As eleições, fora as bizarrices que se propagam e a sujeira que se espalha pela cidade, também chamam a atenção pelos ciclos afetivos que implicam, renovando motivos de promessas e esperanças, decepções e medos, alegria e indignação, raiva e prazer que ficam na sensação de que se é enganado ou representado. Ao lado disso, algumas ideias atravessam campos habitados por tolices, tentando manter-se ideias até o fim da disputa, outras cedem e viram peças de publicidade. “Por fora” desses circuitos, algumas posições se encorpam – uma das quais já é mais comumente debatida (fora de círculos específicos), aquela que embasa o convite ao voto nulo, à ação direta, pois, nada de radical pode ser tocado pelo decorre desse espetáculo; posição cada vez menos absurda e mais compreensível, a ser discutida em recantos abertos, ainda que não esteja na ordem do dia acatar tal posição para a maioria.
Do mais, muitas análises do que vai ou não mudar com os resultados ganham o espaço nesses tempos. Mas não apenas o futuro é pauta, o passado igualmente. Não faz muito tempo, vimos que traumas violentos da história podem ser minimizados – em nome de quê? Em nome de que votar em alguém que saúda bodas com a ditadura? A triste vitória de Bolsonaro dilacerou nossos espíritos mais do que em outros momentos críticos. Ainda que a memória se desse ao trabalho de despir-se e renovar-se todos os dias, quando o próprio abre a boca – representante de fascistas declarados e instigador de quem odeia, mas é tímido – nos rememora as razões que fazem das dores e raivas dirigidas a ele um índice de salubridade em meio à assimilação da vida política pela lógica do resultado pelo investimento. Agora, como era de se esperar, nenhuma resposta significativa nas urnas, a não ser as que espelham mais a degradação da vida política em território no qual quem comanda pode se dar ao luxo de criar lados “contrários”.
Minha esperança, particularmente, não poderia ser deixada aí, às mãos de pessoas que desejam o poder. Nem posso dizer que não cedo a esse caminho que seria o comum – pois não é o caminho que me é comum, e isso seria um mau entendimento do que pode significar comum. Não cedo por meus desejos, simples e que às vezes se dão em argumentos. Infelizmente, persiste a sensação de que minha vida pouco vale, de que minha existência está à mercê de quem tem vontade de matar – essa é uma imagem, entretanto, enganosa, provavelmente eivada de privilégios. Por ela, se me deixo levar, me individualizo politicamente, e da pior forma: na apatia. Apenas confio que não me matarão, porque não há o interesse. Confiança que não podem ter as pessoas negras e indígenas em grande parte de nossos territórios, pois, há o interesse estrutural – do Estado que se quer legítimo por ser “democraticamente” eletivo – em eliminar suas vidas.
Daí, ingenuamente, eu poderia depositar a esperança na raiva (da qual eu seria enfim uma vítima). Mas esse afeto, por vezes valoroso, não é, entretanto, o essencial ao combate, até porque nos blinda às alteridades e às possibilidades de nos satisfazermos de múltiplas maneiras. As experiências que nos mostram que não é preciso atravessar a dor solitariamente não chegam a eliminar a raiva, nem devem, mas antes indicam meios de comunhão de forças interessadas em agir. Na comunhão, a esperança é desprovida dos caracteres que fariam dela um afeto passivo, é resistência ativa, da qual não é difícil subestimar os limites quando vista de longe.
Do meu cantinho, acabei testemunhando de perto os corres de uma campanha para a câmara municipal de minha atual cidade que saiu vitoriosa. À frente, ideias que assumem o feminismo, o põem em pauta e em discussão em praças públicas, de tempos e práticas que extrapolam, aí sim, o ciclo das eleições. Meu testemunho, acredito, acabou sendo um apoio, bem tácito, mais auditivo. Isso não muda que minha esperança, que acata necessariamente essas ideias, não as acompanha enquanto adentram casas legislativas. Diante dessa porta, não abandono minhas esperanças, apenas dou meia volta, enquanto não posso fazer algo de mais grave. Mas essas ideias existem porque dependem enormemente de práticas que vêm atravessando os cotidianos contra muita violência que sofrem as mulheres e pela criatividade – então, que tais ideias ocupem todos os espaços possíveis. É o mínimo.
Assim, creio que as eleições não me poderiam ser indiferentes, caso eu não tenha perdido as esperanças – ou seja, as alegrias presentes que são minhas enquanto não dependem só de mim. Em parte, pelo que é movido nos processos eleitorais, tornam-se legíveis interesses dos mais variados que convergem na mesquinhez que é nossa inimiga nos recantos aparentemente mais tranquilos, como uma grande loja de supermercados – a pompa de discussão de ideias mal disfarça tais interesses. Também nessa época mais ouvidos se abrem às ideias que sustentam o voto nulo como posição (não simples abstenção), tanto mais se às mentiras expostas se seguem conversas sobre a organização de ações diretas e modos de autonomia em relação a poderes. Enfim, com base no que disse no parágrafo anterior, algumas ansiedades a serem urgentemente trabalhadas se expressam por essas vias de mediação institucional – não por isso a serem menos compreendidas e escutadas, mesmo onde há a recusa constante dessa democracia que é imposta violentamente.
Vemos a esperança onde queremos – em outras palavras, a plantamos a partir de nossas reais necessidades, e reais são necessidades que se tem conjuntamente. Não posso, muito menos afetivamente, desengajar-me de esperanças que busquem a total aniquilação das causas de apatia diante da fome e da dor desnecessárias. Os baques de viver em um país em que a maioria da população é conivente com Bolsonaro (e faltam adjetivos para ele!) não chegam a deslocar em mim – e sei que em muitas outras pessoas – o verdadeiro eixo da esperança, o qual se confunde com nossa própria atividade.
Créditos na imagem: lily padula (ilustradora) / Disponível em: https://www.instagram.com/lilypadula/?hl=pt
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Daniel Santos da Silva
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