A teoria de Herbert Marcuse, apesar de sua diminuta presença na academia e nos debates atuais – a não ser pela sua presença nos discursos conspiracionistas – ainda pode nos dar elementos interessantes para pensarmos a realidade e as possibilidades de sua superação. Levando isso em conta, buscaremos discorrer brevemente sobre a teoria social produzida por Marcuse.

Marcuse, que foi aluno de Heidegger e posteriormente seu crítico, também foi um dos principais nomes da Escola de Frankfurt, junto com Adorno, Horkheimer e Walter Benjamin. Dessa escola, Marcuse herdou e ajudou a construir a chamada de Teoria Crítica, bem como também contribuiu para o desenvolvimento da metodologia própria dessa escola: a dialética negativa[1].

De modo geral, produção intelectual de Marcuse é envolto por diversos questionamentos e reavaliações de conceitos filosóficos, os quais foram enriquecidas com elementos materialista. Assim, conceitos como os de essência foram apontadas como relevantes na compreensão da sociedade, pois a compreensão das características essenciais dos sujeitos humanos, bem como o entendimento das limitações imposta às suas realizações plenas, ajudariam a clarear as potencialidades inerente aos indivíduos e desvelariam os entraves sociais que impedem o desenvolver desses potenciais. Ainda, conceitos como os de utopia concreta, trazida de Ernest Bloch, foram essenciais para a construção da sua teoria, bastante peculiar, a qual podemos chamar de “teoria social emancipatória”.

Entretanto, referente as influência teóricas mais fundamental para a compreensão do pensamento de Marcuse, encontram-se a psicanálise, formulada por Sigmund Freud, e a Crítica da Economia Política, desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels. Essas duas teorias foram apropriadas pelo autor, confrontadas, criticadas e ressignificadas.

Da psicanálise, a partir de uma leitura filosófica do pensamento de Freud, Marcuse afirma, na contramão da conclusão de Freud, a possibilidade de um mundo não-repressivo. Para compreendermos este ponto nevrálgico é necessário retomarmos a obra “Eros e Civilização” (MARCUSE, 1996), onde este argumento foi desenvolvido.

Em Freud, sobretudo na sua obra O Mal-Estar da Civilização, é desenvolvido o argumento hipotético sobre a horda primordial, onde é descrito que o primeiro grupo humano se estabeleceu a partir da imposição de domínio de um indivíduo sobre outros. Este primeiro indivíduo era o pai primordial, o qual monopolizou o prazer para si, possuindo todas as mulheres do grupo e impondo a seus filhos as atividades desagradáveis – mas necessárias para a sobrevivência do grupo – para onde suas energias instintivas deveriam ser canalizadas.

Assim, através desse domínio, estabeleceu-se um modelo de desenvolvimento da civilização, o qual abriu caminhos para o progresso através da repressão ao prazer. Todavia, Freud narra que em um determinado momento existiu uma rebelião dos irmãos contra o pai, o qual foi violentamente assassinado. Desse momento em diante, visto a grande desordem nascida da ausência da figura da lei, os irmãos passaram a disputar entre si o lugar do pai. No entanto, visto que a rebelião havia produzido laços de amizades entre os revoltosos, não tardou para que concluissem que todas aquelas disputas eram perigosas e inúteis. Então, a partir desse momento a irmandade resolveu que o melhor caminho seria o estabelecimento de um tipo de contrato social.

Dessa maneira,  a rebelião contra a autoridade produziu o sentimento de culpa, pois todos os valores nascidos com o pai primordial – que uniu sexo e ordem, prazer e realidade e fez emergir sentimentos de amor e ódio – são abalados com o parrícidio. Por isso, desse momento em diante, os indivíduos, em busca da manutenção e da ordem do gênero humano, buscariam repetir, sobre novas formas, a dominação primordial, que se traduz na própria normatividade da cultura. Para adiantar o argumento de Freud, podemos dizer que toda a civilização é fruto de uma constante repressão, tanto externa (através de instituições sociais) quanto interna (da auto-repressão, do controle do Id pelo Ego) e que essa repressão é necessária, pois sem ela a civilização se tornaria impossível.

Tendo em conta isso, Freud pergunta se valeu a pena todo esse mal-estar para produzir a civilização. De certa maneira, Marcuse responde essa questão ao pontuar que a negação de Eros (prazer, instintos) foi necessária para o desenvolvimento do gênero humano, pois contribuiu para todo o desenvolvimento técnico-científico, intelectual e artísticos, fundamentais para resolver o problema da escassez. Em outras palavras, a negação de Eros, produziu os elementos necessários, para sua própria superação, visto que o desenvolvimento tecnológico coloca a possibilidade de uma vida com menos labuta. Essas possibilidades concretas de um mundo melhor é o que Marcuse compreende por “utopia concreta”: ela é utópica porque ainda não existe, porém concreta por estar contida no tempo presente enquanto possibilidade.

Essa negação do instintos em nome da manutenção da civilização, a qual pode ser muito bem visualizada no trabalho – visto que para trabalharem as pessoas devem negar suas vontades, seu querer libertário, seu momento de lazer -, é chamado por Freud de Princípio de Realidade, sendo o Princípio de Prazer (Eros) seu eterno antagonista. Assim, a humanidade seria a produção desse eterno conflito.  Entretanto, em Marcuse o Princípio de Realidade, que aparecia enquanto eterno, irá ganhar uma dimensão histórica. No capitalismo, a expressão concreta do Princípio de Realidade é o Princípio de Desempenho.

Apresentado, sinteticamente a leitura marcuseana de Freud, agora passamos ao marxismo, teoria onde Marcuse extrai a ideia da superação do sistema capitalista, ou seja, da possibilidade de um outro mundo, não-repressivo, onde o princípio de realidade não será um empecilho à felicidade e a liberdade. Ainda, o autor herda de Marx a concepção de lutas de classe, de sujeito revolucionário e de ideologia, o qual serão apropriadas e redefinidas para a compreensão do capitalismo tardio.

Porém, antes de falarmos acerca desses temas, faz-se necessário tecer um breve comentário acerca das discussões do tempo presente, onde a política de identidade, ou identitarismo, tem desvinculado a identidade da realidade concreta.

Assim sendo, devemos explicar que quando falamos em identidade, precisamos diferir identidade de identitarismo. Ou ainda, devemos diferir o modo liberal de pensar a identidade e a perspectiva crítica de pensar a mesma questão.

Entendamos identidade enquanto o pacto simbólico do sujeito com o mundo, uma tensão permanente entre o devir e a estrutura. Em outras palavras, a identidade é o processo de formação do Eu, da consciência de si. Existem várias camadas no processo de identificação; regional; étnica; de gênero; individual; social, logo, não há um essencialismo ou substância permanente. Identidade é movimento: é um labirinto sem centro. Seguindo na esteira psicanalítica podemos pensar a identidade como um furo simbólico na estrutura do sujeito, um caminho para a não-definição e a possibilidade contínua de transformação.

Por outro lado, identitarismo é a própria mercantilização e fetichização do problema, que aparece quase sempre desvinculado da totalidade social, ou seja, é uma identidade em abstrato que busca ocultar, por exemplo, os nexos entre as identidades e o sistema capitalista cindido em classes. De modo geral, esse discurso tende a defender a representatividade e inserção no mercado capitalista, sem levar em conta que a opressão às identidades estão vinculadas ao modus operandis do capitalismo. Assim, construiu-se um debate que instaura a identidade como ponto central, deslocando a crítica da estrutura para o indivíduo. Sabemos que os termos não se anulam em si, mas precisam ser investigados em sua totalidade à partir de um método adequado, que no caso de Marcuse, seria a dialética negativa.

Para o Marcuse, a luta de classes continua, porém ganha dimensões mais complexas no capitalismo tardio, onde o processo de alienação se amplia através da mercantilização da própria cultura, produzindo uma cultura afirmativa (normativa) do status quo e, portanto, dificultando a consciência de classe do proletariado. Para Marcuse, o proletariado continua sendo o sujeito objetivamente revolucionário, porém, na atualidade, ele não continua mais sendo o sujeito revolucionário do ponto de vista subjetivo. Entretanto, o autor argumenta que o sujeito revolucionário não deixa de existir: se de um lado existe uma certa anestesia sobre as consciências do proletariado em geral, por outro, emerge desse mesmo proletariado sujeitos particularmente oprimidos, os quais são excluídos e impedidos de viverem plenamente. Isso ocorre em razão desses grupos não corresponderem ao padrão identitário burguês (homem, branco, hetero). E a identidade da classe burguesa aparece como a própria norma, uma vez que a burguesia se entende enquanto universal na manutenção permanente do estado de coisas.

Assim sendo, os novos sujeitos possuem um papel importante na luta anticapitalista e na própria tomada de consciência do proletariado. Estes sujeitos passam a se organizar em luta anti-opressão, buscando igualdade, reconhecimento etc., e, mesmo quando inicialmente, ainda envoltos em uma luta espontânea e desvinculada de uma posição anticapitalista, já é possível notar os furos causados na rede ideológica da sociedade unidimensional[2]. E, tão logo esses movimentos notem a existência de uma relação entre a opressão singular e o todo estrutural do capitalismo, existirá um salto de qualidade em direção a própria destruição do sistema e a reconstrução de uma outra sociedade onde as próprias marcações identitárias promovidas pela burguesia sejam superadas.

 

 

 


Para saber mais:

Schütz, Rosalvo. “Dialética da libertação: Crítica e utopia na teoria da emancipação de Marcuse”. Dossiê Herbert Marcuse, Parte 1 (Dissonância: Revista de Teoria Crítica, v. 2, n. 1. 1), p. 125-149, junho de 2018.

BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto/EdUerj, 2005.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. São Paulo, Círculo do Livro, 1996.

MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional. São Paulo, Edipro, 2015.

MANUEL, Jones. Identidade, identitarismo e a crítica marxista das opressões. 2019. (22m53s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tTqYPuZnwbs&t>. Acesso em: 25 set. 2020.

FERNANDES, Sabrina. O problema do identitarismo (parte 1) | 038. 2019. (26m11s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4b3StHWY1ms&t>. Acesso em: 25 set. 2020.

 

 

 


NOTAS

[1] A dialética negativa é o método específico da Teoria Crítica que busca analisar a realidade, descrevê-la e, em seguida, negá-la. Porém essa negação não deve ser entendida como uma negação a priori, mas sim como uma negação extraída do próprio real. Essa negação parte da percepção de que o social possui duas dimensões: uma que pode ser descrita e outra que não pode ser, mas que existe enquanto potencial. Assim, a teoria crítica pretende não apenas descrever as coisas como elas são, mas apontar como ele realmente deveria ser e não é (NOBRE).

[2] A sociedade unidimensional – abordada no livro O Homem Unidimensional – se refere ao estágio atual do capitalismo onde o social é permeado pelo pensamento único e positivador da realidade. Em suma, na sociedade unidimensional não existe, praticamente, espaço para a crítica.

 

 

 


Créditos na imagem: Herbert Marcuse (Berlim, 1898 – Starnberg, 1979). Reprodução. Disponível em: https://maestrovirtuale.com/as-23-melhores-frases-de-herbert-marcuse/

 

 

 

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