Os ventos, a fumaça e o ar: Walter Benjamin e nós, os mascarados

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É preciso recordar, a partir do ar pandêmico e da fumaça das queimadas, quais são os ventos que carregam o anjo da história. Há 80 anos, Walter Benjamin nos deixou, mas as asas do anjo que ele descreveu, ainda permanecem abertas pelo sopro das tempestades catastróficas que nos encobrem.

Jeanne Gagnebin (1993) nos alerta sobre o fracasso de se buscar uma unidade na obra benjaminiana, sendo importante considerar a fragmentação como uma característica fundamental das produções do filósofo. Neste sentido, não só as suas leituras singulares do romantismo alemão, do materialismo histórico, ou do misticismo judaico são indicadoras de tal aspecto, mas os diversos escritos sobre a história, a linguagem ou as artes, permitem enfatizar as condições em que Benjamin viveu e o ar da intolerância que precisou respirar.

Lembremos que, foi em 1940, no ano de sua tentativa desesperada de fugir do nazismo, que a tese IX, a mais conhecida de suas “Teses sobre o conceito de história”, destacava o sopro furioso do progresso (BENJAMIN, 1993, p. 226). Foram esses ventos de um projeto de modernidade que, em escala planetária, assinalaram o potencial colonialista, genocida e destrutivo dos seres humanos, nos séculos XIX e XX. Hoje e aqui, os traços desse projeto ganharam novas roupagens e contornos, de modo que as suas consequências podem ser sentidas em todas as coisas, inclusive no ar.

Ora, mais do que metáforas, os ares, brisas e ventos ocuparam um lugar no estilo narrativo de Benjamin, compondo o encontro inesperado de imagens como um modo de propor reflexões. Estas presenças podem ser observadas, por exemplo, desde 1916, quando o então jovem filósofo produziu uma interpretação própria do texto de Gênesis, elucidando o sopro divino que insuflou na linguagem humana a capacidade de nomear as coisas, salvando-as do esquecimento (BENJAMIN, 2013, p. 60).

Já entre os anos de 1927 a 1940, quando Benjamin dedicou os seus esforços no projeto inconcluso das passagens parisienses, estas formas foram igualmente evocadas. Alguns dos trechos mencionam uma escrita que foi realizada ao ar livre, debaixo de um céu sem nuvens, que logo foi agitado pelas folhagens. Era desse movimento que “o pó dos séculos” se espalhava, afirmou ele, eram das folhas oscilantes que surgia “a brisa fresca do labor, a respiração ofegante do estudioso, o ímpeto do zelo juvenil e o leve e lento sopro da curiosidade” (BENJAMIN, 2009, p. 500).

Da brisa fresca ao sopro leve, esta pequena descrição do projeto das passagens pode ser contraposta com a presença do sufocamento, tão predominante no decorrer das décadas de 1930 e 1940. Ao invés daquela narrativa calma, Benjamin estava imerso em um cenário asfixiante. O abandono de Berlim com a ascensão de Hitler, as dificuldades em sobreviver com a recusa dos seus textos pelos jornais, a perda da cidadania alemã, além do insucesso na busca pela naturalização francesa, eram algumas das situações infelizes que o acompanhavam.

Diante da atmosfera do terror, com a invasão nazista da França, em maio de 1940, Benjamin redigiu suas teses propondo uma concepção própria da história. Mas por que este empenho de escrita em meio ao turbilhão? De onde provém, nos textos benjaminianos, aquilo que Agamben (2018) considera como o fogo que forja as palavras? Podemos dizer que a potência crítica do pensador andarilho parte da desconfiança e da rejeição ao tempo acelerado, linear e destrutivo da modernidade.

Dos trapeiros aos colecionadores, do flaneur ao narrador, Benjamin denunciou como este modelo de tempo resultou em uma concepção de história marcada pela ideologia do progresso e pela continuidade conformista. Distanciando-se do que chamou de uma história burguesa, que considerava a ligação entre o passado e o presente como imediata, homogênea e vazia, ele destacou as vozes dos vencidos que esperavam de nós uma redenção. Afinal, “não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?” (BENJAMIN, 1993, p. 223).

Benjamin procurou romper com o conformismo do contínuo, tendo mostrado que é no presente que ocorre o encontro de fragmentos do passado, onde a história e o tempo, tal como estrelas dispersas, podem formar constelações. Isto nos instiga a interrogar: quais estrelas podem ser observadas com tanta fumaça? No fogo que consome e sufoca a flora, a fauna, as populações originárias, as comunidades pantaneiras, extrativistas, quilombolas e ribeirinhas, os sopros que alimentam as chamas ainda são impulsionados pela idealização do progresso, entendido em nosso país como sinônimo da boiada que deve passar, do lucro inconsequente e da monocultura, tida como “tão necessária”.

Se o impacto do filósofo judeu permanece sendo melancólico, como comenta Gagnebin (2018, p. 11), isso ocorre “pois os ventos da esperança, no Brasil e no mundo, parecem ter parado de soprar”. Diante disso, o que nós historiadores e historiadoras poderemos dizer dos restos de madeiras carbonizadas, das cenas dos animais em desespero, ou das vozes das populações atingidas por essa tempestade que não cessa? Benjamin nos deixou as suas recomendações.

Em 26 de setembro de 1940, na tentativa de cruzar a fronteira entre a França e a Espanha, o pensador das passagens foi impedido de passar. Retido em um albergue de Portbou, e sob a ameaça de ser entregue aos nazistas, Benjamin suicidou-se com uma dose letal de morfina. No temor do inimigo que se aproximava, as teses desenvolvidas meses antes do gesto final, não somente recomendavam a construção de um conceito de história que pudesse ser efetivo contra o fascismo, como também solicitavam um olhar para a racionalidade dos atos mais irracionais (BENJAMIN, 1993, p. 226).

Carregado pelos ventos, o anjo da história sobrevoa os destroços de um território ordenado pelo conformismo. Mais do que nunca, as últimas lições de Benjamin nos recordam de que cabe ao conhecimento histórico despertar no passado as centelhas de esperança dos vencidos. São nos resquícios das vidas que permanecem desaparecendo, e nas cinzas rapidamente assentadas pelas forças da impunidade, que as pequenas brasas por nós assopradas permitirão desmitificar o vencedor.

Nas fagulhas da indocilidade, dos anseios e da coragem dos atingidos, surge a possibilidade de interrogação das versões aceitas e dos atos considerados como incontornáveis. Assim, abrem-se ocasiões para que possamos elaborar uma nova paisagem do tempo, onde seja possível desfrutar de instantes de sonhos, desejando um futuro sem o temor da fumaça, dos ventos brutais e do ar contaminado. Há 80 anos, Benjamin nos deixou.

 

 

 


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. São Paulo: Boitempo, 2018.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1993.

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34, Duas Cidades, 2013.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: n-1, 2018.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 07-20.

 

 

 


Créditos na imagem: Walter Benjamin, por Gisèle Freund, 1935.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Gabriel José Pochapski

Gabriel Pochapski é historiador com mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, é doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde desenvolve pesquisa sobre Michel Foucault. Possui experiência na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História, atuando nos seguintes temas: espaços, corpo, escrita da história e violência.

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