Cinema e Fotografia: comentários sobre semiótica, imagem e representação

0

A imagem é por si só um artefato de constante presença na historicidade e de múltiplas aplicações na contemporaneidade. Seu estudo consta presente em variadas áreas científicas, desde as Humanidades, as Artes até a Comunicação. Nesse ensaio são tecidos comentários quanto a percepção da semiótica, a ciência dos signos, acerca dessas duas expressões artísticas, o cinema e a fotografia, para em seguida ser elaborada uma aproximação de uma perspectiva filosófica acerca da noção de imagem e representação.

Em princípio, se faz necessário desenhar e aprontar a relação entre as ditas duas expressões artísticas a serem abordadas e a sua lógica referência ao elemento imagético. Por isso se destaca as mesmas separadamente, porém não seguindo uma ordem cronológica de criação de cada linguagem, pois, como veremos a seguir, definir um nascimento é problemático.

A fotografia moderna nasce somente no século XIX. É emblemático que sua origem definitiva seja contestada por pesquisadores, uma vez que certos elementos de sua criação surgiram em diferentes lugares por diferentes pessoas. O conceito da câmara escura remonta ao século XVI, porém a primeira fotografia reconhecida data de 1825 por Niépce.

Vale destaque que a dita câmara escura era aplicada como apoio para esboços de pintura. Por conta disso é relevante e obvia a relação da imagem entre a fotografia (ainda que primitiva) e a arte da pintura. A fotografia representou um importante passo para as artes plásticas, uma vez que era notadamente constituída por aparatos tecnológicos modernos. O contexto de sua criação fora demarcado pelo auge da Revolução Industrial, que, como veremos mais à frente, influenciou não só essa linguagem.

O que a fotografia representou e ainda representa para os diversos parâmetros sociais é abrangente. Do consumo à expressão artística, a imagem fotográfica é uma das categorias visuais mais presentes em nosso cotidiano. Em cada outdoor das cidades, em sites e redes sociais, a imagem fotográfica não se ausenta de nossa rotina. Em uma era em que a tecnologia favorece a distribuição de informações, a imagem enquanto produto se valoriza e assim se justifica sua análise em diferentes perspectivas, como a postura histórica à qual aqui nos dispomos.

O cinema, enquanto inovação tecnológica, surge em paralelo à fotografia, também em meio ao clima da Revolução Industrial. A criação do cinematógrafo dos Irmãos Lumiére é o marco para essa linguagem, onde a imagem em movimento se tornou um grande polo do entretenimento, tendo inclusive seu caráter artístico constantemente questionado.

É perceptível o elo entre essas duas expressões que nos guiará as presentes considerações: a imagem. Parece então pertinente uma avaliação no campo filosófico (em específico, na semiótica) para destrincharmos noções acerca da imagem.

Winfried Nöth e Lucia Santaella dividem o campo das imagens em dois patamares: um primeiro predominado pelas imagens mentais; e um segundo em que se alocam as pinturas, gravuras, desenhos, etc. e as fotografias e imagens cinematográficas. Por certo, é nessa segunda categoria que embarcaremos.

Charles Peirce, dentro da semiótica, distingue três categorias para o signo (ícone, índice e símbolo). Esse signo, como unidade semiótica, é um intermediário entre o objeto representado e o observador. Partimos dessa clássica abordagem peirceana em nossa análise fotográfica/cinematográfica, uma vez que:

 

A partir das considerações de Santaella e Nöth, é possível fazer análise da Semiótica da imagem, da fotografia e da pintura do ponto de vista da relação das imagens com seus objetos, ou a que se referem, pois os autores partem da premissa de que as imagens podem ser tanto ícones, índices ou símbolos, e o que vai diferenciá-las são as manifestações predominantes. (SILVA, 2007, p. 20-1)

 

Cinema e Fotografia são para a semiótica duas formas de signo, ou seja, expressões que representam algo para um observador, sendo composto por três elementos relacionados: o signo em si, o objeto e o interpretante. É nítido que essa relação depende de cada elemento inserido, tendo o interpretante como aquele que relaciona os dois outros elementos.

No que concerne especificamente à fotografia, Santaella e Nöth destacam que esse tipo de imagem é na semiótica passível de análise com base em diversos autores, desde Charles Peirce a Roland Barthes. Peirce entende a fotografia como um signo que assume dupla categorização: ícone e índice (SANTAELLA; NÖTH, 1997, p. 110).

 

Um outro aspecto da foto que Peirce interpreta semioticamente é a possibilidade de sua reprodução técnica. A partir dessa perspectiva da primeiridade, ele define o negativo de uma foto com legisigno, já que de um único negativo podem ser reproduzidas inúmeras copias como réplicas do mesmo. (SANTAELLA; NÖTH, 1997, p. 110)

 

Porém, Dubois considera a fotografia como passível de categorização nas três distinções de Peirce. Phillipe Dubois “propõe uma análise semiótica da fotografia que caminha por estas três concepções: a fotografia como espelho do real (Ícone), a fotografa como prova do real (Índice) e a fotografa como transformação do real (Símbolo)” (DUBOIS, 2012, p. 26).

Barthes segue uma lógica semelhante, segundo Santaella e Nöth (1997, p. 112), considera a fotografia uma analogia perfeita da realidade. Porém, se faz necessário compreender que uma fotografia detém de inúmeros sentidos, além de não ser neutra em sua existência. A fotografia é produção de um sujeito pensante, dotado de opiniões e ideologias, e seu produto (a fotografia) será arraigado por esses elementos também. Esta é uma discussão devidamente debatida por Dubois (2012).

É válido ressaltar que é com suporte da avaliação semiológica que a fotografia constrói um caráter de seriedade para si no campo científico, lhe fornecendo uma base teórica sólida. “A abordagem semiológica coloca em outros termos aquilo que a própria sociedade identificava como prova, verdade ou testemunho. A fotografia passa a ser compreendida não como verdade, mas como marca, isto é, índice” (LIMA; CARVALHO, 2009, p. 42).

O cinema, por sua vez, na lógica peirceana, é um signo híbrido baseado em uma tríade: o sonoro, o visual e o verbal. Mais além, a narrativa cinematográfica se constrói entre a ação (índice), a decoupagem (símbolo) e a música (ícone) (SANTOS, 2011, p. 18).

O que se observa nas constatações de Santos e Dubois são características bastantes especificas dessas linguagens. A fotografia, que é apta a se encaixar na tripla categoria semiótica de Peirce, e o cinema, que em sua construção de narrativa se apresenta como um intersemiótico, ou seja, que circula por outras linguagens semióticas.

Como já salientado, o elemento elo dessas linguagens, cinema e fotografia, é a imagem. A imagem estática fotográfica e a imagem móvel do cinema. Mas acerca do conceito de imagem podem ser levantada algumas outras considerações. Em Peirce, se pode considerar que uma imagem (Signo) é uma representação que chega ao observador (Interpretante). Mas a noção da imagem como representação e não a coisa concreta já é discutida: imagem ≠ coisa. A clássica pintura de René Magritte de 1929, A Traição das Imagens demonstra essa mesma lógica:

A lógica que Magritte expõe afirmando que sua pintura não se trata de um cachimbo, mas, na verdade, de uma representação de um cachimbo é a exposição direta da noção peirceana. A pintura trata de um signo e não o objeto concreto, apelando ao Interpretante para a percepção dessa lógica.

 

Uma imagem enquanto re-presentação tem a capacidade de tornar presente algo ausente. Representar implica, necessariamente, tornar presente algo ausente. Mas, o processo de constituição de algo em imagem passa por uma operação que não é de todo natural. Esse processo de colocar algo em imagem (quer esse algo tenha existência – física, real – fora dessas imagens ou não) é o resultado de uma construção elaborada. (PENAFRIA, 2003, p. 02)

 

Essa construção elaborada da imagem, no que diz respeito à fotografia e ao cinema, perpassa por aparatos tecnológicos (a câmera fotográfica e as lentes), bem como pela aptidão técnica do fotógrafo/cinegrafista.

Para além disso, a perspectiva da imagem como representação é uma noção que remete a uma ideia clássica platônica: a mimeses. Porém, esse conceito apenas como noção de imitação, reprodução de um objeto, é por demasiado sintético.

 

Talvez consigamos entender melhor esse conceito platônico não tanto pelo viés da imitação, mas tomando por base o objeto paradigmático. Em oposição à nossa visão moderna (e romântica), que vê na arte principalmente uma criação subjetiva, que realça o caráter inovador da subjetividade do gênio, a visão antiga insiste muito mais na fidelidade da representação ao objeto representado: é ele, o objeto, que desencadeia, por sua beleza, o impulso mimético. A arte tenta aproximar-se dele com respeito e precisão e, por isso, é sempre figurativa, nesse sentido amplo, “mimética”. (GAGNEBIN, 1993, p. 67)

 

Mais ainda, na discussão historiográfica acerca de fontes visuais, se percebe que uma imagem não é o registro fidedigno de uma situação, mas “ela a reconstrói a partir de uma linguagem própria que é produzida num dado contexto histórico” (KORNIS, 1992, p. 238). A postura de contextualização da imagem é reforçada por historiadores no que tange às fontes, como Boris Kossoy e Peter Burke.

Como já citado anteriormente, Dubois considera a fotografia como catalogável nas três categorias de Peirce. A fotografia enquanto ícone para Phillipe Dubois indica ideia da imagem fotográfica como um espelho da realidade. Assim, a fotografia supostamente reflete a realidade tal qual como ela é. “Esta categoria se utiliza do discurso da mimeses e coloca a fotografa numa relação de semelhança com o referente; é uma representação na medida em que se cobre de verdade e de autenticidade” (MANINI, 2011, p. 79).

A mimeses, por vezes, cai neste discurso da imitação. Entretanto, Walter Benjamim foge dessa ideia. É o que demonstra Gagnebin ao discutir a concepção de Benjamim sobre tal conceito, afirmando que “a atividade mimética sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação” (GAGNEBIN, 1993, p. 80).

Nesse sentido, se consolida a noção da fotografia como a representação, como “recorte de espaço-tempo pode ser tomada como parte da realidade, como representação do real” (MANINI, 2011, p. 85-6). A imagem enquanto representação é também elemento chave para a constituição da linguagem do cinema, e o que parece notável é que a ideia da imagem cinematográfica não se distancia da noção fotográfica apresentada acima.

Segundo Martin Marcel (2005, p. 27), “a imagem fílmica restitui exata e totalmente o que é oferecido à câmara e o registro que ela faz da realidade é, por definição, uma percepção objetiva.”. Mais à frente, o autor defende que “a imagem fílmica é portanto, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências (ou quase) da realidade.” (MARCEL, 2005, p. 28). Dessa forma, a imagem tanto para o cinema para como a fotografia trata-se da captura do real. Representa a realidade tal como ela é, fugindo, assim, da percepção de Magritte e, consequentemente, de Platão.

A imaginação é para François Laplantine e Liana Trindade (1996, p. 03) o lugar onde se pode vislumbrar a realidade, bem como tecer possibilidades para tal. Os autores trazem a definição de que “Imagens são construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências visuais anteriores”. Isso remete à ideia de que para a construção de um fim, é necessário um referencial.

Para os autores, as imagens são primeiramente construtos do ato de pensar. “Assim a imagem que temos de um objeto não é o próprio objeto, mas uma faceta do que nós sabemos sobre esse objeto externo” (LAPLANTINE; TRINDADE, 1996, p. 03). Essa percepção vai de acordo com o que já discutimos acerca de representação e de mimesis, bem como a definição de ícone de Peirce, ao considerar a imagem do ícone como dependente de seu referente, sendo assim uma representação.

 

Tanto a imagem como o símbolo constituem representações. Essas não significam substituições puras dos objetos apresentados na percepção, mas são, antes, reapresentações, ou seja, a apresentação do objeto percebido de outra forma, atribuindo-lhe significados diferentes, mas sempre limitados pelo próprio objeto que é dado a perceber. (LAPLANTINE; TRINDADE, 1996, p. 08)

 

Todavia, é o ato do pensar peça crucialmente no debate que aqui expomos, acerca tanto de imagem como de representação. Segundo Gilbert Durand, nossa consciência possui duas maneiras de representar o mundo, uma direta e uma indireta. Na representação indireta, em que a coisa não se apresenta fisicamente, “o objecto ausente é re-presentado na consciência por uma imagem” (DURAND, 1993, p. 07).

A trilha sinuosa que nos levou da fotografia e do cinema para as formas de representações mentais, perpassando a lógica da semiótica, evidencia o quão complexo é justamente essa construção de significado que uma imagem possui. E, ainda assim, é mais curioso perceber que perfazemos esse processo continuamente, toda vez que uma imagem nos é apresentada ou quando a construímos mentalmente. Produzir e perceber imagens é um procedimento vasto, que diz respeito a nossas referências e experiências em vida, mas que acima de tudo, nos faz sentir, estimula sensações.

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993. 112 p.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Perspectiva, São Paulo, v. 16, p. 67-86, 1993.

LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é Imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1997. 80 p.

LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografias: usos sociais e historiográficos. In: LUCA, Tânia Regina de; PINSKY, Carla Bassenezi. (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2009, v. 01, p. 29-60.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.

PENAFRIA. O plano sequência é a utopia. O paradigma do filme Zapruder. In: XII Encontro Anual da COMPÓS, 2003, Recife. MÍDIA.BR, Livro da XII COMPÓS – 2003, 2003. p. 207-222.

SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mída. São Paulo, 4ª ed., Iluminuras: 1997.

SANTOS, Marcelo Moreira. Cinema e semiótica: a construção sígnica do discurso cinematográfico. Revista Fronteira, Belo Horizonte, v. 13, p. 11-19, 2011.

SILVA, Rosane. Uma percepção do olhar: os três paradigmas da imagem à luz da semiótica peirceana. Revista Eca, São Paulo, v. 3, p.19-27, 24 set. 2008.

 

 

 


Créditos da imagem: René Magritte, I due misteri, 1966.

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Gutemberg de Queirós Lima

Fotógrafo, Mestrando em História e Letras pela UECE, Licenciado em História pela UNILAB.

No comments

Veja: