A morte patológica e a nostálgica assombração conservadora

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A morte invadiu-nos. Invadiu o espaço dos vivos, porque os espaços de sua sana acomodação já não tinham condições de a receber. As imagens de caixões e cemitérios ocuparam as páginas dos jornais e das redes sociais dos últimos meses. A pandemia tirou a morte do seu lugar e espaço, perturbando o fluxo equilibrado da vida e da morte. A morte se transformou em patologia.

A morte sempre esteve entre nós. Sempre esteve presente para nos lembrar da condição de vida. Ritualizar a perda é, também, um ato de (re)lembrar que estamos vivos. Narrar uma experiência que suspende a continuidade da vida é fundamentalmente difícil, mas desde sempre foram criadas soluções de ressignificação da perda tornando-a significante para quem vive. A morte por Covid-19 retira das sociedades a possibilidade de um dos rituais mais consideráveis para a sustentação do valor da vida – o ritual da despedida do morto. Não vou escrever aqui sobre a condição ontológica de vida e de morte, mas da dimensão simbólica da morte, do luto individual à capitalização pública (e vice-versa). É um ensaio limitado ao que me é possível escrever em tempos de morte patológica.

Como fazer o luto, parte fundamental de ressignificação da perda, sem um corpo?  Como fazer o luto sem a vida olhar a morte?

O contágio associado a esta pandemia nos coloca face ao ausente, onde a inexistência de corpo e a falta de ritual carregam consigo reações traumáticas (tal como várias experiências históricas recentes nos alertam). Não falo só da matéria do corpo – muitos indivíduos e comunidades não inscrevem na morte ontológica um fim –, mas do significado que o cuidado e o ritual em torno do corpo acarretam. A socialização e ritualização permitem exteriorizar e materializar a perda num tempo e num espaço passados, para que o morto não invada o presente rememorativo – sobre a forma de “assombração”, diria. A impossibilidade de sagração/fixação da experiência da perda no passado e no público pode instalar-se como ausência, segundo o historiador Dominick LaCapra. Importa, portanto, aceitarmos que os limites de uma narrativa definitiva sobre a perda, o trabalho de memória crítico tem que dar espaço ao trauma(s) resultante de múltiplas possibilidades da experiência que suspende a normalidade; dando espaço ao retorno do passado no presente, um vai e vem que não se deseja ver empurrado para uma patologia melancólica, como vemos em Freud, ou uma nostalgia conservadora na definição de Svetlana Boym. Em tempos de lógicas maniqueístas (ex. corpo nacional vs vírus estrangeiro) deve temer-se a capitalização da morte por soluções políticas ou religiosas conservadoras que emprestem soluções acessíveis e simplificadoras para a ausência, como o tão presente vocabulário escatológico. A assombração nostálgica conservadora tem na ausência um espaço para idealizações de passados nacionais não contaminados pelo vírus estrangeiro, mas não só.

A morte patológica seja ao nível do indivíduo ou do grupo deve ser olhada com o devido cuidado. O reconhecimento da perda individual deve passar pelo reconhecimento coletivo da perda. Não vejo, porém, que soluções de consagração mítica do morto ausente, que se generalizaram a partir da Grande Guerra, sejam o caminho ou, pelo menos, sejam o único caminho. A morte por doença não comporta o mesmo potencial de capitalização que a morte na guerra; não obstante a ampla presença política da guerra como metáfora da pandemia. Estes não são os mortos de uma guerra e não teremos heróis nacionais anónimos a capitalizar. A morte é, agora, só ausência.

A meu ver, permitir múltiplos vocabulários para a conversão da ausência em perda é urgente. É nas múltiplas narrativas sobre a experiência – sem determinismos de autoridades – que os traumas da ausência serão ocupados por lutos múltiplos e convergentes. É, por isso, fundamental que à ausência se dê forma de perda, que nunca será definitiva; que se permita em rituais partilhados perceber que estas múltiplas perdas – da maior ou menor responsabilidade dos estados – são reconhecidas.

É necessário – a seu tempo – recuperar o corpo simbólico para que não volte como assombração nostálgica conservadora. É preciso trazer a morte ao espaço público, para a cura. Importa, acima de tudo, não deixar que a morte se instale como patologia política. Essa, que nos tempos de hoje, tem corpo de pandemia.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books, 2001.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LACAPRA, Dominick. Writing History, Writing Trauma. Baltimore: John Hopkins University, 2014.

 

 

 


Créditos na imagem: Käthe Kollwitz. The Parents (Die Eltern) from War (Krieg). 1921–22, publicado em 1923.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Sílvia Correia

Professora de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2013. Licenciada em História pela Universidade do Minho (2004) e doutorada pela Universidade Nova de Lisboa (2011). Coordenou, entre 2009 e 2011, a criação do Arquivo de História Oral da Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses. No ano de 2012 foi Fulbright Visiting Scholar na Brown University. É investigadora associada do Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa.

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