Diário Sirimim

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Em maio deste ano, no auge da pandemia de Corona Vírus, da COVID 19, fiz uma conversa online sobre diários com a empresária, praticante e mestra de ioga, Ana Luisa Matsubara (ESYSP), no Instagram. Transcrevo, aqui, apenas as minhas falas. Por uma questão de espaço desta coluna, omito as falas de Ana Luisa Matsubara. Entretanto, aos interessados, deixo o link da live no final deste texto. Após as saudações e cumprimentos, eu disse: pego como gancho, justamente, essa sua fala de um diário de infância, de um diário de quando você era criança, porque, por exemplo, nos anos 30, no Brasil, até 40, talvez 50, os diários eram prática escolar. As meninas em sua maioria, não que meninos não pudessem fazer, mas as meninas de um modo geral tinham como lição de casa fazer um diário, era uma das tarefas da escola. Inclusive, consultei, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, um diário de uma menina de 14 anos, só que 14 anos na década de 30. Então ela diz coisas sobre o dia a dia da escola, as coleguinhas, as professoras, as dificuldades, os relacionamentos. E ela deixa bem claro que além dela se colocar como uma menina, as suas angústias, as suas dúvidas, ela acaba narrando um cotidiano escolar que documenta como é que era o ensino no Brasil nos anos 30. Então, ela deixa a gente perceber lendo o diário uma historicidade de uma época no Brasil. Hoje, os diários eles são muito dispersos, porque o público que escreve, escreve não só em cadernos, em agendas ou em cadernetas, mas escreve, sobretudo, em suas redes sociais. Então, as redes sociais, elas, acabam sendo um suporte também para diários. Então, quando você me conta que escrevia um diário de quando era menina, você me remete a um fazer um pouco perdido, talvez. Mas eu me lembro, por exemplo, nos anos 80, que as meninas faziam diários em agendas e que elas colavam tudo aquilo que lhes era precioso ou que lhes era afetivo do seu dia a dia. Uma embalagem de bala, um ingresso de cinema, um recorte de revista e iam colocando nas agendas, fazendo uma espécie de diário. Não sei se você chegou a fazer agendas assim. [intervenção de Ana Luisa Matsubara]

Exato. E, agora, os diários, eles, são uma prática de escrita muito antiga. Claro que eu não vou aqui voltar no tempo de Heródoto 400 e tanto antes de Cristo. Mas o Heródoto é um viajante que anotava coisas. Não fazia propriamente um diário, mas esse sistema de anotação e de notação veja os termos anotar, notar, né? Notar é botar reparo, é prestar atenção. Então o diário exige um pouco [se não muito] de atenção, exige um pouco de sensibilidade, de observação. Heródoto fazia as anotações para escrever história. História dos caldeus, de povos anteriores ao que a gente conhece como a Grécia de onde ele viajava. Ele tá muito longe de nós. No século XVII, 1600, havia guerras aqui no Nordeste do Brasil e eram anotadas coisas sobre as guerras Então, há um diário de Pernambuco, da guerra de Pernambuco. Então, o diário também é uma escrita de historiadores, de registro e de memória. Agora, o que nos interessa são os diários pessoais, os diários que pessoas, vamos dizer assim, comuns, como nós que somos comuns, humanos [risos] fazem, não é? Nossos diários. Eu como garoto não tinha essa prática de escrita, mas como sempre gostei de escrever, quando cheguei numa idade mais avançada eu comecei a fazer diários. Ao invés de ser um diário de menino, já era um diário de moço, já era um diário de adulto. Eu me interessei, justamente, porque pensei num curso sobre escrita e leitura de diários. E, para que eu ensinasse a escrever diários e a ler diários, eu tinha que fazer diários. Então eu aproveitei um processo meu de caminhadas diárias, caminhadas mesmo a pé, andando na rua, e ao mesmo tempo que eu fazia um tratamento para fortalecimento do fígado com medicina antroposófica. Então, eu tomava o medicamento da Farmácia Sirimim, vai aí a propaganda da farmácia [risos], que fortalecia o fígado. Então, eu chamei de Diário Sirimim.  Então, eu tenho dois diários, isso há 10 anos, Sirimim. Nos diários Sirimim, eu falo coisas da minha caminhada. É uma caminhada empírica, uma caminhada física, mas é uma caminhada no sentido de que a minha vida tava indo pra frente, meu tratamento tava indo pra frente. Então era um diário de tratamento, percebe? [intervenção de Ana Luisa Matsubara] Esse meu diário acompanha o processo. Ele não é um diário ortodoxo. Ele não é um diário previsto pelos gêneros literários, nem pela ciência, nem pelos estudiosos. Ele é um diário que atende uma necessidade de quem escreve e de quem precisa se tratar. Ontem, eu fui olhar para esse diário. E me surpreendi com coisas que escrevi há 10 anos. Então, pra quê que a gente escreve um diário? Acho que era uma pergunta que você ia me fazer. [risos] A gente escreve diários, muitas vezes, pra que a gente se conheça. Mais do que para que os outros nos conheçam, pra que a gente se perceba como ser humano, como indivíduo. Nem sempre a gente consegue fazer perguntas para os outros. Ou ter resposta dos outros, da vida. Então, o diário acaba sendo um processo muito íntimo, muito pessoal, em que a gente mesmo coloca as nossas dúvidas, as nossas questões. Então eu fiz um diário que tinha uma função, uma finalidade. Era eu perceber em que medida aquele processo terapêutico estava avançando ou não, a que lugares ele me levava. Então, a caminhada é dupla, não é? Uma caminhada ali de dia a dia, escrever e andar; e uma caminhada da vida mesmo, não é?

Como o diário pode estar encaixado dentro de um gênero existem algumas regras. Então, é claro que o escritor é livre e ele vai fazer o seu diário, mas há questões que são fundamentais que caracterizam aquele gênero. Se a gente pensar que o diário é um tipo de escrita, tem algumas coisas que são básicas, que definem. Há enunciados que a gente escreve que são básicos no diário. Em princípio, a gente vai marcar o dia, a gente anota, hoje, por exemplo, é dia 27. Então, 27 de maio de 2020. Primeira coisa, se a gente for organizar, tipicamente, num diário, a gente põe a data. Eu consultei diários, por exemplo, de gente que foi pra guerra, que batalhou na Segunda Guerra e fazia diários nos intervalos do trabalho. Começava sempre dizendo: “eu acordei às 04h30min da manhã, levantei, fiz minha higiene, me vesti, e tomei café”. Daí começa a narrar aquele dia do ponto de vista das atividades. “Eu fui pro campo”, “eu fui pra pista de avião”, “eu fiz minhas funções”. É claro que é o diário de um combatente de guerra, então ele não dá muitas dicas estratégicas bélicas, porque se o diário for apreendido ele entrega para o inimigo dados que não devem. Mas, basicamente, ele narra o dia. E tem sempre essa fórmula: a data, a hora que acorda e a sequência das ações que praticou durante o dia. Friamente, seria isso. E encerra dizendo que foi dormir, como foi dormir. E sempre narra o estado de espírito, para além das ações nuas e cruas, vamos dizer assim, né? Isso seria uma fórmula bem ortodoxa [risos] de diário que tem essas questões. Agora, o diário, como ele é uma escrita pessoal, ele é sempre narrado em primeira pessoa. Eu. É o espaço do “eu” falar. Mas a gente pode criar uma personagem. Pode dizer que a gente é o Peter Pan. Eu não gostaria de ser o Peter Pan [risos]. Por que a gente tem que pensar também se o diário vai ser lido por outro ou se ele é só pra nós. Muda um pouco a escrita do diário quando a gente sabe que outra pessoa vai ler depois. Entende? Eu penso. Quando eu escrevi o Diário Sirimim, eu não tava muito importando se alguém ia ler aquilo ou não. Hoje, se eu fosse publicar, ele tá inédito, mas se eu for publicar o Diário Sirimim, algumas pessoas que eu cito no diário, talvez eu coloque só a inicial do nome, não o nome todo, pra preservar, vamos dizer assim, a privacidade do outro. E também algumas passagens, talvez, eu não queira que alguém saiba que eu tal ou qual coisa, porque são pensamentos muito íntimos, né? A gente deve usar máscara contra COVID, mas a gente sempre usa um pouco de máscara social, né? Na vida. A gente não diz tudo pra todo mundo. Essa questão acho que é uma questão importante. Em que medida o nosso diário, aquele que a gente faz, que eu faço que os nossos ouvintes e vedores fazem, né? Pessoas que estão nos vendo vão fazer até que ponto esse diário vai ser lido ou não vai ser lido? [intervenção de Ana Luisa Matsubara]

A gente pode regular um pouco, omitir um pouco. Por exemplo, eu li ontem uma passagem do meu Diário Sirimim que eu fiquei assim pensando se alguém fosse ler isso, talvez eu ficasse encabulado, porque revelava talvez um lado frágil, um lado, entendeu? Humano, que a gente não gosta muito de mostrar, né? Totalmente. Mas era importante pro diário terapêutico que eu mostrasse aquele lado frágil. Inclusive, na época eu fazia terapia também, fazia psicanálise. Então, eu tinha um médico homeopata, antroposófico, uma psicanalista e eu tinha minha vida. Então, esse diário tinha essas motivações. Eu não lia esse diário nas sessões, nem com o médico, nem com a psicanalista. Mas eu tava me cercando também de conhecimentos. Agora, mesmo que os diários não sejam tão terapêuticos diretamente, eles são instrumentos de autoconhecimento. [intervenção de Ana Lu Matsubara] Eu me lembro de que na época da Graduação, quando eu estudei Letras, havia uma professora que se interessava por diários de leitura, que eram diários em que os alunos escreviam o que liam, anotando a sua experiência de leitura. Era um diário que ajudava no processo de formação. O diário é extensão da sua prática. E ele é um registro que permite você avaliar a sua ação profissional, por exemplo. A gente falou sobre quem escreve diário. Se ele é pra ser lido ou não por outros. Como se escreve diário? A gente disse algumas coisas que tem a ver com fórmulas de registro. Mas elas são livres, porque imagino que se você fosse começar um diário não necessariamente começaria assim: dia 20 de maio… Você talvez tenha uma datação, mas você não precisa ter uma datação. Basta você contextualizar pra que você depois não se perca, né? O diário é um modo de organizar. O diário de estudo. Seria fundamental que os estudantes fizessem diários de estudo, um diário do seu dia a dia de estudos. Proporciona uma síntese, um maneira de organização das leituras, do que está sendo estudado. Hoje, a gente tem um material rico, suportes muito variados. A gente pode escrever no celular, a gente pode escrever no computador, a gente tem as cadernetas, os cadernos. Cada um vai ver o que é mais prático pra si. Como são melhores pra si os modos de fazer anotação. Agora, o escritor de diário ele precisa observar. Observação é uma característica, é uma ação fundamental para escrita de diário. Observar. Observar a si, observar a sua ação, observar a vida, o dia a dia, as coisas. Quando eu caminhava e escrevia o diário de caminhada, eu observava o mundo exterior, mas observava a mim, meu humor, meu estado de espírito, como o dia refletia em mim ou não. Então, é uma observação muito ampla. Não é uma observação só sobre algo. Mas observação é uma coisa importante. Eu já disse que diário é registro, anotação. Agora, sabe uma coisa curiosa? Nos dias de hoje que a gente não pode sair à rua, estamos todos em quarentena, cuidando dos outros e cuidando de nós mesmos, eu não tenho muita observação exterior, não é? Então, como ficou meu diário? Fica restrito ao interior da minha casa. Puxa, acaba sendo uma coisa muito pobre, né? Eu moro num sobrado e aí eu tenho um espaço físico pra andar dentro do sobrado, muito restrito. Mas eu descobri que não é tão pobre. Porque eu passei a observar como é que a luz entra na minha casa. Coisa que eu nunca fiz. Então, eu comecei a criar uma espécie de diário visual, em que eu fotografo a luz entrando na minha casa, nos cômodos, pela janela, pela fresta da porta, onde ela reflete. Em vários horários do dia. A princípio porque me chamou atenção uma luz refletida no chão. Depois, eu vi que eu tava perseguindo essa luz. Perseguir a luz é uma coisa boa [risos], faz bem pra nós. Aí eu vi que estava fazendo um diário fotográfico da luz entrando em minha casa. Passou a ser interessante fazer esse diário, porque eu explorei lugares que eu nunca prestei atenção que a luz entrava. Então, há surpresa também ela é importante para quem escreve. Se surpreender, se deixar surpreender. Então, a escrita do diário também faz bem, digamos assim, para acalmar a ansiedade, para talvez mudar um pouco o estatuto do auto reconhecimento do que você faz. Vamos dizer autoestima, você escrever um diário, se você anota suas coisas é porque você as valoriza, e você está se valorizando como pessoa. Você é personagem de um diário, sua ação pertence a um diário. Eu acho que é também importante a pessoa pensar um diário em que ela é uma personagem. É ela, mas é uma personagem. Personagens têm importância. [intervenção de Ana Luisa Matsubara] Eu queria lembrar só uma coisa do meu Diário Sirimim, que eu acho que a gente já tá meio no fim da nossa conversa, houve um dia que foi o 17º dia do Diário Sirimim (do primeiro que eu fiz), que foi dia 28 de maio de 2010, dez anos atrás, são duas linhas que eu escrevi que eu acho que são interessantes pra gente pensar em que medida o diário tem uma forma fixa, mas ele pode ser rompido, pode ser criativo de acordo com cada um que escreve. Eu escrevi assim: “segundo dia de caminhada por […] último em que conto o tempo. A partir de amanhã, o tempo não se conta neste diário. Ele não será mais um diário de datas, mas sim de remédios, de flores e de pássaros”. Eu já tava no 17º dia da escrita do diário de caminhada e de tá tomando remédio pro fígado. Eu estabeleci que eu não ia mais contar o tempo, que eu ia só contar os pássaros, as flores que era o que eu via andando na rua. Ia ser de fato um diário de remédio [risos]. Eu acho que eu falei demais já [risos]. Eu acho que a gente tem que fazer diário porque a vida da gente vale a pena. [Saudações finais. Despedidas.].

 

 

 


Link da live: https://www.youtube.com/watch?v=oRfxOFZpplA

 

 

 


Créditos na imagem: fotografia de Eduardo Sinkevisque

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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