Atualismo e Manipulação da História: Um Estudo comparativo sobre Javier Milei e Jair Bolsonaro

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A intenção deste ensaio é ampliar as análises entre o período de 2018 a 2023, no Brasil e Argentina, respectivamente. Analisarei aqui a ascensão da extrema direita neopopulista, as manipulações e distorções da história por parte de Jair Bolsonaro e Javier Milei, a fim de compreender como alguns indivíduos contemporâneos moldam e apresentam seletivamente o passado para diferentes públicos. Considerando também a influência da realidade atualista, onde a verdade é muitas vezes definida pelo que é mais atual ou popular nas principais notícias de redes sociais (PEREIRA; ARAUJO, 2016), podemos observar como isso contribui para fortalecer o revisionismo histórico.
Permita-me uma analogia: uma das correntes mais ativas do negacionismo científico concentra-se na dúvida acerca da eficácia da vacinação, fenômeno agravado no Brasil a partir de 2020 pelas infundadas declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro sobre a segurança das vacinas contra a COVID-19. O procedimento vacinal envolve a introdução do vírus em sua forma inativa no organismo, estimulando a produção de anticorpos que estabelecem memórias de resistência no sistema imunológico. Isso possibilita que o corpo retenha informações sobre vírus e bactérias específicos, capacitando-se para combatê-los com maior eficácia em casos de contaminação. Esse processo guarda semelhanças notáveis com o conceito de memória histórica de resistência. O século XX testemunhou a formação dessa memória histórica por meio da propagação de governos extremistas ao redor do mundo. Assim, para viabilizar um contágio mais eficiente, seria imperativo que ocorresse uma mutação no vírus ou, analogamente, uma transformação na atuação de líderes extremistas, de modo a evitar resistências e facilitar um contágio social mais eficaz.
Em relação aos casos particulares de Milei e Bolsonaro, é evidente que uma parte de suas forças provinha da conexão entre uma militância humana e outra de natureza robótica, advinda da Inteligência Artificial. Devido à ampla difusão proporcionada pelos meios de comunicação digital, a corrente ideológica neopopulista tende a adotar comportamentos excêntricos, muitas vezes de forma intencional, buscando alcançar maior visibilidade e popularidade nas plataformas de redes sociais. Comportamentos estes, que tendem a quebrar a barreira de distância entre o formal e o informal, deixando o líder mais próximo de uma realidade popular, e consequentemente, conquistando a maior empatia e proximidade do povo. Neste contexto, enquadram-se os dois casos: Javier Milei, destacando-se por sua figura extravagante, acompanhada de doses de gritos e insultos em seu canal no YouTube que proporcionam momentos ideais para compartilhamentos; e Bolsonaro, de maneira semelhante, ganhando repercussão por saborear pães com leite condensado. Como produtos das redes, em ambos os casos, já não importa a maneira como a popularidade será alcançada, desde que ela seja.
Ao contrário da atuação da extrema direita no século XX, o que a diferencia agora são as novas ferramentas de manipulação disponíveis na era atualista. Apesar de ser uma forma de democratização do conhecimento, a internet se vincula aqui como um instrumento de manipulação na corrida ideológica, sem limite para a falsificação da verdade. Essa dualidade é perceptível ao analisar ambos os presidentes, que adotam um padrão de negação em relação à violência perpetrada durante os regimes militares de 1964 no Brasil e 1976 na Argentina. Os argumentos utilizados por eles encontram respaldo nas correntes de influência política presentes nos dois países. Neste contexto, a noção de verdade não exige comprovação, apenas uma pregação superficial (FINCHELSTEIN, 2022). Ou seja, meras observações e verdades não se separam.
No contexto atual argentino, observa-se uma nostalgia em relação à ditadura militar de 1976, bem como ao final do século XIX, considerado o período áureo da “Argentina potência”, conforme afirmado pelo próprio Milei. A vice-presidente, Victoria Villarruel, que é filha e neta de militares, advoga pela revisão das condenações de oficiais das Forças Armadas por crimes cometidos durante a ditadura de 1976. Assim como Milei, Villarruel contesta os dados relacionados ao número de vítimas das políticas de repressão, sugerindo que esse número é consideravelmente menor. Além disso, ambos estabelecem comparações entre os crimes cometidos pelos grupos guerrilheiros e os perpetrados pelo terrorismo de Estado, tal como pregado pela Teoria dos Dois Demônios. Nas palavras da atual vice-presidente, em uma matéria do Globo “É hora de reivindicar aqueles que lutaram contra os grupos terroristas que tentaram instalar o comunismo na Argentina e que hoje estão presos injustamente por uma Justiça enviesada e manipulada pela esquerda” (GLOBO, 2023).
A mesma nostalgia pode ser percebida em várias declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em uma reportagem da Folha de São Paulo, procurando dissociar a obrigação da brutalidade ditatorial perpetrada pelos militares, além de recorrer à estratégia de renomear eventos históricos, que resulta na manipulação da memória coletiva em relação à ditadura de 1964, o ex-presidente afirma: “Eu mostrei, e hoje em dia grande parte da população entende, que o período militar não foi ditadura, como a esquerda sempre pregou […]” (FOLHA DE S. PAULO, 2019).
Ao analisar a tentativa de suavizar os eventos relacionados a ambas as ditaduras, fica evidente a intenção da extrema direita neopopulista de desvincular ou minimizar as atrocidades cometidas durante os períodos militares, evidenciada pela adoção da Teoria dos Dois Demônios. Essa teoria busca equiparar as responsabilidades dos crimes militares com as violências perpetradas pelos movimentos guerrilheiros de resistência na Argentina, ou mesmo pela negação da própria existência de um período ditatorial no Brasil. O objetivo é desassociar dessa corrente política a classificação da barbárie como “crimes injustos” e promover uma reconfiguração da narrativa, sugerindo que a violência foi justa e necessária.
O que chama a atenção em ambas as situações é a presença da anistia no Brasil e a ausência dessa prática na Argentina. Diante de uma formação de memória histórica distinta, surge a indagação: por que ambas as nações elegeram neopopulistas? Em uma análise clássica, a resposta está vinculada à fragilização da estabilidade democrática que tende a ocorrer durante períodos de crise, nos quais a insatisfação popular em relação ao sistema vigente provoca um aumento no questionamento político. Nesse contexto, as figuras de Bolsonaro e Milei emergem como aquelas que satisfazem o desejo do povo por uma “revolução” sem que ela de fato ocorra. O surgimento de uma figura pública que compreende a indignação popular em relação ao país, não apenas se apresentando como parte da solução, mas também como o “justiceiro”, resulta em um apego afetivo do eleitor.
O populismo e o neoliberalismo advogados pelo Bolsonarismo e por Milei diminuem significativamente a autonomia dos cidadãos na esfera política, ao mesmo tempo em que mantêm as aparências da democracia, que se apresenta fragilizada. O populismo, ao transformar-se em um “ismo” distinto, opõe-se às ideias ditatoriais, porém, paradoxalmente, rejeita a diversidade democrática ao agir contra seus princípios. Embora líderes populistas afirmem representar a voz do povo nacional, a participação efetiva da população é reduzida, limitando, assim, a sua influência.
É precisamente nesse ponto que a popularidade da extrema direita neopopulista no Brasil e na Argentina se vincula profundamente a sua organização nas mídias sociais. De maneira simplificada e permeada por notícias falsas, essa abordagem cria uma imagem que aparenta veracidade e embasamento científico, ainda que de forma enganosa. É mais reconfortante consumir notícias com poucas fontes e baixo nível de complexidade, que não demandam um raciocínio extenso para serem compreendidas e ainda reforçam ideias preexistentes do cidadão, do que se dedicar à leitura de artigos científicos elaborados por pesquisadores profissionais.
Em conclusão, não se faz surpreendente a ascensão do neopopulismo na Argentina. Por mais que o país tenha uma memória histórica de punição a governos extremistas, a crise, que se agravou durante os anos 2000 e atualmente perpetua, resultou na busca do povo por uma via que aparenta ser “radical”. O governo Milei se apresenta como um movimento “revolucionário” que se diferencia dos demais políticos, tal como o bolsonarismo. A insuficiência da esquerda radical de atender as demandas da classe trabalhadora, tanto no Brasil, em 2018, quanto na Argentina, em 2023, fez com que o povo se “radicalizasse” pela via populista disponível.
Questiono aqui a estrutura política na América Latina, com foco no Brasil e na Argentina. Como podemos evitar a consolidação de governos neopopulistas? Tanto Bolsonaro quanto Milei emergiram como produtos das redes sociais, durante a Era da Pós-Verdade, onde as Fake News se proliferam em tempo real e são adaptadas para cada algoritmo das plataformas sociais. Nesse sentido, é fundamental elaborar estratégias de (re)organização nos meios de comunicação. Mas quais seriam essas estratégias? Esta é uma das questões centrais e desafiadoras para os historiadores.
Ao analisar o contexto atual no Brasil, é evidente uma crescente resistência em relação a governos extremistas. Um exemplo disso é a atual investigação conduzida pela Polícia Federal sobre a tentativa de golpe articulada pelo bolsonarismo após a eleição do presidente Lula. Essa investigação pode ser interpretada como um esforço de reparação histórica em um país onde a memória do último golpe militar foi obscurecida pela anistia. Esse processo impulsiona uma transformação significativa da memória social, buscando estabelecer uma memória coletiva que evite o esquecimento dos eventos passados. Contudo, como mencionado anteriormente, a memória histórica sozinha não é suficiente para conter a ascensão do neopopulismo, como ilustrado no caso da Argentina. É essencial uma forte estrutura ideológica de oposição, não baseada apenas em conceitos preexistentes, como o marxismo europeu, mas sim em uma adaptação desses conceitos que seja pertinente à realidade política de cada país, para que desse modo, a prática seja mais eficiente.

 

 

 


Referências:

FINCHELSTEIN, F. Uma breve história das mentiras fascistas. Berkeley, CA, EUA: University of California Press, 2022.

FOLHA DE S. PAULO. “Não houve ditadura; teve uns probleminhas”, diz Bolsonaro sobre regime militar no país. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/nao-houve-ditadura-teve-uns-probleminhas-diz-bolsonaro-sobre-regime-militar-no-pais.shtml. Acesso em: [25/02/2024].

GLOBO. Vice de Javier Milei é tachada de negacionista da ditadura argentina. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/post/2023/09/07/vice-de-javier-milei-e-tachada-de-negacionista-da-ditadura-argentina.ghtml. Acesso em: [25/02/2024].

DE FARIA, Pereira, Mateus Henrique., & DE ARAÚJO, Valdei Lopez. (2016). Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, 23(1 e 2), 270-297.

 

 

 


Créditos na imagem: https://br.pinterest.com/pin/18999629672731338/

 

 

 


 

SOBRE A AUTORA

Lara Abreu Vasconcelos Almeida

Sou graduanda em História pela UFOP e tenho um interesse acadêmico central no Atualismo e suas diversas vertentes, incluindo o negacionismo histórico. Durante minha jornada acadêmica, explorei profundamente esse campo. Participei ativamente do projeto Proprietas, contribuindo para o Observatório do Negacionismo. Além disso, desempenhei o papel de monitora na disciplina de Brasil República. Uma experiência enriquecedora foi minha participação em um programa de mobilidade acadêmica na Argentina, onde pude acompanhar de perto eventos significativos, como a ascensão de Javier Milei à presidência. Foi nesse contexto argentino que desenvolvi o ensaio que agora compartilho.

 

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