O que sei do espaço

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Pensar no espaço – ainda me encontro isolado em razão da pandemia – tem tocado em duas pontas de minha sensibilidade: em uma, enquanto aguardo ir a lugares que talvez me aguardem, uma ansiedade que dói e sufoca me leva a limites mentais perigosos; em outra ponta (me parece que os limites aqui são móveis, ainda assim), sinto o espaço da minha casa mais comungado à minha tranquilidade e isso me faz despertar um novo carinho por ela, que passa por um autocuidado, de mim, que a habito. Quero acreditar, esse cuidado encarnou e desde agora será mais cotidiano em minha vida. Sei, afinal, que o espaço – e isto seria comum a ambos os extremos – é onde meu desejo traça linhas e retas que me permitem falar de horizontes que unem o que em mim é singular e o que em mim apenas existe sob instigação do que e de quem está “fora”.

Entre os extremos e os incluindo, sigo certo esforço de prosseguir trabalhando e de jogar, com meu trabalho, com algumas possibilidades criativas – a criação então faz notar que o fora e o dentro, de minha diminuta perspectiva, são ou amplos ou sufocantes de modo simultâneo, que a instigação que “vem de fora” depende das camadas de minha imersão em outras pessoas e delas em mim; percebo, então, que a própria criação é um espaço em que coabitam pessoas que insistem em ser da mesma laia e que põem o desejo como presença em todos os lugares que ocupam. Não há espaço vazio. Passo a ver o espaço como campo de possibilidades em propiciar desejo e alegria, intimidade, encaminhar sabotagens e afins. Essa percepção não precisa ser refletida, mas agora, que o faço, pergunto-me se ela – que deriva da experiência – seguirá comigo nos lugares que pretendo, quem sabe, um dia ir ou tornar a ir.

Sabemos que cada palmo que ocupamos, “normalmente”, já foi molhado com o sangue de muitas pessoas. Sabemos também que a “tranquilidade” do lar, supostamente um direito, porta em seus espaços a reprodução de privilégios que começaram a chamar um pouquinho mais de atenção por causa das quarentenas. Sem incentivar a culpa, muito da toada das resistências sempre foi a de desfazer os privilégios, para que o autocuidado a que me referi acima não seja recurso de poucas e poucos e apenas em tempos de urgência (e, no momento em que escrevo, olho pela janela, e parece irreal falar ainda em quarentenas e isolamentos). E muito da resistência que vai seguir – sem profecia, somente é um aspecto cuja “essencialidade” está sendo reforçada – consistirá em reocupar os espaços antes banais e transformá-los em espaços criativos, transformá-los em campos de fertilização de afetos alegres e de compreensão de afetos tristes.

O único modo de desbanalizar a pergunta: “as coisas mudarão ou permanecerão as mesmas?” é responder com práticas, como vem sendo feito no que diz respeito às condições materiais de quem está mais vulnerável (feito, como ressaltei no texto passado, não por governos ou entidades privadas). As práticas não podem ser generalizadas ou idealizadas, então será o caso de reocupar os quadrados das salas de aulas, as pluridimensões do bar, derrubar tapumes das praças e fazer tais espaços valerem a pena. Também será traçar rotas cotidianas diferentes das anteriores, na medida do possível, para que possamos promover encontros menos previsíveis – isso contra a previsibilidade do comércio e do silêncio em “horas de descanso”, ou seja, será cada vez mais impossível separar tempo e espaço. Porque a reapropriação dos espaços dará de frente com a temporalidade ressentida de quem se conforma em receber e gastar salário, além de seguir uma agenda de lazer.

A convivência com as pessoas de nossa laia é, em igual proporção, meio e fim. Há objetivo mais nobre do que poder conviver com as pessoas e não-pessoas que se ama com base no desejo, e não em hábitos e obrigações desagradáveis e até perigosos? De minha diminuta perspectiva, pôr esse desejo à mesa é um convite necessário a nos fazermos reciprocamente, “ofertando” o próprio tempo na convicção de que, por uma duração, certo espaço será seguro porque todas as presenças ali, singulares, veem como sentido o estarem juntas por razões que não sejam a compra, a venda, a obrigação ou a simulação de prazer.

Será frustrante notar que nossas relações com os espaços que ocupamos apenas se modificaram pela presença de máscaras e álcool em gel. Mas a frustração provém de uma espera, e o desejo não pode ser confundido com uma espera passiva, assim vazia. A minha saudade dos lugares é menos saudade, creio, do que vontade de modificá-los junto a alianças que já tenho e que ainda terei. Tampouco farei questão de carregar comigo o peso dramático de um acontecimento mundial – mais uma vez, os desejos que se põem em comum primam pela alegria e pelo conhecimento, e cada vez mais espaços tidos como vazios ou banais devem ser lugar de passagem de práticas que podem, quem sabe, serem de resistência na medida em que incitam a resistência.

 

 

 


Créditos na imagem: Pierre-Auguste Renoir, Paris, le quai Malaquais, 1874. Óleo sobre tela.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Santos da Silva

Nascido em 1982, professor de filosofia, pesquisador da Modernidade e de política. Nos últimos anos, os trabalhos têm se envolvido com um arco maior de disciplinas, mas que geralmente culminam em algum aspecto das políticas.

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