Tenho séria dificuldade de entender um debate onde casos concretos são trazidos a dedos como exemplos. Talvez sejam os parâmetros para conduzir dado conhecimento científico. Chegaremos lá. Continuemos a discussão com o dito “lugar vazio” de Lefort (1991). Percebi que Lefort, Rancière (2014) e Przeworski (2020) são pessoas que lidam com a democracia como se ela fosse endógena. Em outras palavras, que a democracia é concretizada internamente nos países que se referenciam, seja a frança ou em outro território qualquer. Logo também universais. Eles não discursam isso, é o silêncio quem fala. Qualquer relação local-mundial e mundial-local não aparece em reflexões de textos que datam de 2019, como vemos em “Crises da democracia” na publicação original. Para a instituição democrática francesa, estadunidense e afins se manterem ambientes firmes outros locais de não humanidade tiveram que ser usurpados até os dias de hoje. Nada novo sob o sol. Se a modernidade é um marco histórico para tal debate, muito complicada qualquer discussão que não tenha como centralidade a colonização e a neocolonização. Lendo os textos parece que somente a boa vontade da argumentação racional trará as flores da primavera democrática. Tinha em mente que desde os anos 40 do XX essa concepção nacionalista/universalista perde força com produções de “Capitalismo e Escravidão” de Eric Williams, “A invenção da áfrica” de Mudimbe ou até mesmo com “Como a europa subdesenvolveu a África” de Walter Rodney, porém lendo algo me diz que não.
A democracia não é a melhor saída dentro das possibilidades que temos. Não, pelo menos, aos condenados da terra, que além de condenados criaram outras parada afora. A régua que uso não é do menos pior. A falta de experiências para credibilizar o dito lugar vazio custa caro quando se racializa a história moderna. Quando se olha a cor dos povos entendemos o que é democracia em sua prática e o que acontece quando os pretos defendem sua condição cidadã. As pessoas as negam – exemplos tenho aos montes, do nosso departamento de história a conjuntura mundial. Análise concreta da situação concreta é o que me pedem os progressistas, não? Enquanto se abstrai tudo está nos conforme, pois a ontologia moderna é calcada em ser branco. Trouillot e a história como silenciamento do passado é uma condição para a própria historiografia se sacar.
O problema, nesse quiproquó todo, para dar conta dos remendos restam palavras e mais palavras que tenham o teor de “possibilidade”, “potencialidade”… Talvez tudo isso faça sentido para quem anda na rua à noite e não é identificado como ladrão, não toma de 80 a 111 tiros dentro do carro somente pela aparência ser suspeita, não toma baculejo sem nada ter feito, não seja visto como forte na hora do parto e tome uma dose menor de anestesia, tá com a cara na COVID-19, não foi interditado historicamente de ter terras depois de séculos de escravidão, ou seja, esteja dentro do pacto moderno de cidadania. Acredito que somente assim democracia se sustente historicamente. Esse parâmetro ninguém utiliza pra medir a democracia, mas eu sim. Os povos que estão fora do pacto fazem o possível dentro de uma conjuntura de morte. Por isso vão tensionar as formas democráticas. Nóis, ao pretos, tem que vender o almoço pra comer a jantar. É uma tal de se ficar o bicho pega, se correr o bicho come, diria minha vó. Se perguntar mesmo o que o povo quer é sair dessa zona repleta de enganação. Tenho minhas dúvidas se seja um acreditar mínimo nessa arquitetura institucional. Voltemos, outro problema trazido por esse jogo de palavras – possibilidade, potencialidade – são as apostas com vidas alheias, uma espécie de especulação da esperança incorporada pela ala progressista que em larga medida não serão atravessadas caso a proposta não dê certo, vide lula 2022. Como é de praxe de uma galera: se a coisa não vinga vou pra gringa. A outra ala fica com a especulação financeira mesmo. Cada qual com sua teleologia, não é mesmo?
Se a democracia é algo histórico falta me mostrar onde ela se materializa, onde eu posso sentir a mesma para além de um mundo cindido, despedaçado pela raça. Diga-se de passagem, bem escancarado de tantas pesquisas e dados que demonstram isso. Como disse Bezerra em 1992, auge democrático, eu já ando injuriado, ô xará, meu salário defasado, meu povo todo esfomeado, e ainda é intimado a votar. Daqui podemos pegar carona na questão do marco temporal dos povos originário. “Somos herança da memória”, levanta a bola Jorge Aragão e dentro desse condicionamento me resta comentar mais sobre marco histórico. É sobre o bate-bola da última semana. O que mais me pegou foi a discussão sobre os marcos históricos para compreender uma dada crise. Percebi que há um consenso sobre a ditadura civil-militar ser aquela crise quem proporcionou a dita crise no XXI. Três argumentos, dentre outros, são utilizados para balizar essa afirmação: anistia aos militares e suas consequências no mundo institucional, a militarização dos forças armadas e arrocho econômico. Ora, mas esses mesmos problemas também são identificados nas circunstâncias de um brasil empurrado para o pós-abolição. Vejamos.
1 – A anistia aos escravizadores após tratado anglo-brasileiro de 1826, ou seja, pra quem escravizou ou traficou nada pegou. Isso também acontece lá pra depois de 1888, os caras obtiveram foi crédito estatal para segurar a crise que se espraiava. 2 – O poder bélico voltado para segurança interna com a institucionalização da lei da vadiagem e também a criação das rondas ostensivas tobias de aguiar – a tal da ROTA, aquela do Carandiru, manja? – datados de 1890 e 1891, respectivamente. O problema não é o teco-teco das forças armadas cheio de fumaça no desfile, mas o aparato militar das UPP’s nos becos e vielas. Ainda há o medo do haitianismo por essas terras e que bom. 3 – Outro ponto é o tal do arrocho econômico. O que chamam de precarização do trabalho já vem da virada do dito trabalho cativo para o livre. Os fazendeiros pagavam menos aos ex-escravizados para fazerem o mesmo trabalho que os imigrantes. Não somente um menor valor, mas um trabalho intermitente, sem vínculo de proposta nacional, até porque a não humanidade dos mesmos – que a dinâmica liberal burguesa exigia – sempre foi interditada. São as chamadas leis trabalhistas de empreitada, parceria e jornal. Uns diriam são os problemas econômicos da época, outros o iniciar da organização racial do trabalho, outros ainda: o reajustar da imposição civilizatória branca. A negrada não se calava, óbvio que não. Houve relatos de pessoas pretas que fazia pela metade do preço o dobro de trabalho que o imigrante, mas mesmo assim não encontrava inserção na dita economia nacional republicana.
Bom, ainda assim, não sei porque o marco histórico para os problemas contemporâneos é a ditadura de 64. Ao meu ver o br sempre foi o que foi reajustado a cada conjuntura. Portanto, a minha defesa ainda continua sendo que – como o nazismo e a discussão sobre o colonialismo já citada de Aime Césaire – é a primeira vez de forma estruturada que os brancos vão sentir na pele o br real. Aquele da violência pura e diária que estava condicionada ao povo preto e, logo, essa experiência traumática se torna o marco histórico para rupturas, crises e afins, uma vez que são os brancos a parcela da população que foi largamente atingida e produtora dessa historiografia. Não estou aqui abrandando a ditadura civil-militar de 64, pelo contrário, ela tem de ser lembrada com toda a sua perversão, mas dentro essencialmente de um quadro da história mais alargada (nacional? atlântica? de sistema-mundo?) e balizada diante outras experiências desse conjunto de pessoas, entende? E eu não consigo identificar isso até o momento nas produções.
Por fim, a racialização não para durante a ditadura. Os arrochos econômicos são maiores ao povo preto e sem falar dos esquadrões da morte q rastelava geral na quebrada dos bailes black, mas esses nem tiveram foto na cela enforcados. Dentro da exceção também podemos discutir racialmente. Digo exceção, porque essas intelectualidades/artistas pretas eram minorias dentro desse conjunto de pensantes e, ao meu ver, não podem ser pegos como exemplo pra defender um posicionamento coletivo da negrada diante a ditadura. Mas mesmo entre eles, enquanto intelectuais brancos eram exilados pela contestação política, outros – como Guerreiro Ramos – foi exilado por ser um “mulato metido a sociólogo”. Percebem? Nem de sua humanidade Ramos era reconhecido. Na relações culturalistas, que o povo adora, também identificamos tal feito. Quelé, Clementina de Jesus, à época empregada doméstica, pediu férias a sua patroa, pois começa a fazer shows brasil afora. A patroa negou, pois ela não teria tal direito, ainda mais para ser cantora. Tinha que ser empregada, apenas. Nada restava a ela além do mundo da servidão. Percebem o que estava em jogo em plena ditadura? A interdição da humanidade destas pessoas pretas, para ficarmos dentro do paradigma moderno. Criação da ditadura? Bom, acho que vocês saibam minha visão da coisa… há nas subcamadas da ditadura algo que ainda precisa aparecer: a ditadura é a exceção na história da violência/crises e afins do br, por ser a primeira que pega os brancos sistemicamente. Talvez a parada da COVID19 seja a segunda, ironicamente só agora há a defesa de um genocida no governo, embora quando Abdias sinalizou isso na década de 80, com recorte de raça, era só mais um neguinho atrevido que queria dividir a classe, não é mesmo? É gente, não tá fácil a fase dos analistas contemporâneos. É como diria Wilson Moreira e Nei Lopes… “te segura, te segura, te segura, que a vida tá dura… te segura… te segura…”
REFERÊNCIAS
PRZEWORSKY, Adam. Introdução; Parte I. Crises da democracia. Rio de janeiro: Zahar, 2020. p. 25-47; p. 49-106.
LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaio sobre mudança, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1991. p. 23-37.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 7-13.
Créditos na imagem: Divulgação. Foto: Fábio Teixeira. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/11/politica/1557530968_201479.html
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