Com as forças de mercado em expansão, a cultura de massa, as migrações e as esferas públicas transnacionais, hoje é extremamente complexo delinear os limites culturais. Há uma multiplicidade de culturas que são internamente híbridas. Ainda que se criem esforços, no sentido de padronizar e homogeneizar comportamentos, podemos assumir que as sociedades são em essência etnicamente plurais.

Com base neste cenário, Nancy Fraser, parece concordar que existe uma maior ênfase em favor de valores “pós-materiais”, valores individuais de autonomia e autoexpressão, em detrimento de valores materiais. Fraser acredita que esta “era pós-socialista” acarretou uma nova configuração da ordem mundial, globalizada e multicultural, na qual as lutas por redistribuição vão perdendo a ênfase, e sendo gradualmente substituídas por lutas pelo reconhecimento. Dito de outro modo, os conflitos de classe são suplantados por conflitos de status social, consequências da dominação cultural.

Fraser, destarte, propõe-se a desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, e, ao assumir este compromisso, a autora parte do pressuposto que a justiça hoje exige tanto redistribuição como reconhecimento. É importante salientar esta ressalva, pois Fraser admite o mútuo entrelaçamento entre injustiça econômica e injustiça cultural: “Em suma, só quando o status e classe são considerados em conjunto é que nossas dissociações políticas atuais podem ser superadas” (FRASER, 2003 p. 66). Baseando-se no paradigma popular a autora tenta analisar as dissemelhanças e ambiguidades sobre a questão de reconhecimento e redistribuição.

Todavia, a autora vai trabalhar com uma compreensão de injustiça onde a ramifica em duas áreas, sendo elas injustiça econômica e injustiça cultural ou simbólica, estando cada uma em um ponto extremo de um espectro. O que caracteriza a primeira é a estrutura econômico-política da sociedade, a segunda tem como base os padrões sociais de representação, interpretação e comunicação.

Outro desdobramento teórico da autora trata dos “remédios” para as problemáticas de redistribuição e reconhecimento, aos quais podem ser adotadas medidas afirmativas ou transformativas. As medidas afirmativas têm por objetivo a correção de resultados indesejados deixando, por outro lado, intactos os alicerces que os sustentam. Já os remédios transformativos têm por finalidade a correção dos resultados indesejados pela reestruturação de todo o arcabouço que os produz.

Um aparente contrassenso destes pressupostos é que a política do reconhecimento e a política da redistribuição parecem estar em conflito, como se apresentassem objetivos mutuamente contraditórios. Enquanto a primeira tende a promover a diferenciação do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la. Assim, os dois tipos de luta estão em constante tensão; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra o outro (FRASER, 2001). A partir disso, Fraser abriu possibilidades para a refutação de sua teoria, e este foi o limiar para muitos autores desenvolverem novos paradigmas na disciplina.

A grande crítica dirigida a Fraser está na maneira reducionista, polarizada, de abordar estes problemas, além da supervalorização do reconhecimento em detrimento da redistribuição. Iris Young, da corrente pós-estruturalista, rejeitou as distinções entre a ordem econômica e a ordem cultural. Os pós-estruturalistas não admitem a distinção entre a economia e a cultura. Defendem, assim, a desconstrução desta polarização proposta por Fraser, e defendem que todas as lutas são simultaneamente econômicas e culturais.

Em seu artigo “Reconhecimento sem ética?” a teórica norte-americana Nancy Fraser (2007) coloca a discussão sobre o conceito de reconhecimento sob duas perspectivas teóricas: uma que considera a questão somente como uma luta por reconhecimento da identidade, e outra que entende o conceito como uma questão de justiça, a partir da (re)distribuição dos recursos e dos bens materiais.

A (re)distribuição seria a solução para a superação das relações de dominação. Redistribuir a riqueza “do rico para o pobre, do Norte para o Sul, e dos proprietários para os trabalhadores”. Esta (ou alguns teóricos desta corrente) veem a primeira como uma luta de “consciência falsa”, instrumento de reificação da dominação e um impedimento para a busca da justiça social.

Quando Fraser conceitua redistribuições e reconhecimento ela o faz de modo que consigam existir, onde não seja necessário escolher em dos dois, pois a justiça necessita de ambos para ocorrer. Primeiramente, ela não vincula o reconhecimento à ética, mas sim a justiça conceituando-o como status social e não de identidade, isso porque devemos observar as interações sociais considerando que somos seres complexos.

Chegando neste conceito, tudo que se constrói no texto posteriormente é ligado a uma forma de hierarquia, ou como ela chama, “desubordinação social” e isto explica que quando o indivíduo não se reconhece no meio, ele está provado de uma vida igual, aos que se reconhecem, este reconhecimento é institucionalizado e padronizado, ou seja, sempre vai excluir algum grupo de pessoas, pois como já dito, cada um carrega sua individualidade. A busca neste caso é desinstitucionalizar os padrões para haver paridade de participação o que poderia dizer que é simplesmente retirar as imposições de normatividade para garantir que todos tenham o mesmo reconhecimento.

Iris Young, por sua vez, assume que as dimensões devem ser consideradas de maneira integrada, objetiva, assim, pluralizar as categorias. Um outro, argumento usado em favor desta categorização é que os grupos sociais devem ser compreendidos em seu contexto específico, buscando entender suas idiossincrasias, para determinar estratégias que possam ser mais úteis do ponto de vista da política e suas instituições.

Young argumenta que esta categorização não compreende as demandas da maioria dos movimentos sociais, e o que Fraser chama de “reconhecimento” seria um meio para a igualdade econômica e social e para a liberdade que Fraser, na verdade, apresenta no lado oposto do espectro e denomina de redistribuição. Um “remédio” teórico mais apropriado, de acordo com Young, seria conceituar questões de justiça envolvendo reconhecimento e identidade como tendo implicações intrínsecas com pilares econômicos. Sendo assim, não é coerente analisar as demandas redistributivas apenas pelo ponto de vista da dinâmica de mercado ou de exploração econômica e privação. E conclui que enquanto o desprezo cultural de grupos produzir ou reforçar opressões econômicas estruturais, as duas lutas são contínuas (por reconhecimento e por redistribuição)

Dessa forma, uma política feminista atual também precisa ser bidimensional, articulando política de redistribuição com política de reconhecimento. Essas duas dimensões não podem ser tratadas isoladamente, visto que se pode incorrer no grave erro de, ao priorizar as demandas de uma, prejudicar as demandas da outra. Exemplo pode ser encontrado em políticas redistributivas que acabam por afetar negativamente o status de seus beneficiários.

Apesar de partirem de perspectivas por vezes distintas, no que diz respeito às críticas à dicotomia público/privado como princípio de organização social e à concepção de “indivíduo”, Fraser e Young encontram muitos pontos de convergência. Ademais, ao chamarem atenção para a cegueira de gênero e para a omissão da história do contrato sexual nas principais teorias morais e políticas, as autoras levantam questões indispensáveis para quem busca pensar a realidade social hoje e desenvolver uma teoria reflexiva e emancipatória.

Revisar e reconceitualizar a noção de “indivíduo” e a dicotomia público/privado torna-se pautas urgentes e para além da desconstrução, a reconstrução teórica feminista que vem sendo realizada por essas autoras constitui-se em uma nova e indispensável frente na teoria social contemporânea.

 

 

 


REFERÊNCIAS

FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça numa era pós-socialista. Tradução Júlio Simões. Professor do Departamento de Antropologia / USP. Recebido em 30/09/2006 Aceito para publicação em 30/11/2006.

­__________. Uma Réplica a Iris Young. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, julho-dezembro de 2009, pp. 215-221.

__________. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Rev. Estud. Fem. 2007, vol.15, n.2, pp.291-308.

YOUNG, Iris. Categorias Desajustadas: uma crítica à teoria dual de sistemas de   Nancy Fraser. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, julho-dezembro de 2009, pp. 193-214.

 

 

 


Créditos na imagem: Ilustração de Larissa Sericava.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “124”][/authorbox]