No momento em que comecei a escrever este texto, o Brasil já contava com mais de 75 mil brasileiros oficialmente vitimados pelo Coronavírus e, apesar de cerca de 1000 mortes diárias, os números parecem assustar cada vez menos. Digo isso pois o coronavírus já não é mais manchete e as atividades comerciais em geral, além das relacionadas ao lazer, estão sendo retomadas. É cada vez mais comum ver aglomerações e o descuidado parcial ou completo dos brasileiros com relação ao vírus que, meses antes, fez com que o mesmo povo se confraternizasse com a situação impressionante da Itália – que também tinha seus 1000 mortos diários – de tal forma que os estoques de papel higiênico e álcool em gel nos supermercados se esgotaram em pouquíssimo tempo. Se estávamos nos preparando para o apocalipse, o certo é que essa forma de imaginar as consequências do vírus se extenuou quase por completo em nossas dinâmicas sociais, e o tão falado “mundo pós-pandemia” virou uma busca incessante e desleixada pelo mundo anterior a ela. Então a pergunta que fica é: onde nós falhamos?

Almejo prescrutar essa questão de duas maneiras: primeiro usarei do arcabouço teórico inclusivo à crítica da ideologia realizada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek. A reflexão sobre a ideologia se faz aqui em um contexto privilegiado, pois, a partir da instauração do “novo normal”, que compele a ausência completa de imaginação política frente à realidade pandêmica, poderíamos perceber “a existência da ideologia qua matriz geradora que regula a relação entre visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação” (Zizek, 1996, p. 7). Nesse sentido, as motivações da crítica ideológica zizekiana dirigem-se a nós, já que o fascínio do autor pelo tema recai sobre o fechamento dos horizontes de transformação sociais inclusas ao mundo pós-89, tendo em vista o triunfo do capitalismo liberal, visto como única alternativa possível de uma sociedade que se considera “pós ideológica”. Ou como o filósofo escreve: “Parece mais fácil imaginar” fim do mundo” que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o “real” que de algum modo sobreviverá” (Zizek, 1996, p. 7).

A segunda maneira parte da análise de uma das fontes mais ricas para se compreender a articulação da ideologia cínica no combate ao coronavírus no Brasil: as falas e ações do atual presidente Jair Bolsonaro. Não que ainda seja perfeitamente claro o grau de responsabilidade do presidente frente à tragédia, mas é certo que seus dizeres e fazeres representam a maximização do discurso ideológico cínico contemporâneo, ou, como Zizek nomeará, a ideologia “em-si-e-para-si” – utilizando-se de categorias da dialética hegeliana. Realizaremos esse correlato com devida profundidade ao longo do texto, por ora, ensaio uma explicação mais adequada sobre o que Zizek dimensiona quando trata do tema da ideologia.

Segundo o filósofo, podemos pensar em três eixos centrais para formular o funcionamento de uma ideologia: o clássico marxista “em-si”; o “para-si”, que representa a materialidade ideológica; além de seu modo “espontâneo”, a ideologia “em-si-e-para-si”. No que diz respeito ao primeiro modo, primeiramente difundido em “A ideologia Alemã”, livro de Karl Marx e Friedrich Engels que só viera a público em sua completude na primeira metade do século 20, podemos entender ideologia como “doutrina, conjunto de ideias, crenças, conceitos e assim por diante, destinada a nos convencer de sua “veracidade”, mas, na verdade, servindo a algum inconfesso interesse de poder” (Zizek, 1996, p. 7). O marxismo elaborará esse conceito a partir do estudo científico do desenvolvimento histórico das relações de trabalho (sua divisão) e a cisão de classes, no processo que estrutura as dinâmicas institucionais do Estado moderno e a forma da sociedade capitalista. Nesse sentido, a ideologia se articulará como formação não espontânea, visto que a classe dominante não simplesmente tem o controle dos meios de produção, mas distorce as experiências no interior da vida a partir da produção do trabalho espiritual[1], ou seja, produz representações falsas da realidade social, obscurecendo, dessa maneira,  “o acesso ao Real da economia política onde encontraríamos a totalidade dos mecanismos de produção do sentido e de reprodução da realidade social”(Safatle, 2003, p. 197). Logo, nessa conjuntura, a tarefa da crítica ideológica seria a de desvelar (por meio de processos hermenêuticos) as contradições imanentes que se realizam na concretude das relações sociais (sua base material), uma vez que elas foram “recalcadas” pela classe dominante através da positivação de ideias que ocultam os interesses de dominação.

O segundo eixo é o “para-si”, que seria  “a ideologia em sua alteridade-externalização, momento sintetizado pela noção althusseriana de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), que apontam a existência material da ideologia nas práticas, rituais e instituições ideologias” (Zizek, 1996, p. 18). Essa noção tem como grande formulador o filósofo francês Louis Althusser, que compreenderá que o campo ideológico não simplesmente se baseia em um conjunto de ideias e representações equivocadas que promovem os interesses da classe dominante, mas que, de outro modo, se constitui em formas de reprodução material, através das escolas, sindicatos, igrejas, hospitais e outras instituições. Ou seja, é a partir da exteriorização de certas práticas, por meio desses aparelhos, que o ser social se assujeitará enquanto ser ideológico. Nesse sentido, a ideologia não é só a ideia que oculta as contradições postas na materialidade das relações sociais, mas uma verdade autorreferencial (e não no sentido objetivo) sobre a nossa posição subjetiva. O que nos leva a conclusão que o campo ideológico se encontraria nos próprios mecanismos e rituais que o geram – tornando possível estabelecer uma homologia entre o “para-si” da ideologia e o status da verdade na psicanálise, uma vez que, como define Jacques Lacan em uma breve elaboração sobre a verdade nesse campo: “A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decide por um sim ou um não, ela desencadeia a verdade como tal. Ela só é verdade na medida em que é verdadeiramente seguida” (apud Zizek, 2012, p. 14)

A grande “descoberta” zizekiana está no terceiro eixo da ideologia, o “em-si-e-para-si”, que permitirá ao autor tanto reconciliar os dois primeiros eixos, como afirmar a posição do cinismo como atitude ideológica de nossos tempos. Podemos entender essa colocação pela extrema dificuldade em separar a realidade e a ideologia na era do “capitalismo tardio”, uma vez que ela deixa de ser uma formação não espontânea que se impõe em representações ou na materialidade dos aparelhos ideológicos, para se constituir em um terreno obscuro de naturalização – terreno este que é permeado pela atitude cínica, ou seja, uma atitude que reconhece os pressupostos ilusórios do próprio discurso universal ideológico, mas que, mesmo assim, continua a utilizá-los, impossibilitando sua superação.

Para formular com mais profundidade o cinismo, devemos dar um passo atrás e ter em mente a relação entre o Real e realidade na teoria psicanalítica de Jacques Lacan: a realidade é o nosso universo simbólico, já o Real é o que resiste a simbolização, como uma lacuna sem nenhuma substância que impede o fechamento da realidade simbólica em um todo harmonioso. Ou seja, o Real se faz como um antagonismo e existe através de um lugar ainda não positivado pela linguagem. Assim, se a problemática epistemológica aberta pela concepção clássica da ideologia se refere a atingir, por meio do processo da crítica, a realidade objetiva tal como ela é, Zizek almeja superar esse impasse ao inferir que a crítica a ideologia na contemporaneidade se sustentaria como “referência ao antagonismo que precisa ser excluído para que a realidade social se constitua como tal” (Ponciano, 2020, p. 41). Portanto, na concepção do filósofo, a ideologia funciona como a tentativa de constituição de um todo harmônico junto à obliteração do antagonismo por meio de mecanismos e representações falsas ou verdadeiras.

Entra em cena a principal tese zizekiana acerca da ideologia, a de que ela se estrutura como uma fantasia social. Na psicanálise, a fantasia é o que realiza o desejo do Eu através do desejo do Outro[2], delineando os caminhos para a obtenção do gozo[3]. De maneira semelhante, a fantasia social é o que nos permite apreender as falhas do universal ideológico e continuar a experienciá-lo, assim como “criar uma realidade consistente na qual nenhum antagonismo Real, nenhuma inadequação intransponível pode ter lugar e tudo se dissolve na positividade harmônica de um gozo sem falhas”  (Safatle, 2003, p. 197).

Percebemos mais uma vez que operação realizada por Zizek muda completamente as coordenadas de estudo acerca da ideologia. Se antes esses estudos se pautavam pelo caráter ilusório da ideologia a partir de uma leitura sintomal[4], como se os sujeitos não soubessem daquilo que fazem por causa do véu ideológico que lhes foi imposto, agora seria como se eles já soubessem que por trás do que fazem existem certos interesses de dominação, mas, mesmo assim, continuam a fazê-lo. Nesse sentido, a ilusão é dupla, pois “consiste em passar por cima da ilusão que estrutura nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão desconsiderada e inconsciente é o que se pode chamar de fantasia ideológica” (Zizek, 1996, p. 316). Ou seja, a ilusão não se configura simplesmente no “saber”, mas também no “fazer”, como se os sujeitos estivessem concisos de suas próprias ilusões, mas escolhessem agir como se não soubessem. O que nos permite afirmar que esse agir, oriundo da fantasia ideológica, desloca o sujeito de qualquer encontro traumático com o Real de seu desejo, com o abismo desse vazio, para adentrar em uma rede de predeterminações positivadas por um Outro que, assim, configura sua existência e seu agir – o que gera o perigo da “pseudo-atividade”, como afirma Zizek.

A partir dessa introdução sobre a questão da ideologia no filósofo esloveno, como poderíamos situá-la no que diz respeito ao combate do coronavírus no Brasil, mais especificamente, a partir das falas e ações do atual presidente? É preciso deixar claro que a problemática ainda está em aberto, que estamos adentrando em terreno escorregadio sobre o qual um distanciamento histórico e o contato com outras áreas do saber talvez ajudassem a postular um quadro mais claro e rigoroso sobre ela. Entretanto, alguns elementos que se referem a teoria zizekiana da ideologia estão potencialmente manifestos nesse cenário.

Primeiramente, a chamada “postura negacionista” do presidente brasileiro, que vem sendo tratada com exaustão nos círculos de imprensa, intelectuais e pela população do país. De maneira resumida e geral, podemos entender que o negacionismo se coloca como um discurso que recusa as evidências científicas e as recomendações de especialistas de determinada área do saber frente a uma situação de impasse. O histórico de falas e ações de Bolsonaro não deixam dúvidas quanto ao fato dele ter diminuído a importância do coronavírus ou contrariado as recomendações estabelecidas em consenso pelos médicos e infectologistas. Logo nas primeiras semanas de transmissão do vírus, que já era preocupação mundial, se referiu à COVID-19 como uma “gripezinha”. Pouco tempo depois, deixava evidente em suas falas e ações que antagonizaria com a OMS e grande parte dos governadores brasileiros no combate à doença: enquanto seus “rivais” pregavam cautela e isolamento social como meio de diminuir a transmissão do vírus, Bolsonaro estimulava manifestações e aglomerações favoráveis a ele pelo país, indo ao encontro dos próprios manifestantes em algumas delas. A “desobediência” do presidente era corriqueira, o que tornou insustentável a permanência de um de seus ministros da saúde, que divergia abertamente do chefe. Pouco tempo depois, outro ministro da saúde perdia o emprego, dessa vez por destoar do uso de um medicamento como forma de tratar os sintomas iniciais da doença. A Cloroquina, o remédio prescrito pelo presidente, não possui eficácia comprovada, mas virou uma espécie de “amuleto” do líder brasileiro contra o coronavírus.

Ainda mais centrais para se entender a postura do presidente frente à pandemia é a sua completa falta de empatia com as vítimas fatais do vírus, além, é claro, da total inadequação com o espírito de um homem público que isso escancara. Quando uma jornalista afirmou a ele que o Brasil havia passado a China em número de mortos (superando os cinco mil), o presidente respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Antes, Bolsonaro já havia colocado que o número de mortos não o interessava, pois não era coveiro. Nesse sentido, em relação ao mote teórico deste trabalho, como é possível entender as formas ideológicas manifestas no negacionismo de um líder de Estado que ignorou todos os protocolos recomendados, tanto de saúde, como éticos, frente à maior pandemia dos últimos 100 anos?

Se faz necessário compreender que o negacionismo do presidente não é fruto dos delírios de uma mente insana, mas de uma razão que faz cálculos políticos ao apostar nas próprias contradições de seu universal ideológico. Bolsonaro é enfático ao demonstrar que não é possível estabelecer uma relação harmônica entre a economia e a conservação das vidas – afinal, alguns terão que morrer mesmo, “e daí?” –; o que parece estar em perfeita sincronia com a nossa própria incapacidade de imaginar outro mundo possível, em que novas ideias e modos de organização da sociabilidade se manifestem frente à crise. Sendo assim, é no terreno de naturalização da ideologia, como se as coisas fossem necessariamente da forma como são porque são, que os interesses particulares se afirmam ainda com mais veemência, como interesses universais. E o presidente talvez seja quem melhor compreendeu e empreendeu esses interesses em seu cinismo ideológico: ele não nega o antagonismo entre economia e saúde, visto que sabe exatamente que se as pessoas ficarem em casa se protegendo, o sistema de produção capitalista perderá por completo a força de trabalho que o possibilita. Entretanto, Bolsonaro age como se não soubesse ou como se falasse em nome do benefício de todos. Logo, algumas dezenas de milhares devem se arriscar e morrer para as coisas continuarem a ser como são.

Dessa maneira, podemos concluir sobre a funcionalidade do conceito de ideologia elaborado por Zizek com relação ao combate do coronavírus no Brasil. Seria a partir da fantasia que estrutura a realidade social que os sujeitos podem vivenciar a situação absurda da realidade sem se “desintegrarem”, ou seja, de sobreviverem enquanto sujeitos apesar do “caráter ilegal e ilegítimo da instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real, em que se sustenta o próprio reino da lei” (ZIZEK, 1992, p 63). Isso quer dizer que é a partir da substância de uma fantasia geradora da nossa percepção de mundo que nós podemos aceitar certas condições e regras desprovidas de caráter lógico, constituindo, assim, uma realidade que se apresenta como harmônica – tendo em vista os caminhos para a obtenção do gozo –, mesmo quando as contradições e as violências extremas da ordem legitimada são evidentes.

 

 

 


REFERÊNCIAS

PONCIANO, Gabriel H. L.  Tramando nós: ensaios sobre filosofia e política. Tese (Doutorado em filosofia). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 41. 2020.

SAFATLE, Vladimir. Posfácio: A Política do Real de Slavoj Zizek. In: ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao Deserto do Real. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003, p.179-191.

ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro. Contraponto, 1996.

_______. Eles Não Sabem o Que Fazem: o Sublime Objeto a Ideologia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1992

_______. Vivendo no fim dos tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012.

 

 

 


NOTAS

[1]O trabalho espiritual diz respeito à produção de ideias, através de intelectuais, escritores e etc, que legitimam os interesses da classe dominante como interesses universais. Ou seja, há uma cisão no interior da classe dominante, entre aqueles que detêm os meios de produção e aqueles que produzem representações que garantem a validação da forma de sociedade capitalista.

[2]O Outro (com “o” maiúsculo) na psicanálise é o campo determinações simbólicas que envolvem os sujeitos desde seu nascimento. É pelo Outro que o sujeito se constitui como tal, visto que o Outro fornece através do simbólico um sentido para o seu desejo ou falta.

[3]Na psicanálise, o gozo não é o mesmo que prazer. O prazer diz respeito ao equilíbrio, enquanto o gozo existe na forma de falta, excesso e desiquilíbrio.

[4]Aqui entra a tese de Jacques Lacan de que Marx inventou o sintoma social através do fetichismo de mercadoria. Na psicanálise, o sintoma diz respeito há algum elemento estanho de um todo, que irá se constituir a partir da negação (recalque) e retorno desse elemento sob outra forma. No sistema capitalista, esse recalcamento se dá nas relações sociais de produção, uma vez que o universal da sociedade capitalista nega um elemento central de sua constituição: a classe operária. O fetichismo seria o sintoma dessa negação, já que, segundo Marx, as mercadorias perdem sua forma de objeto, libertam-se de seus produtores  e adquirem “vida própria”, dominando seus criadores.

 

 

 


Créditos na imagem: “The Pervert’s Guide to Ideology” (2012). Direção: Sophie Fiennes.

 

 

 

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