O epistemicídio sofrido pela população negra e a necessidade da escuta

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Neste ensaio[1], será tratado de forma breve a categoria conceitual do epistemicídio, relacionada a população negra no cenário brasileiro. Em conjunto com esse conceito, objetiva-se evidenciar que apesar de várias pessoas viverem no mesmo tempo físico, não vivem no mesmo tempo histórico, tendo “experiências e horizontes de expectativas” muito distintos, sobretudo, devido à desigualdade racial, que se manifesta também no campo epistemológico. Posteriormente, busca-se ressaltar a importância de escutar as vozes negras, como uma das ações importantes para procurar reverter esse epistemicídio. Ademais, para além de escutar é imprescindível compreender todas as formas de conhecimento e cultura de povos africanos e diaspóricos como legítimas. A população negra, em suas diversas formas de existência no tempo, foi, e é, produtora de epistemologias.

 

Tempo histórico: espaço de experiências e horizonte de expectativas

Primeiramente, antes de adentrar na discussão sobre o conceito de epistemicídio e suas implicações para a invisibilização da população negra, faz-se necessário tratar do conceito de tempo histórico. Segundo Koselleck, definir o que é o tempo histórico é uma das questões mais difíceis do campo da historiografia, e nos leva a adentrar o campo da teoria da história, tendo em vista que precisamos de uma abordagem teórica para tentar precisar esse termo (KOSELLECK, 2006, p. 13). Esse tempo é permeado de transformações, assimilações, mudanças, mas também de certas continuidades, e está associado à ação social e política, de pessoas concretas que agem e sofrem as consequências de ações, organizações e instituições. Nós construímos o tempo histórico, mas também somos construídos por ele.

O tempo histórico não é homogêneo, e apesar de estar ligado a questões de datações, ela não é equivalente ao tempo das ciências ditas naturais, sendo que um dia pode ser experimentado e contado de diversas formas, dependendo de quem o viveu (KOSELLECK, 2006, pp. 16-18). Para tentar delinear alguns contornos do tempo histórico em sua complexidade, são importantes as noções de  espaço de experiência e horizonte de expectativas.  Para Koselleck, espaço de experiência e horizonte de expectativas são duas categorias do conhecimento que permitem fundamentar a possibilidade de um tipo de história.[2] Para o autor não há como experimentar o tempo histórico sem essas duas categorias, elas são a base para a própria vivência do ser humano (KOSELLECK, 2006, p. 307).

A experiência é o passado atual, um passado presente no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados, pois é um passado que não passou por completo (KOSELLECK, 2006, p. 309). A expectativa é, simultaneamente, ligada à pessoa e ao interpessoal, ela realiza-se também no hoje, é um futuro presente, é o não experimentado, o que apenas pode ser previsto, mas não totalmente determinado (KOSELLECK, 2006, p. 310). Segundo Koselleck, em todo momento histórico está em jogo determinada relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativas. Dessa forma, o tempo histórico se constitui na tensão entre essas duas dimensões existenciais (KOSELLECK, 2006, p. 306).

O tempo histórico não é homogêneo, ele é plural e depende das circunstâncias históricas. De forma similar, o espaço de experiência e o horizonte de expectativas também não são sempre os mesmos (KOSELLECK, 2006, pp. 16-18). Um exemplo dessa pluralidade do tempo histórico, é que a forma com que se experimenta o tempo, pode mudar de acordo com o grupo racial do qual se faz parte. Nesse sentido, é evidente que a população negra viveu experiências distintas da população branca, devido a séculos de escravização e tentativas de inferiorização, inclusive no ambiente epistemológico. Nesse sentido, também o horizonte de expectativas da população negra é influenciado pela marginalização histórica. Sobre a marginalização, é importante introduzir a categoria de epistemicídio, de forma a evidenciar a violência sofrida pela população negra, e como isso influenciou em suas vivências do tempo histórico.

 

O epistemicídio sofrido pela população negra e a necessidade de escutar e compreender suas epistemologias

 

Aparecida Sueli Carneiro (2005), tomando como base Boaventura de Sousa Santos (1995), aborda que o epistemicídio constitui-se como um dos instrumentos mais duradouros e eficazes da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento produzidas pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto sujeitos (produtores) de conhecimento.  Segundo a autora, a ideia de epistemicídio torna possível apreender o processo de destituição da racionalidade, da cultura e civilização do “outro”, que muitas vezes é a população negra (CARNEIRO, 2005, p. 96). Para Sousa Santos, o genocídio que transpassou a expansão europeia foi também um epistemicídio, sendo que eliminaram-se povos considerados estranhos, pois, possuíam formas de conhecimento consideradas estranhas e, consequentemente, eliminaram-se formas de conhecimento tidas como estranhas, porque eram sustentadas por povos tidos como estranhos (CARNEIRO, 2005, p. 96).

Carneiro afirma que o epistemicídio para além de ser uma desqualificação e anulação de conhecimento dos povos subjugados, é um processo persistente de produção de carência cultural, através de várias estratégias como: a negação ao acesso à educação; da deslegitimação da população negra como portadora e produtora de conhecimento; de processos de discriminação presentes no processo educativo etc. Abordando sobre tais estratégias, enfatiza que só é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados se os desqualificamos de forma individual e coletiva, como sujeitos cognoscentes. Ao se fazer isso, destitui aquele indivíduo de razão, que é precondição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado (CARNEIRO, 2005, p. 96-97). Tal destituição foi feita no Brasil com os saberes produzidos pelos africanos e afrodescendentes.

O epistemicídio permite um sequestro da razão em duplo sentido: através da negação da racionalidade do grupo colocado como outro ou pela assimilação cultural que lhe é imposta. Através da primeira situação, a população negra foi desconsiderada como capaz de produzir e possuir conhecimento, o que certamente fez com que sua vivência no tempo histórico fosse diferente de grupos impostos como elite, pois, apesar de ela até poder se configurar como objeto de estudo, seus conhecimentos próprios não eram legitimados. Além disso, como tal população era visualizada como carente de conhecimentos, havia a violência da assimilação. Ela precisava ser enquadrada nos parâmetros ocidentais de conhecimento. O conceito de epistemicídio, permite-nos tomá-lo para compreender as múltiplas formas em que se expressam as experiências vividas pelos negros em relação à educação, e a produção do conhecimento no geral e, sobretudo, as desigualdades raciais nesse campo (CARNEIRO, 2005, p. 98).

É importante ressaltar algumas características da adaptação do epistemicídio às particularidades da sociedade brasileira. Segundo Carneiro, o epistemicídio terá sua primeira expressão no Brasil, enquanto tentativa de extermínio de formas “outras” de conhecimentos, nos processos de controle, censura e condenação da disseminação de ideias liderado pela igreja católica durante o vasto período da história brasileira (CARNEIRO, 2005, p. 102).

A história da educação de nosso país, é marcada pela formação de uma sociedade dualista, decorrente dos séculos de escravidão, e que possui desdobramentos para além desse período (CARRIL, 2007, pp. 549-550). Com a abolição legal e a emergência da república, fica cada vez mais nítida a influência do racismo científico[3] em pensadores nacionais, o que possibilitou novas características aos processos epistemicidas impostos às populações negras. Fazem-se presentes, os procedimentos de exclusão, contenção e assimilação na relação dos negros com os processos educacionais, frente à sua nova condição de liberto, que era indesejável como cidadão. O aparelho educacional brasileiro, teve um papel importante nos processos de exclusão e punição da população negra (CARRIL, 2007, p.104), sendo possível visualizar no pós-abolição, a constituição de um padrão de desigualdade entre negros e brancos, consistente e permanente por boa parte do século passado, com a exclusão dos negros do processo educacional (CARRIL, 2007, pp. 102-105).

Abdias do Nascimento (2016) afirma que o sistema educacional brasileiro opera como um aparelho de controle, na estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro, do primário até o universitário, o elenco das disciplinas ensinadas constitui uma espécie de ritual da formalidade e da ostentação das salas europeias, e mais recentemente dos Estados Unidos. A população afro-brasileira não tem acesso nem a suposta universalidade da universidade, sendo que o modelo ocidental se repete, e tal população é excluída e/ou marginalizada no ambiente universitário (NASCIMENTO, 2016, p. 84), ainda que seja inegável os avanços neste âmbito devido às políticas de ação afirmativa. A exclusão da população negra do processo educacional e da produção de conhecimento, apontada por Nascimento e Carneiro, ainda hoje se faz presente, e pode ser evidenciada por algumas questões postas por Djamila Ribeiro (2017), que nos levam a uma profunda reflexão: “quantas autoras e autores negros o leitor e a leitora, que cursaram a faculdade, leram ou tiveram acesso durante o período da graduação? Quantas professoras ou professores negros tiveram?” (RIBEIRO, 2017, p. 36-37). Tais questões e suas respectivas respostas evidenciam que no campo educacional ainda há exclusão da população negra.

Sobre a exclusão, Nascimento afirma que, historicamente, no Brasil, o privilégio da decisão ficou apenas nas mãos dos propagadores e beneficiários do mito da “democracia racial”. A elite, por via de regra branca, tem controlado os meios de comunicação e o aparelho educacional e assim formulam as armas, os conceitos e quais devem ser os valores do país.  Nesse poderio da população branca, os negros vão sendo exterminados não apenas fisicamente, mas culturalmente e epistemologicamente. Afinal, como afirmado por Nascimento, o embranquecimento cultural, e pode-se afirmar que também o epistemológico, são outras formas perversas e violentas de genocídio (NASCIMENTO, 2016, p. 39-41).

A abordagem de Djamila Ribeiro em seu livro O que é Lugar de Fala, aproxima-se das ideias de Carneiro e Nascimento, na temática sobre a marginalização da população negra na questão dos saberes. Segundo ela, a experiência de pessoas negras localizadas socialmente de forma hierarquizada, inferiorizada e não humanizada, faz com que suas produções intelectuais, vozes e saberes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado. Ademais, suas condições sociais e raciais, em uma sociedade extremamente racista, os mantêm num lugar silenciado estruturalmente (RIBEIRO, 2017, p. 36-37).

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Contudo, segundo Ribeiro, isso não significa que tais grupos não produzam ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais. Muito pelo contrário, existem várias formas de organização culturais, políticas e intelectuais de resistir aos silenciamentos. Porém, as condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções, e as experiências comuns resultantes do lugar social que a população negra ocupa, impede seu acesso a certos espaços (RIBEIRO, 2017, p. 36-37).

Nesse sentido, é muito importante a reflexão de Ribeiro sobre a questão do lugar de fala a partir do ponto de vista negro e feminino, pois tais teorias permitem que se contraponha uma visão universal de negritude e de outras identidades, deixando evidente a existência de uma pluralidade de experiências. Com a promoção de espaço para uma multiplicidade de vozes, a partir de tais teorias, objetiva-se romper com o discurso autorizado e único, que se pretende universal, deseja-se contribuir para romper com o ciclo do epistemicídio (RIBEIRO, 2017, p. 37-44).

É importante mencionar a fala de Chimamanda Adichie (2009), e enfatizar que várias histórias importam (ADICHIE, 2009), e com elas, muitos saberes, culturas e epistemologias. Deve-se dar espaço para que essa multiplicidade se difunda.  Sendo assim, é necessário estar disponível para a escuta de histórias plurais, para compreender as experiências temporais diversas, principalmente de grupos historicamente marginalizados. Ao colocar-se em um local de escuta atenta para ouvir a população negra, certamente têm-se muito a aprender, e serão conhecidas e publicizadas vivências distintas do tempo histórico.

Concluindo, este ensaio buscou abordar de forma breve, a questão da pluralidade do tempo histórico, refletindo sobre como as formas de experienciar os tempos se alteram dependendo da classe racial a qual o indivíduo pertence. Sendo assim, baseou-se na categoria de epistemicídio como abordada por Sueli Carneiro, para pensar nas tentativas históricas de inferiorização da população negra no campo epistemológico, como uma forma violenta de silenciamento. Por fim, buscou-se ressaltar a importância de se ouvir, compreender e validar vozes que por muito tempo foram silenciadas (ou tentaram ser), como uma das ações importantes para superar o epistemicídio. Nesse sentido, objetivou-se afirmar que no movimento de ouvir tais vozes temos muito a aprender, e muitas vivências distintas para conhecer.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda. Os perigos de uma história única (transcrição).Disponível em:https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt. Acesso em 17 de novembro de 2021

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese de Doutorado.

CARRIL, Lourdes de Fátima Bezerra. Os desafios da educação quilombola no Brasil: o território como contexto e texto. Revista Brasileira de Educação, v. 22, p. 539-564, 2017.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Editora PUC RIO/Contraponto, 2006

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. 112 p. (Feminismos Plurais).

 

 

 


NOTAS

[1] Esse ensaio foi desenvolvido como avaliação para a disciplina de Teoria da História, ministrada pelo Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo na UFOP.

[2] É importante ressaltar que Koselleck apresenta uma possibilidade de compreensão da história, teorizando o tempo, porém, esta não é uma forma única. Ademais, a grande aceitação do autor nos meios historiográficos, está diretamente ligado ao fato de ele ser parte de um contexto hegemônico do cânone da teoria e história da historiografia (norte ocidental).

[3] O racismo científico já vigorava no pensamento nacional desde o século XIX. Ao longo do século XX, a mestiçagem vai ganhando os contornos da miscigenação cultural, nos campos da sociologia e da historiografia, para atender as demandas políticas do falacioso discurso da democracia racial.

 

 

 


Créditos pela imagem: Reprodução. Arte: Daniel Caseiro e André Zanardo.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Eduarda Câmara

Maria Eduarda Câmara é natural de Embu das Artes- SP, mas viveu basicamente toda sua vida na cidade de Piranga-MG. É graduanda em História pela UFOP, membra do Coletivo Negro Braima Mané, e pesquisa sobre a luta de pessoas negras contra o sistema escravista no século XIX. Sua área de interesse principal, é a história e resistência negra. Atualmente ela é bolsista do projeto de extensão da UFOP e da UFMG, “Promoção da igualdade de gênero no contexto da pandemia da Covid-19: ações na Escola Municipal Bento Rodrigues a partir da literatura negro-brasileira do encantamento infantil e da literatura indígena”, que trabalha relações étnico raciais e de gênero na escola de Bento Rodrigues.

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