Necropolítica em “Hotel Rwanda”: um breve estudo de caso

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Ao formular o conceito de ‘’necropolítica’’, o filósofo camaronês, Achille Mbembe (2003), objetiva indicar a insuficiência do sentido de biopoder para se aglutinar as formas de dominação contemporâneas (MBEMBE, 2003). Nesse sentido, o autor apresenta o ‘’necropoder’’ e a ‘’necropolítica’’ enquanto formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte, além de ressaltar que o Estado contemporâneo não objetiva somente a manutenção da vida de alguns grupos em detrimento da sobrevivência de outros – a partir do racismo de Estado, como sugere Foucault (1999) com a biopolítica. Seguindo essa lógica, o Estado seria responsável por produzir políticas de extermínio (necropolítica) sobre as populações consideradas ‘’inferiores’’.

Ademais, Mbembe (2003) aponta para a ocupação colonial como a forma mais bem sucedida do necropoder e ressalta que a coexistência de diferentes poderes, como o disciplinar, a biopolítica e a necropolítica possibilita a completa dominação sobre determinado território ocupado. Nesse sentido, a produção cinematográfica intitulada ‘’Hotel Rwanda’’ (2004), é responsável por retratar como a colonização de Ruanda pela Alemanha e posteriormente pelos Belgas, foi responsável por intensificar conflitos internos e propagar as políticas de extermínio no interior do território.

A obra foi lançada em 2004, sob a direção Terry George e buscou retratar o conflito entre as etnias Tutsi e Hutu. Historicamente, os Hutus são os primeiros povos a se instalarem na região, seguidos pelos Tutsis  que o fizeram  por volta do século XV (RAMIRO, 2015). Apesar de os Hutus estarem em maior número, a colonização Belga foi responsável, como apontado na obra, por eleger os Tutsis como representantes do poder colonial devido suas características fenotípicas – traços finos, peles mais claras, ‘’mais elegantes’’- indicando claramente as posições sobre quais grupos teriam maior acesso às políticas de manutenção da vida e quais não teriam (biopolítica).

Nesse viés, o domínio colonial foi responsável por intensificar conflitos étnicos no território e incentivar perseguições entre os grupos. Com a tomada do poder pelos Hutus e a independência do país de Ruanda, diferentes perseguições, inicialmente políticas, se instalaram sobre os Tutsis, invertendo a lógica anterior de dominação étnica. No filme, que tem como personagem principal Paul Rusesabagina e sua família, é possível perceber a radicalização dos movimentos de perseguição se estendendo a toda a população Tutsi ao decorrer da obra. Assim, percebe-se a passagem entre as políticas de manutenção e prolongamento da vida dos Hutus em detrimento dos povos Tutsis (biopolítica) sendo acrescida e radicalizada pelas políticas de produção e banalização da morte.

A obra cinematográfica é enfática ao demonstrar a perseguição dos Tutsis sobretudo após a morte do presidente Hutu, sendo a culpa instituída justamente sobre as milícias Tutsis – tornando-se, assim, legítima a produção da morte sobre eles. A radicalização do movimento de perseguição é retratada no filme e, além de ressaltar a ausência do apoio internacional, inclusive da Organização das Nações Unidas, demonstra como o aparelho estatal se movimentou para propagar o racismo contra os Tutsis, incentivando, também, a população em geral a persegui-los e exterminá-los. Com a expansão desse incentivo, o episódio conhecido como o ‘’massacre de Rwanda’’, foi marcado tragicamente pelo genocídio dos Tutsis tanto pelo necropoder do Estado, quanto pela população incentivada por ele.

À guisa de conclusão, Mbembe (2003) não tencionava discorrer acerca do episódio conhecido por ‘’massacre de Rwanda’’, tampouco sobre o filme ‘’Hotel Rwanda’’. Contudo, ao reconhecer as noções biopoder e biopolítica como insuficientes para a compreensão das formas contemporâneas de dominação e propor as noções de necropoder e necropolítica, o autor contribui para a reflexão do momento em questão. Através da obra cinematográfica e da compreensão desses conceitos, é possível identificar as relações de poder que se constroem no interior do território, além de identificar o papel do colonialismo na construção do racismo cultural. Nesse sentido, pode-se elucidar o processo de produção e banalização da morte, a partir da legitimação e consolidação do necropoder e da necropolítica no interior das estruturas sociopolíticas.

 

 

 

 


Referências


FOUCAULT, Michel.
Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


MBEMBE, Achille.
Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. 2. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.


RAMIRO, Caio Henrique Lopes. “Hotel Rwanda: variations on human rights, exception and biopolitics.”
Reflexión Politica, vol. 17, no. 33, 2015.

 

Hotel Rwanda. (Hotel Ruanda). Direção: Terry George. Coprodução: África do Sul; Itália e Reino Unido 2004. DVD (121 min).

 

 

 


​Créditos na imagem: Reprodução. Don Cheadle and Sophie Okonedo em “Hotel Rwanda.”. Disponível em: https://www.rogerebert.com/reviews/hotel-rwanda-2004

 

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Pedro Henrique Pereira Venancio

Me chamo Pedro Henrique Pereira Venancio e tenho 23 anos. Atualmente, sou graduando do 7° período do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais, unidade Carangola e atuo como professor voluntário de História e de Negritude, Cultura e Cidadania da rede de cursinhos preparatórios Educafro Minas. Resido no município de Carangola, porém sou natural de Mateus Leme (MG).

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