais didática a explicação, até mesmo acompanhando a raciocínio de Ulpiano: um corpo qualquer é uma potência, ele pode ser algo. Mas, em si, ele não tem significado, pois é uma potência. Mas quando há o encontro dos corpos se produz efeitos e, portanto, significados. O significado é, então, o movimento de agenciamento de composição das potências. É o encontro das potencialidades, das possibilidades, do novo. Por meio da linguagem, que emerge como um vetor, há o encontro das potencialidades e surge, então, o acontecimento. O papel da linguagem é criar significados, mediar os encontros das potências. A linguagem traduz, pois tem materialidade, o campo das possibilidades que se encontram, donde verifica-se o significado sendo a abertura para o acontecimento.

Há uma imagem bastante elucidativa que Claudio Ulpiano resgata do pensamento estoico. É de Adão olhando para um lago. A questão é que se ele olha para o lago ele nunca saberá que pode se afogar. Também não teria a capacidade de olhar para o fogo e saber que pode se queimar. Os corpos percebidos por eles mesmos não possuem sentido, por isso eles se apresentariam como representações sensíveis, sendo que elas, em si, não são produtoras de conhecimento. Estão, pois, no presente. Mas a partir do momento que Adão percebe a profundidade da lagoa e o calor do fogo, seguindo as exemplificações dadas por Ulpiano, se sai do presente e se passa, então, a perspectivar, a pensar o futuro. A ideia de futuro só ocorre pelos agenciamentos, pelo contato, pela composição. “Ou seja, o acontecimento traz para o mundo o que o mundo não tem – porque o mundo é constituído de corpos e potências no presente” (ULPIANO, 1989). A sacada dos estoicos é que o acontecimento chama pelo futuro. É um processo de ir além da experiência. Dessa maneira, o acontecimento, na leitura particular do estudioso brasileiro, ultrapassa a experiência. Voltando a exemplificação construída anteriormente: por qual motivo Adão não coloca a mão no fogo? Porque ele incorporou, acompanhado o raciocínio em tela, um sentido que não está no mundo, uma abstração capaz de projetar, que podemos pensar ser, até mesmo se forçamos o seu entendimento lexical, uma idealização, uma teorização, um planejamento de algo que não existe, que acontecerá. “Está parecendo alguma coisa que não é dada nas representações, mas é o poder que o sujeito humano tem de ultrapassar o campo das experiências, e se projetar para o futuro” (ULPIANO, 1989).

Interessante é, em todo caso, a aposta no sujeito que Ulpiano quer enfatizar. Um sujeito que não está condicionado, que não está preso aos fatores de exterioridade. É um elogio a constante transformação das coisas, das ideias, dos seres humanos. A teoria do acontecimento, onde temos, além da recepção do pensamento de Deleuze, um claro conhecimento da filosofia estoica por parte de Ulpiano, reivindica que as pessoas não são dependentes das representações. Como aponta Ulpiano: o ser humano “pode ir mais longe” (ULPIANO, 1989). O ser humano supera a natureza, supera a representação sensível. É no acontecimento que os seres humanos ultrapassam o mundo objetivo. Isso implica que os sujeitos são dados aos encontros, às alianças, aos contatos. Toda essa rede categorial informa o sentido do agenciamento. O sentido dos encontros é gravado no espírito das pessoas. A lógica do sentido, que se articulada enquanto entendimento do mundo, não está na representação, mas na composição com o outro. A filosofia deleuze-claudiana oferece dignidade ao outro, à alteridade. É uma leitura ética de Deleuze. Seu foco não está em um dos polos aludidos, mas no próprio acontecimento. O futuro passa, quase que num lance de antropologia filosófica, a estar acessível pelo contato, pelas trocas, pela dinâmica relacional, pela interação.

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:

A filosofia viva de Claudio Ulpiano. Acervo Claudio Ulpiano, 2017. Disponível em: https://bityli.com/VQw5CC Acesso em: 13 de fev. 2023

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: UNESP e Imprensa Oficial SP, 1998.

ULPIANO, Claudio. Acontecimento e sentido (aula transcrita), abril de 1989. Disponível em: https://bityli.com/zy6ogV Acesso em: 13 de fev. 2023.

 

 

 


Créditos na imagem: We used to live there. Frank Moth. Disponível em: https://frankmoth.com/ .

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Piero Detoni

Historiador, professor e psicanalista. Graduado e mestre em História pela UFOP, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História pela UNICAMP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UFRRJ com bolsa Faperj Nota 10. Em sua tese de doutorado, abordou a experiência historiográfica no IHGB na Primeira República. Estuda, atualmente, a recepção da filosofia de Friedrich Nietzsche no Brasil. Tem interesse nos seguintes temas: Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual, História da Leitura e da Recepção, Ensino de História, além de História do Brasil Republicano e História Moderna e Contemporânea.

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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