Prolegômenos para uma loucura-guia: Pandora e Mefistófeles, mentores do humano

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Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios…
E é de mim que decorrem, simultâneas
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Augusto dos Anjos, Monólogo de uma sombra

 

Sabe-se que Machado de Assis foi leitor de Goethe. Estudou alemão a fim de compreender melhor a língua, traduziu alguns versos do Fausto, os quais transpôs para Dom Casmurro e, como teria apontado Haroldo de Campos, há semelhanças da obra magna goethiana com o conto de Machado intitulado A Igreja do Diabo (GOETHE, 2020, p. 139). Todavia, o autor alemão não é considerado dentre as maiores influências do autor brasileiro. E nossa intenção aqui não é demonstrar que é; neste ensaio propomos fazer uma breve análise comparativa do papel da loucura nos discursos autobiográficos, em primeiro lugar, por mais que ela seja compreendida duplamente como crítica e alternativa aos modelos de pensamento cientificistas e teleológicos das épocas dos autores – em Fausto I e em Memórias póstumas de Brás Cubas. Temos a hipótese de que ela funciona como guia para os percursos dos personagens principais dessas duas obras e como figura aglutinadora dos acontecimentos mais determinantes. Porém, em vista do espaço reduzido designado para este ensaio, não será possível demonstrá-lo em sua totalidade. Portanto, optamos por oferecer os prolegômenos para essa aproximação a partir das cenas iniciais em que duas figuras fantásticas aparecem e falam sobre si para Brás e Fausto: Pandora e Mefistófeles, respectivamente. 

 

Mefistófeles ou a marca da negação  

Publicado em 1808, o Fausto de Goethe é um amálgama de vários gêneros literários, como tragédia, peça de teatro e romance escrito em forma de versos poéticos, sendo, portanto, de difícil definição estilística. A obra trata, em suma, do desejo humano obcecado pelo conhecimento e novas descobertas. Para obtê-lo, Fausto, o personagem, firma um pacto demoníaco com Mefistófoles. Uma das várias conclusões que se pode tirar da trama é que ela é uma advertência aos contemporâneos e extemporâneos sobre os perigos de se expandir cada vez mais os limites naturais e científicos do mundo.   

O primeiro capítulo é uma dedicatória do poeta, onde ele “se sente tocado pelas figuras oscilantes que assomam ‘do fundo e da neblina’” (GOETHE, 2020, p. 27). Ele avisa que irá rememorar o itinerário de sua vida, tal qual o defunto autor, Brás Cubas, como veremos adiante.

Trazeis imagens de horas juvenis, 

Sombras queridas vagam no recinto; 

Amores, amizades ressurgis

Do olvido como um conto meio extinto; 

Renasce a dor, que em seus lamentos diz 

Da vida o estranho, errante labirinto. 

Evoca os bons que a sorte tem frustrado, 

E antes de mim, à luz arrebatado. (GOETHE, 2020, p. 29).

Nesse “errante labirinto”, Fausto é aquele que quer conhecer tudo. Na primeira cena em que encontra com Mefisto, Quarto de trabalho, o humano está num cômodo de arquitetura gótica e sufocante, emblema da figura do intelectual melancólico e enclausurado. Seus livros são reduzidos a arquivos do passado, o que podemos visualizar no seguinte excerto:

Céus! Prende-me ainda este antro vil? 

Maldito, abafador covil (…) 

Opresso pela livralhada, 

Que as traças roem, que cobre a poeira, 

Que se amontoa, embolorada, 

Do soalho à abóbada cimeira; (…) 

Isto é teu mundo! Chama-se a isto um mundo! (GOETHE, 2020, p. 65).

Da Idade Média até a Idade Moderna, as universidades possuíam quatro faculdades: teologia, jurisprudência, filosofia e medicina. Fausto passou por todas elas. Permanecendo frustrado, decide dedicar-se à magia. Pensando em seu próprio desconhecimento, condicionante do conhecimento, o doutor sofre desespero, frustração e cogita suicídio. As fantasias ocupam um espaço exíguo, a “paz turba e a alegria irrequieta” (GOETHE, p. 83) abalam-se com facilidade, dando lugar a uma melancolia profunda. Nesse momento, Fausto se compara com os vermes. 

Os deuses não igualo! Ah! Quão profundo o sinto! 

Igualo o verme que, faminto, 

No pó se nutre; e ao qual, enquanto escava a vasa, 

O pé do caminhante esmaga, arrasa. (GOETHE, 2020, p. 83).

Cabe notar que os vermes são um elemento que também aparece logo de início, na dedicatória do romance machadiano. “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas” (ASSIS, 1994, p. 1).

Logo após essa tensão derradeira, dá-se o encontro de Fausto com Mefistófeles. As primeiras palavras entre eles são assim: 

FAUSTO

Que nome tens?

MEFISTÓFELES 

Questão de pouco peso 

Para quem vota aos termos tal desprezo 

E que, afastado sempre da aparência, 

Dos seres só procura a essência. 

FAUSTO

Com vossa espécie a gente pode ler 

Já pelo nome o ilustre ser, 

Que se revela sem favor 

Com a marca de mendaz, blasfemo, destruidor. 

Pois bem, quem és então?

MEFISTÓFELES 

Sou parte da Energia 

Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria

FAUSTO

Com tal enigma, que se alega? 

MEFISTÓFELES

O Gênio sou eu que sempre nega! 

E com razão; tudo o que vem a ser

É digno só de perecer;

Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. 

Por isso, tudo a que chamais 

De destruição, pecado, o mal, 

Meu elemento é, integral. (GOETHE, 2020, pp. 137-139, grifos nossos).

Na passagem, Metophosphiles diz quem ele é. Seu nome significa literalmente “a luz não é amiga” (SELIGMANN-SILVA, 2014). Ele aparece na interseção entre o Mal e o Bem, na brecha da cosmovisão maniqueísta. O Mal o pretende de modo claro e o Bem o cria mesmo sem querer. Ele está sempre a negar e se diz a força do apodrecimento. Ele também lança mão de criar imagens para o fim do mundo, a partir da ideia de que as trevas constituíram o início do universo e terão também a vitória final, traçando, assim, um “materialismo mefistofélico que se contrapõe ao Evangelho de João: ‘No princípio era o Verbo (…) e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas’” (GOETHE, 2020, p. 141). Todos os corpos perecerão e a “luz soberba” (loc. cit.) será destruída. Mefisto é a lei dos fantasmas e dos espectros, e, por extensão, do delírio e da loucura – elementos que subvertem o tempo cronológico. Pois “o código delirante apresenta uma fluidez extraordinária” (DELEUZE & GUATTARI, 2020, p. 29). 

 

Pandora: um riso d’escárnio  

Já o primeiro grande romance machadiano, Memórias póstumas de Brás Cubas, que angariou extenso volume de críticas e admirações foi publicado em 1880. Brás Cubas, como adverte ao leitor, é antes um defunto autor (um morto que escreve), do que um autor defunto (um escritor que está morto) de sua própria vida. A morte possibilita que ele recorde e reflita sobre o passado vivido com uma argúcia e um desprendimento dos valores frívolos que os vivos não conseguem ter; afinal, tudo tem o tempo de apodrecer. Ele, que escreve com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia” (ASSIS, 1994, p. 2), deixa claro: “a franqueza é a primeira virtude de um defunto” (ibidem, p. 35). 

Nossas considerações sobre esse romance serão focadas no capítulo VII, intitulado O delírio, que é considerado por muitos críticos como a “chave para a integridade conceitual e estética” (CEI, 2016, p. 261) do livro como um todo. O mais impressionante, para nós, assim como no discurso de apresentação de Mefisto, é a captura da “ruidosa e obscura verdade contida no delírio” (DELEUZE & GUATTARI, 2020, p. 14), delírio esse que é um lugar privilegiado de apreensão da quintessência da realidade. Sob a efígie de Pandora, a lucidez da loucura se mostra. No encontro de Brás com ela, ele reflete, de modo vertiginoso:

A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. (…) e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela [Pandora] ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. (ASSIS, 1994, p. 11).

O trecho apresenta vigorosa crítica à teleologia no seu pilar da arché, a ambição de se chegar à origem da essência “humana”. Tem-se aí um niilismo cósmico de natureza negativa e destruidora, próximo de Mefisto. A versão mais conhecida do mito de Pandora está em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo:

Fala o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou [o baritonante Zeus]

Pandora, porque todos os que têm olímpia morada

Deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão. (HESÍODO apud CEI, 2016, p. 265).

Segundo o narrador da Antiguidade, Pandora é a primeira mulher e o “belo mal” criado por Zeus para engambelar os homens. Seu nome significa literalmente toda (pan) presentes (dora). A ela o rei dos deuses deu um vaso contendo males, trabalhos árduos e doenças, os quais foram liberados quando o vaso foi aberto, restando apenas a esperança guardada no fundo do vaso. Este momento é comentado no diálogo da obra machadiana: 

– Entendeste-me? – disse ela (…). 

– Não – respondi – nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? A Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

– Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. (ASSIS, 1994, pp. 10-11).

Nesse trecho, podemos ver como ela não corresponde às expectativas de Brás, pois a figura da mãe e inimiga, ao mesmo tempo, lhe é estranha. Nada mais adequado para uma sociedade patriarcal tal estranhamento, uma vez que a mãe, que gera os seres humanos, é frequentemente idealizada e não pode ser tida como alguém que não satisfaz os desejos dos filhos. De modo distinto, Pandora considera “o mundo um caos, a existência um sofrimento e o homem finitude e efemeridade, de onde concluem que o melhor seria não ser ou então deixar de ser o quanto antes” (CEI, 2026, p. 271), uma vez que o ser humano “está irremediavelmente preso ao seu corpo” (JUNG, 2011, p. 22).

 

É longa a arte e nossa vida é curta!

Vir-a-ser. Morte. Destruição. Negação. Corpo. Verme. Esses são alguns dos elementos em torno dos quais Mefistófeles e Pandora, ambas figuras fantásticas de cunho naturalista, organizam-se. O que elas mostram, de modo fundamental, é a lucidez da loucura, compreendida como sátira da Razão e força negadora transformativa do mundo e de si. Focamos nossa análise em interpretar como a força negadora opera em seus discursos de autoapresentação. Diferentemente do modo como a antiguidade pensava, ela não é o contraponto da sabedoria. Permitimo-nos uma brincadeira: a sabedoria é a loucura. Em contraste com as racionalidades dogmáticas do positivismo e humanitismo, correntes dominantes no século XIX, o desatino personificado pelas criaturas galhofeiras conduz a própria personalidade das personagens principais, Fausto e Brás, de ambas as obras analisadas. E, se estas são uma autobiografia daqueles personagens, é correto dizer que o desvario é guia e figura constelatória (BOLLE, 2001) em torno da qual as experiências, das mais sofridas às mais aventurosas, se estruturam nas duas literaturas – que, por serem clássicas, apesar de muitas vezes revistas e comentadas, repelem incessantemente a nuvem de discursos críticos produzidos sobre elas (CALVINO, 2007). Para as memórias póstumas, por mais que Pandora não reapareça, o que ela representa está em todos os momentos: na compra de joias caríssimas para a intenção amorosa com Marcela, nas travessuras perversas com o escravo na infância, na lide com o falecimento da mãe, na traição com Virgília… E para a tragédia do erudito, Mefistófeles está em todos os acontecimentos em letra e em espírito: na troca de farpas com rapazes universitários, no cortejo de Margarida ao sair da igreja, na festa ímpia dos feiticeiros, no infanticídio cometido pela mãe do filho de Fausto, Margarida… Assim como a pena da galhofa está para a tinta da melancolia, o tecido da vida está para a agulha da loucura. Decerto, faltou-nos explicitar como a loucura se dá nesses episódios, de modo a costurá-la com todo o fio da(s) trama(s). Mas, “é longa a arte e nossa vida é curta” (GOETHE, 2020, p. 77).

 

 

 


REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Editora Nova Aguiar, Rio de Janeiro, 1994. E-book

BOLLE, Willi. Diadorim: a paixão como médium-de-reflexão. Revista USP, São Paulo, nº 50, pp. 80-99, junho/agosto 2001.  

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 

CEI, Vitor. A voluptuosidade do nada: niilismo e galhofa em Machado de Assis. Annablume Editora, São Paulo, 2016. 

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz Orlandi. Editora 34, São Paulo, 2020. 

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia. Primeira parte. Tradução de Jenny Klabin Segall. Editora 34, São Paulo, 2020. 

JUNG, Emma. Animus e anima. Editora Pensamento-Cultrix, São Paulo, 2011.

SCLIAR, Moacyr. Pequena história da melancolia brasileira. Folha de São Paulo, 17/06/2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1706200108.htm#:~:text=Paulo%20%2D%20Moacyr%20Scliar%3A%20Pequena%20hist%C3%B3ria,brasileira%20%2D%2017%2F06%2F2001&text=Em%201621%20foi%20publicado%20na,propriedade%20com%20os%20lucros%20obtidos.&text=O%20livro%20%C3%A9%20%22The%20Anatomy,Melancolia)%2C%20de%20Robert%20Burton. Acesso em: 26/02/2021.

SELIGMANN-SILVA, Marcos. Café Filosófico: Fausto e a busca do conhecimento. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sFbVvxIAbmA. Publicado em: 13/10/2014. Acesso em: 26/02/2021.  

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Andy Warhol, Johann Wolfgang Goethe. 1982.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula Coelho Barroso Magalhães

Graduanda em Filosofia pela UFMG, é arte-educadora no museu Espaço do Conhecimento UFMG.

 

 

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