A morte do cinema nas ciências humanas e sociais

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Paterson é um dos melhores filmes que já assisti até hoje, tenho que confessar!! Ele faz parte da minha estante virtual de clássicos, ao lado de Luzes da Ribalta, Rashômon, A Sombra de uma Dúvida e Time Code, além de tantas outras produções que continuam afetando cada centímetro do meu corpo. Embora seja uma obra aparentemente comum, e comparável a outras do gênero, Paterson tem algo de especial, um modo único e incrível de costurar aquilo que chamam de experiência cinematográfica. Ele é um filme de 2016, dirigido por Jim Jarmusch, e conta a simples história de um motorista de ônibus que escreve poesia… Pronto, descrevi todo o enredo!!! “Existe algo a mais?”, pergunta você. E a resposta é um suave “Não!!!!” Toda a narrativa que sustenta a trama, do começo ao fim, gira em torno do cotidiano desse motorista, do modo como lida com detalhes simples, seja uma tarefa doméstica ou um almoço no início da tarde, não existindo nada além de um conjunto de experiências normais, sem nenhum tipo de traço pretensioso ou surpreendente. Em uma cena, no meio da noite, por exemplo, Paterson passeia com seu cachorro… e é só isso!! “Acontece algo no caminho?”, pergunta você. E a resposta continua sendo um suave “Não!!!”

Deleuze, filósofo vitalista e nada tradicional, chamaria esse tipo específico de cena de Tempo Morto, ou seja, uma experiência que apenas ocorre, apenas brota de um jeito espontâneo, sem nada bombástico ou conspiratório. Ao contrário de outros filmes, em Paterson as cenas não se conectam de maneira paranoica, como se cada detalhe estivesse dentro de alguma trama sofisticada. Cada cena aqui é única, original e sem qualquer sentido de antemão, o que define muito bem o modo como a realidade opera, não importa quem você seja ou onde você mora. Uma cena não justifica a anterior, muito menos a que vem depois. Não existe nenhum fio que conecta os pontos, nenhuma matriz que organiza o fluxo das ações, muito menos o fluxo de consciência. De uma forma que lembra bastante as pinceladas literárias de Virginia Woolf, a fala de um personagem pode acabar se mostrando completamente vazia, sem qualquer tipo de sentido, sem nenhum propósito, sendo até mesmo contraditória ou evasiva. Infelizmente, essa não é a forma comum de fazer cinema ou mesmo de avaliar um conteúdo cinematográfico, em especial dentro das fronteiras da universidade, um espaço onde o mundo inteiro se dissolve dentro dessa penitenciária simbólica que chamamos de linguagem.

Existem três formas tradicionais de determinar o valor de um filme, três critérios que definem sua importância: a) O modo sociológico, em que o núcleo de sentido se encontra acima da experiência, envolvendo aqui estruturas, sistemas, ou qualquer modelo verticalizado, como é possível perceber em Matrix, Elysium, Jogos Vorazes, Bacurau e o Poço. b) O modo psicológico, onde o núcleo de sentido se encontra abaixo da experiência, envolvendo dilemas mentais, e outros conflitos internos, como é bem evidente em todos os filmes de David Lynch, Almodóvar, Lars Von Trier e tantos outros. Claro que muitas vezes essas duas abordagens (a e b) são combinadas, gerando uma terceira via filosófica, c) criando filmes que se encontram ao mesmo tempo acima e abaixo, sendo uma espécie de síntese das versões anteriores, como acontece com obras neorealistas (Roma Cidade Aberta, Alemanha, Ano Zero, Ladrões de Bicicleta, etc), ou filmes como Psicose, Laranja Mecânica ou em filmes como Coringa. Apesar disso, são poucos aqueles que falam da própria experiência, do seu fluxo horizontal e espontâneo. O critério estético mais usado por psicólogos, sociólogos e filósofos, aquele critério que ajuda a determinar o valor de uma obra, principalmente dentro de uma postura mais acadêmica, se resume a esse afastamento da experiência. Se o enredo lança mão de estruturas ou de conflitos internos, se ele decola a quilômetros de distância do solo, ou mergulha nas profundezas da própria terra, ele provavelmente vai ser classificado como uma obra de qualidade ou radical ou crítica. Mas por que? Por que quanto mais afastado da experiência, e mais preso a alguma cadeia vertical de interpretação (psicológica, sociológica ou filosófica), mais um filme é bem avaliado? Seria talvez um traço de platonismo ainda insistente na nossa linguagem, ou seja, uma tendência em ver o fluxo da vida como apenas um transtorno passageiro?

Meu argumento nesse ensaio, ao longo dessas poucas linhas que atravessam seu campo de visão, é um pouco diferente, na fronteira do estranho. Seguindo um percurso deleuziano, não existe nada mais radical e complexo do que a própria experiência, principalmente em seus instantes de vazio, de insignificância, ou seja, aqueles momentos onde coisas acontecem, mas sem nenhuma razão específica nos bastidores. Claro que essa parcela de realidade, com esses traços de insignificância, não é bem recebida no campo cinematográfico. Ao filmar uma cena de um personagem subindo uma longa escadaria, o percurso em si não importa ao diretor, a não ser como um pretexto dentro de alguma trama maior. Por outro lado, se apenas é uma simples escadaria, e uma simples caminhada, a cena imediatamente passa por uma rápida edição, fazendo com que o personagem salte do primeiro degrau ao último num passe de mágica. Esse processo que foi excluído, esse percurso da caminhada, é o chamado Tempo Morto. Os filmes, peças e outras formas de arte, além do horizonte interpretativo em torno delas, não lidam bem com esse tipo de temporalidade, o que é curioso, já que compõe 95% de tudo o que experimentamos. Quando você vai até a padaria e compra seu pão, o que acontece? Você, por acaso, descobre o amor da sua vida de repente, ao se esbarrarem no corredor? Ou talvez um vilão, nos bastidores daquele espaço, arquiteta uma doce e esperada vingança? A resposta, mais uma vez, é um simples “Não!!”. A ida até a padaria, carregada de tempo morto, sugere apenas experiências comuns, sem que estejam conectadas dentro de um sistema ou algo do tipo. Apesar de simples, na fronteira da banalidade, elas carregam um cheiro complexo e uma textura interessante. Embora não seja atravessada por um proposito transcendente, como uma estrutura poderosa que organiza tudo ao redor, ou um pano de fundo conspiratório qualquer, o Tempo Morto transborda de sentido, ainda que pareça disperso e transbordante.

Ao contrário do que muitos defendem, análises que negam a experiência em busca de algo além, ou aquém, reflete um estilo simplificado e muitas vezes amador, não carregando nada de complexo, a não ser uma atitude previsível e conveniente. O conselho da filosofia não ortodoxa de Deleuze, da psicanálise lacaniana e da sociologia de figuras como Latour, é resgatar esse terreno do tempo morto não apenas dentro das fronteiras do universo artístico, mas em todas as dimensões. Talvez exista um sentido no não sentido, um significado que brota no meio de experiências que não apresentam proposito algum. Em outras palavras, antes que a caça às bruxas comece nos comentários, e toneladas de mensagens sobrecarreguem o sistema, preciso deixar claro que meu título é uma crítica APENAS a uma certa linha ortodoxa dentro do campo universitário, uma crítica APENAS a uma certa linhagem ortodoxa dentro do campo da psicologia, sociologia e filosofia, o que chamei aqui de tradição platônica. Se você não se encontra dentro das fronteiras desse grupo, logo a crítica desse ensaio não foi direcionada a sua formidável pessoa.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Cena do filme “Psicose”, de Alfred Hitchcock.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago de Araujo Pinho

Thiago Pinho é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi pesquisador convidado na Sci-Arc (Los Angeles, EUA), em 2020. Atualmente é professor substituto da própria UFBA-IHAC e tutor na SPIRES (British Tutoring). Também escreveu dois livros sobre Teoria Social: “Descentrando a Linguagem” (Zarte, 2018) e “Sintomas” (Paco, 2019).

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