A nau Príncipe Real tinha saído de Salvador havia 2 dias e agora tomava a direção sul, com destino ao Rio de Janeiro. Era o último dia de fevereiro de 1808. Além de boa parte da realeza, o navio português conduzia militares, juízes, comerciantes e muitas pessoas da nobreza. Um desses nobres era o marquês de Ribatejo, que seguia para o Brasil levando toda a família. Cumpre esclarecer que, entre os membros da família do marquês, estavam dois cães perdigueiros, nascidos na mesma ninhada.  Chamavam-se Sultão e Apolo, e contavam pouco mais de 2 anos de idade.

Após quase 60 dias no mar, a chegada a Salvador fora um refrigério para tripulantes e passageiros da Príncipe Real. Viajando no porão do navio, os cães haviam sofrido toda sorte de agruras, dividindo espaço com cavalos, vacas e porcos. A temporada na Bahia fizera bem aos cachorros, que se viam lépidos e garbosos como dantes em Lisboa. Apolo tinha uma pelagem mais bicolor, com uma grande mancha branca que começava no dorso, caminhava pela testa e focinho e chegava à pata dianteira esquerda. Sultão era quase todo amarelo, apenas com uma manchinha branca na testa e outra, mais larga, no peito.

— Quando chegar ao Rio, vou desertar ­— disse Apolo.

— Estás louco­? — retrucou Sultão — Não conhecemos nada do Rio de Janeiro. Ouvi que é uma cidade muito suja e perigosa. Ademais, sendo perdigueiros de boa linhagem, devemos guardar fidelidade ao nosso dono.

— Qual o quê! Essa história de obediência canina é balela. És um medroso. Sempre foste! Eu quero a liberdade, a aventura, saborear os desafios de uma cidade nova.

— Não conheço o que é medo, Apolo. Mas sou fiel ao meu dono sim, e vou continuar sendo. Apenas cumpro o atavismo da raça.

Era o fim do dia e os irmãos continuaram discutindo (e não se entendendo) por mais alguns minutos. Logo as derradeiras luzes se apagaram no horizonte e o manto azul-ferrete da noite os fez esmorecer. Naquele porão tétrico e malcheiroso, o silêncio só era rompido pelo vento que sibilava pela escotilha, como uma cantilena triste. A imensa cápsula de madeira deslizava mansamente sobre as águas, carregando os destinos de Portugal e do Brasil.

Na tarde de 7 de março de 1808, a Príncipe Real aportava na baía de Guanabara. Aproveitando a lufa-lufa do desembarque, Apolo empreendeu seu plano de fuga. Ziguezagueando entre a multidão, o perdigueiro desertor foi avançando devagar e sofregamente. Quando se viu livre do amontoado de pernas humanas, saiu em disparada, correndo como um guepardo e, em poucos minutos, sumiu numa rua estreita. Era a liberdade. Sultão, já conformado com a rebeldia do irmão, não tentou detê-lo; manteve-se sereno e todo o tempo aos pés do marquês. Era a resignação.

Passaram-se 4 meses. Num anoitecer, Ribatejo voltava pra casa quando foi cercado por 3 sujeitos na Rua dos Inválidos. Sultão estava junto. Os bandidos limparam as algibeiras do marquês, que reagiu e foi esfaqueado violentamente. Sultão enfrentou os gatunos, mas viu o dono cair morto. Minutos depois, um cavalariço da corte passou pelo local e o encontrou lambendo as mãos ensanguentadas do marquês. O cavalariço chamou o cão, colocou-o sobre a sela e seguiu até a Quinta da Boa Vista. Apático de tristeza, Sultão deixou-se levar pelo estranho. Na corte, a elegância e obediência do perdigueiro cativaram o regente, que resolveu adotá-lo. Foi assim que Sultão se tornou o cachorro do rei.

Apolo vagava pelas ruas e becos do Rio de Janeiro, disputando comida com ratos e urubus. Certo dia, espreitava uma manta de carne seca num armazém da Rua do Piolho. Caçador sagaz, esperou, calculou a distância e zás! Abocanhou seu objeto de desejo e saiu em disparada na direção do Largo do Rocio. Quando se preparava para degustar o banquete, viu-se ameaçado por um bando de cães magros e pestilentos. À frente da matilha, postava-se um cão negro. Dois menores guardavam-lhe a retaguarda. Os três partiram para o ataque. Apolo lutou como um gladiador e, ao cabo de uma hora, venceu o brutal combate. Os cães vadios da capital tinham um novo líder. Foi assim que Apolo se tornou o rei dos cachorros.

O regente costumava sair a passeio nos finais de tarde. Naquele dia, o destino era a Praia do Sapateiro. Afeiçoado ao mascote, o rei decidiu levá-lo junto com os outros membros da comitiva. Ao passar pelo Passeio Público, transeuntes ovacionaram sua majestade, que interrompeu a tournée e apeou para falar com o povo. Sultão avistou um bando de cães nos jardins do parque. “Rueiros imundos”, pensou. Apurou a vista e reconheceu Apolo, que caminhava à frente da canzoada. Num ímpeto, pulou da carruagem e gritou: “Apolo!” O perdigueiro vadio reconheceu Sultão e correu na sua direção. Os irmãos se reencontravam após 3 anos.

— O que é feito de ti, mano velho? Quanto tempo, hein? Vejo que a ração do marquês continua farta. Estás gordo e luzido ­— disse Apolo, festivamente.

— O marquês está morto. Meu dono agora é o rei do Brasil. Folgo em ver-te, Apolo. Mas estás muito diferente, mais magro. Tua pelagem está estranha. Estás doente?

— Que bela notícia! Não a morte do nosso marquês, obviamente, mas a tua ascensão a mascote real. Sim, senhor, que orgulho, Sultão! Pareço-te magro? Pois, cá nas ruas é assim: uns dias, se come angu, noutros, pão de ló. Morei algumas semanas numa casa de pasto na Rua dos Latoeiros. Comia um peixe assado bestial, mas o dono era impulsivo e espancou-me uma vez. Fugi. O que vês no meu pelo são manchas. Tive uma sarna terrível. Os malditos ácaros quase acabaram comigo. Agora, estou refeito. Que me contas tu da vida na corte?

— Não me falta nada. Boa comida. Água à vontade. Donos carinhosos. Um pajem pra curar-me as feridas. Na Quinta, há muito espaço para correr. Que mais posso querer da vida?

— Ora, Sultão. Por certo, tudo isso é muito bom, mas são coisas triviais e insossas. Conte-me da sua vida amorosa. Deves ter muitas cadelas cheirosas, hein, malandrão?

— Não ligo muito pra isso, Apolo. Meus donos também não gostam de promiscuidade. Aqui no Rio quase não existem perdigueiros puros. Mas já tenho um casamento arranjado. Em dois meses chegará a minha noiva, uma perdigueira de nobre estirpe, nascida em Trás-os-Montes.

— Casar? És mesmo um palerma, Sultão. Que aconteceu com teu instinto carnal? Deixe a monogamia para os gansos. Eu tenho todas as cadelas que quiser. Não sabes o que estás perdendo. Esta cidade é o paraíso da concupiscência. Tenho provado cios memoráveis. Um dia, é a recatada de Botafogo. Outro, a fogosa da Lapa. Ontem, foi uma belíssima Dálmata do Catumbi. Plebeias ou nobres, todas caem nos braços do rei.

— Entendi, és o Dom Juan dos cachorros. Parabéns pelo feito. Me tens como um palerma? Não me vejo assim, sou comedido e sensato. E tu, o mesmo doidivanas que fugiu do dono há 3 anos. Era essa a vida que querias? Pois eu não troco a minha segurança na corte por esse torvelinho em que vives.

— Sultão, eu sou um espírito livre, uma alma errante. Meu reinado são as ruas, os becos, os largos dessa cidade fascinante. Aqui sou feliz. Aqui, sou o rei. Vês esses malandros? São meus súditos, fazem tudo por mim. Trazem-me comida, contam-me das melhores cadelas no cio. Até morrem por mim, se for preciso.

— Sultão! Sultão! Onde raios se meteu esse cachorro? — Era o rei que chamava.

— Devo ir, Apolo. Cuida-te! Até qualquer dia!

— Vai, Sultão. Tu atendes ao chamado do teu dono. Como sou o meu próprio dono, só atendo ao chamado da vida, ou da morte quando ela me chamar. Escuta-me: não sejas tão plácido e resignado. Busca tua felicidade, rapaz. Até qualquer dia!

Sultão correu na direção do cortejo e pulou pra cima da carruagem. Recebeu uma reprimenda e depois um afago do rei. Todos a bordo, o cocheiro estalou o chicote no lombo das mulas e retomou a jornada. Com olhar nostálgico, Apolo viu o préstito real sumir na poeira da estrada. De volta à realidade, uma coisa o preocupava: a Guarda Real da Polícia andava a perseguir os cães vadios e, naquele local, o bando estava disperso e vulnerável. Tinham que sair dali. Apolo soltou um uivo longo e enérgico. Os cães foram se agrupando em fileiras, 4 a 4, como uma falange grega no campo de batalha e, ordenadamente, o rei-cachorro e seus guerreiros subiram a Rua das Marrecas. Os irmãos nunca mais se viram.

Em 1816, uma lei determinou que todos os cães vadios da capital fossem executados sumariamente. Estava declarada a guerra. Apolo traçou estratégias. Não marchavam mais em bando. Nas missões diárias, andavam sozinhos ou em duplas. Era inútil. Cães morriam todos os dias. Muitos fugiram pro mato. Faltava o líder. A Guarda Real descobriu o esconderijo de Apolo no Campo de Santana. Armaram-lhe uma emboscada. Ao cair da noite, 12 disparos de bacamarte atingiram o corpo de Apolo, que tombou aos pés de um velho cajueiro. Era o fim do rei dos cachorros. Sultão soube da morte do irmão. Impassível, não verteu uma lágrima: “Recebeste o chamado da morte? Esse foi o preço da tua liberdade”, ruminou.

Na manhã de 26 de abril de 1821, A nau Dom João VI partia do Rio de Janeiro levando a família real de volta a Portugal. Sultão estava a bordo. Era um cão velho, cego, arfante e angustiado pela doença cardíaca. Como não conseguia manter-se em pé, fora colocado numa cesta de vime dentro do camarote real. A nau singrava lentamente pela baía. Lá fora, as fortalezas rebentavam tiros, saudando a realeza. Cá dentro, no profundo negror dos seus olhos, Sultão rememorava sua vida, seu orgulho, sua solidão, a noiva que nunca existiu. Ao Lembrar-se das palavras do irmão “não sejas tão plácido e resignado. Busca tua felicidade, rapaz”, o combalido coração bateu pela última vez.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://jcb.lunaimaging.com/luna/servlet/detail/JCB~1~1~5676~8390002:Don-John-VI–King-of-Portugal-&-Bra#

 

 

 


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