Uma distância das mais trágicas (22/06/2020)

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Quando há o horizonte e deixamos o olhar se dirigir para bem longe, certa sensação de que tudo se comunga pode dotar de novo ânimo nossas perspectivas sobre a finitude – há um prazer nisso que pode ser exercitado (e quanta saudade do mar!), que é proposto por outras dimensões de experiência não coladas aos corpos que se movem ao nosso redor. Sei também que podemos mirar longe e não sentir nenhuma entrega, de parte alguma. Porque o olhar, mesmo o olhar físico, faz-se pelo exercício, não é nenhuma dádiva evolutiva; por isso as singularidades que afetam nossa visão também podem passar despercebidas, isentas de afetos e atenção. Ou surgirem como pontos borrados a serem corrigidos pela aceleração dos movimentos e das imagens.

Para que o que está às nossas frontes se tornasse invísivel a muitas pessoas, na história dos territórios submetidos às coroas ibéricas e posteriormente aos estados locais, séculos de matança e de refinamentos na arte de criar identidades nacionais nos fizeram mirar horizontes indiscerníveis mas desejados, com muito exercício e fé: o “desenvolvimento” é dessas ideias traiçoeiras que prometem aproximar, ou até mesmo integrar comunidades, enquanto nas práticas políticas o que ocorre é a destruição de florestas, remoção de populações, mortes de rios e permanente genocídio (em tudo isso, senão direta, indiretamente) – e o termo, genocídio, cabível no contexto, ainda arrisca borrar aos olhares menos atentos que são vidas reais que se perdem, e vidas reais sempre são singulares.

A contrapelo, também se refinaram as práticas de saberes e resistências que muitas dessas populações empurradas para fora de nosso campo de visão vulgar praticam. Saberes e resistências que nos fazem ver que em seus movimentos mais profundos é provocada, sensível e insistentemente, a real aproximação entre múltiplas maneiras de experimentar a vida – em meio à guerra, é como se a estratégia que predominasse fosse a de convocar existências aliadas, não massacrar as inimigas. Percebemos, se for o caso, que a própria inimizade dispensa a crueldade pelo ganho pessoal e que não exige a eliminação sistemática das diferenças.

A cada dia já víamos mais e mais corpos indígenas insuflarem temporalidades de resistência em espaços marcados pela monotonia da pressa, do desenvolvimento; igualmente, cada vez mais difícil não atentar a ideias e práticas de libertação que desses corpos partem para se difundir no mundo. Agora, que muitos corpos recuam, em presença física, para combater um vírus, nos marcam ainda mais os usos das tecnologias para comunicação em rede, e vemos como esse terreno é já um instrumento consolidado no encontro de gerações de resistência na reafirmação contínua do desejo de autodeterminação dos povos. Mas nada deve fazer sumir às vistas a gravidade proporcional dos golpes que sofrem comunidades indígenas – e outras confinadas à exiguidade espacial e de condições materiais/ambientais – nessa pandemia, que aqui ocorre no interior de um regime de poder que conquistou as urnas em nada escondendo a ânsia de eliminar etnias inteiras no país e que, no momento, ri por não poder fazer “milagres” e auxiliar as pessoas a se manterem vivas.

A APIB (Articulação do Povos Indígenas do Brasil), até o dia 16 de junho, divulgara a morte de 287 indígenas, pertencentes a 103 etnias no Brasil. No dia seguinte, 17, a notícia do falecimento de Bep’kororoti Payakan (Paulinho Paiakan), em Redenção, Pará, em decorrência da Covid-19. Poucos nomes sintetizam, como o de Paiakan, as tensões nascidas do projetar-se em um mundo em que a hostilidade acompanha a visão da diferença e as tecnologias são usadas para demarcar distâncias e fronteiras que ainda servem para hierarquizar vidas, em que as brancas e ricas valem mais. Isso enquanto fronteiras de terras demarcadas são rasgadas e nelas penetram, com o incentivo do governo genocida, garimpos, madeireiros, grileiros – e no recuo da quase nula fiscalização e defesa por parte dos órgão oficiais, outra vez na história um vírus é arma para a dizimação de vidas indígenas.

Paiakan teve de ser tratado e morreu a mais de duzentos quilômetros do local onde sua família o esperava para os ritos tradicionais devidos a essa passagem que conhecemos como morte. Os hospitais estão longe dessas comunidades, assim como os centros em que vai a maioria que precisa do auxílio emergencial; toda essa movimentação, inevitável pela necessidade, expõe níveis de vulnerabilidade que apenas não são maiores pelos conhecimentos que atravessam os séculos e que vêm também de tristes experiências de epidemias passadas, desde o século XVI. Mas muito desse conhecimento também desaparece quando morre cada uma dessas pessoas – como, por exemplo, com a morte, dia 21, de Higino Tukuya, cuja potência carregava incontáveis conhecimentos tradicionais, como sabem muito bem pessoas ligadas aos campos da arquelogia, da antropologia, da linguística, da biologia e ainda outras áreas.

São dois apenas os nomes citados, mas que podem representar angústias de comunidades inteiras que vivem, por séculos, tragédias que vêm quando o mundo branco quer encurtar distâncias, quer integrar – quando isso tudo significa enriquecer poucos indivíduos à custa de biomas inteiros. Se encurtamos as distâncias nos “afastando da natureza”, e se tanto já foi perdido, o que pode ser recuperado e o que pode ser reconstruído? O que haverá para se recuperar, visto que faz tempo que a doença é a norma da civilização que crê dominar a natureza?

 

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Em todo o tempo que passei no Nordeste, especialmente no Ceará, viajei o bastante para, à força da experiência, notar dinâmicas muito diversas daquela a que eu era acostumado na capital. Mas era então, e ainda é, apenas um exercício que está em seu início. Outras regiões do Brasil em que habitei depois reforçam a experiência, mas também sublinham o quanto ainda deixo de ver do que está ao meu redor – como se eu acreditasse em distâncias a serem ultrapassadas, e ao crer nisso, justamente, pusesse essas distâncias como a fonte principal de problemas. Fosse ou não assim, comunidades indígenas – dentre outras – vieram até nós e disseram: aproveitemos proximidades, mas respeitemos as distâncias! Se uma nacionalidade foi imposta a golpes mortais, que a sua constituição hoje inclua o respeito pétreo a fronteiras territoriais que implicam outras temporalidades de produção, de saúde, de comunicação, etc. Mas não, e a pandemia volta a vitimar organismos utlravulneráveis às sequelas de nossos desencontros com a natureza, de que nos excluímos.

Mas quando nos distanciamos dessa luta que deve envolver a todas as pessoas que creem em autodeterminação na coexistência de diversas singularidades (individuais e coletivas), é a tragédia que se repete, a farsa de que a nação é inclusiva e de que a democracia de mercado não é uma sorte de oligarquia que vive de morte. E se escorrego em idealizar o que estaria distante, dificulto a mim e a outras pessoas que comigo caminham a percepção de que as violências ocorrem aos nossos lados, proximamente, de que muitas vezes somos partícipes inconscientes de sua nutrição – e daí, na menos pior das hipóteses, surge uma culpa que em nada favorece a constituição de laços de solidariedade, mais que nunca exigidos pelas circunstâncias atuais que não nos permitem prever quase nada muito à frente.

 

 

 


Créditos na imagem: Higino Tukuya em frente a gravuras rupestres do Alto Rio Negro (Amazônia Real/Raoni Valle).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Santos da Silva

Nascido em 1982, professor de filosofia, pesquisador da Modernidade e de política. Nos últimos anos, os trabalhos têm se envolvido com um arco maior de disciplinas, mas que geralmente culminam em algum aspecto das políticas.

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