Africanos livres e a busca por liberdades plenas

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Neste ensaio, tomando como base a tese de Beatriz Mamigonian (2005), de que no Brasil oitocentista, ao invés de ser experimentada uma gradual “transição para o trabalho livre”, o país na verdade experimentou a expansão do trabalho não-livre. Ao pensarmos sobre tal expansão, defendemos que a população negra foi o principal público que buscou ser empregado no trabalho não-livre. Abordaremos essa temática, através da categoria específica de não escravizados que foram sujeitados ao trabalho compulsório: os africanos livres.

Contamos com uma importante historiografia que aborda os vários significados que o conceito de liberdade teve para a população negra brasileira, durante o século XIX, expoentes como Hebe Mattos e Ana Flávia Magalhães Pinto, nos mostram que o conceito de liberdade tinha significações plurais para a população negra, que lutou de diversas formas para alcançá-la e consolidá-la. Ao pensarmos nos significados e nas lutas para obtenção de liberdade por parte da população negra no século XIX, para além de pensarmos em escravizados, é essencial refletirmos sobre como no Brasil o trabalho compulsório também foi imposto para outros grupos dessa população, como aos africanos livres.

 

O contexto por detrás da categoria de africanos livres

A delimitação da categoria africanos livres foi elaborada no início do século XIX, por convenções internacionais destinadas a abolir o tráfico de escravizados no Atlântico. Os acordos entre Inglaterra e Brasil para a proibição do comércio de africanos escravizados, datam da vinda da família real para o Brasil em 1808. Sendo que já se registra a presença de africanos livres no Reino Unido de Portugal e Algarves desde o ano de 1818. Posteriormente, as pressões aumentaram como parte das exigências da Inglaterra para o reconhecimento da independência brasileira, até resultarem com a assinatura da lei de 1831 (GONÇALVES, 2011, p. 657).

No que diz respeito às legislações que influenciaram na delimitação dos africanos livres, temos o Tratado anglo-português, de 1815, e a Convenção adicional, de 1817, além do Alvará, de 1818, que proibiam o uso da bandeira de Portugal para fornecer escravizados para regiões que não fossem portuguesas. Tal legislação previa a punição de confisco do navio e da carga para os donos, e de degredo para os oficiais dos navios condenados (MAMIGONIAN, 2010, p. 80).

Além do mais, estava em vigor o decreto de 10 de dezembro de 1836, de Sá da Bandeira, que proibia o tráfico de escravizados no Império português. Desde 1839 prevalecia também o ato Palmerston, que colocava o tráfico em navios portugueses, ou sem bandeira, como pirataria e submetia os navios a julgamento em tribunais do Almirantado britânico. Do lado brasileiro, vigoravam o Tratado anglo-brasileiro, que proibia a importação de escravizados para o país e o envolvimento de súditos ou navios brasileiros no comércio de cativos. Ademais prevalecia a lei de 7 de novembro de 1831.

Havia uma significativa legislação que buscava coibir o tráfico internacional de africanos no Brasil. Paralelamente a essa legislação, os comerciantes luso-brasileiros vinham se adaptando à proibição da prática de várias maneiras, buscando de variadas formas burlar a legislação e permanecer com o tráfico de africanos. Dados confirmados e estimativas do tráfico brasileiro, apontam que ele cresceu de forma significativa na década de 1840, atingindo patamares antes não alcançados, sendo que o sudeste colocou-se como o principal importador de africanos escravizados (MAMIGONIAN, 2010, p. 80).

Segundo Mamigonian, a política de manutenção dos africanos livres como virtualmente escravizados de seus concessionários, não foi parte de nenhum plano premeditado pelos administradores imperiais. Porém, foi gradualmente inscrita na política governamental imperial, já que os africanos livres eram cada vez mais vistos como perigosos para a ordem social, por causa da incompatibilidade de sua condição jurídica com a hierarquia escravizada e pelo seu potencial de resistência. Sendo assim, foram utilizados como presentes a aliados em troca de sustentação política, e além disso, seu potencial econômico como trabalhadores livres era anulado e utilizado para reproduzir a hierarquia social da sociedade brasileira (MAMIGONIAN, 2005, p. 400).

 

Africanos Livres, definição e relações

Os africanos livres formavam uma categoria legal específica e complexa. Não se pode classificar sua mão de obra como livre, mas ao mesmo tempo, não podemos defini-la como escravizada em termos legais. Essa denominação foi criada no início do século XIX, por convenções internacionais destinadas a abolir o tráfico de escravizados no Atlântico. Eram nomeados por “africanos livres”, todos aqueles que haviam sido emancipados por estarem a bordo de navios detidos e condenados por tráfico ilegal, ou ainda por terem sido apreendidos em terra como africanos “recém-importados”.

Segundo Mamigonian, aproximadamente onze mil africanos foram emancipados e colocados sob a custódia do governo brasileiro entre 1821 e 1856, por terem sido trazidos ilegalmente para o país. Segundo acordos internacionais eles deviam servir por 14 anos como “criados” ou “trabalhadores livres”, antes de conseguirem sua liberdade na prática. Esse período seria uma espécie de aprendizado, para estarem aptos a adquirirem a tal liberdade. Sendo assim, foram distribuídos entre instituições públicas e concessionários particulares. Do pouco que se sabe sobre suas condições de vida é evidente que serviram muito além do tempo fixado e o governo imperial relutou-lhes em dar plena liberdade, sendo que muitas vezes esse tempo de aprendizado podia corresponder a vida do africano (MAMIGONIAN, 2005, p. 391).

Ademais, mesmo esse grupo sendo “livre”, sua suposta liberdade, não se confundia com autonomia (LISLY; CASSOLI, 2011, p. 654), já que não podiam escolher onde e com quem trabalhar. Africanos livres custavam um preço baixo quando comparado ao dos escravizados e, segundo Burlamaque, custavam 18 mil-réis, o que permitia que fosse mais “rentável a morte” desses indivíduos livres em tarefas perigosas, ou com excesso de trabalho do que de escravizados.

A experiência dos africanos livres ilustra os limites da liberdade do Brasil oitocentista. O fato de serem juridicamente livres, não garantiu a eles direito à autodeterminação, ou mobilidade espacial. Pelo contrário, sob a justificativa de que precisavam de um período de aprendizado, o governo imperial brasileiro os manteve sob tutela por décadas (MAMIGONIAN, 2005, p. 391). Por detrás dessa situação, havia como contexto a permanência do tráfico ilegal de escravizados com conivência e impotência na repressão por parte do império brasileiro.

É importante pensarmos que, a distribuição dos africanos livres possuiu uma concentração social diferenciada e, ao contrário da posse de escravizados, a deles não refletia renda, mas sim prestígio social. Os concessionários desses grupos eram na sua maioria, funcionários públicos, membros da elite política ou indivíduos que o governo imperial escolheu recompensar. Além dos africanos dirigidos a esses particulares, existiam os que trabalhavam diretamente a serviço do governo imperial (MAMIGONIAN, 2005, p. 394).

No caso dos africanos livres a serviço dos concessionários particulares, em suas casas faziam todas as tarefas domésticas comuns, em geral lado a lado com os cativos. Os homens cozinhavam, trabalhavam como cocheiros e cuidavam da roça. As mulheres cozinhavam, engomavam, passavam, lavavam e costuravam roupas, e também cuidavam das crianças dos concessionários, possuindo distintos graus de autonomia para sair de casa. No geral, havia uma certa proximidade doméstica entre escravizados e africanos livres, sendo que os últimos não eram mais bem tratados devido seu estado jurídico de livres (MAMIGONIAN, 2005, p. 395).

A concentração de africanos livres no mesmo tipo de trabalho exercidos por escravizados, demonstra que, ainda que juridicamente livres, eles não estavam no mercado de trabalho enquanto pessoas livres, mas enquanto novos escravizados. Como novos “aprendizes” nas casas de seus concessionários, eles recebiam tarefas, e acabavam sendo acomodados nos mesmos arranjos de trabalho que os cativos. Eles eram limitados pelas mesmas obrigações que os escravizados: servir e obedecer seus concessionários. Além disso, eram levados a pensar que a liberdade do trabalho viria apenas quando terminasse seu tempo de serviço (MAMIGONIAN, 2005, p. 399-400).

Para além dos africanos distribuídos entre concessionários privados, haviam aqueles empregados em instituições públicas, que tinham experiências bem distintas dos primeiros. Porém, a experiência também era marcada pela política de trabalho conservadora do governo imperial. Africanos livres trabalhavam em praticamente todas as instituições públicas ligadas ao governo central desde meados dos anos 1830 até meados dos anos 1860. De fato, à medida que o governo imperial se colocava em novas atividades e sua administração foi tornando-se mais complexa, sempre adotou a força de trabalho dos africanos livres.

Nas maiores instituições públicas do Império brasileiro, os africanos livres trabalharam lado a lado dos escravizados da nação. Inclusive, ambos os grupos partilhavam alojamento, alimentos e ocupações. É importante enfatizar que, segundo Mamigonian (2005, p. 400-403), o regime de trabalho nas instituições públicas era ainda mais rígido do que o praticado por concessionários particulares, possuindo uma disciplina mais rigorosa, inclusive militar, com uma maior limitação de sua mobilidade espacial.

 

Necessidade de coerção e resistência dos africanos livres.

Os africanos livres foram submetidos a várias formas de coerção e violência, por parte de indivíduos particulares e, principalmente, por parte do Estado imperial. Apesar disso, ou como consequência, eles resistiram a tais violências e muitos mostraram estar cientes de seus direitos, inclusive através dos meios jurídicos.

A coerção dos africanos livres estava relacionada à necessidade permanente por parte do governo imperial, de trabalhadores forçados para projetos nas fronteiras e obras públicas e, também, pela busca de manter os africanos livres sob estrito controle, independentemente de sua força de trabalho. Havia uma preocupação de manter a ordem social vigente, e como já dito, os africanos livres, devido seu caráter jurídico e seu potencial de resistência, podiam ser ameaças perigosas a ordem social (MAMIGONIAN, 2005, p. 403).

Os africanos livres, para além da imposição e coerção por parte do Estado e de particulares, exerciam suas tarefas porque eram levados a acreditar que assim que completassem o tempo de serviço compulsório receberiam sua emancipação plena. Porém, muitos deles ao verem seu tempo de trabalho cumprido e não alcançando a almejada liberdade, não se contentaram com tal situação, utilizando inclusive dos meios jurídicos para alcançá-la. Grinberg e Peabody (2014) evidenciam através de seus estudos que, pelo menos desde o século XVII, escravizados recorriam aos tribunais processando seus senhores com o objetivo de alcançar sua alforria.

As ações de liberdade entre senhores e escravizados envolviam bastante conflito e negociação e, apesar de esses serem fundamentalmente desiguais, por várias vezes os escravizados saíram vitoriosos dos tribunais, conseguindo sua liberdade (GRINBERG; PEABODY, 2014, p. 106-107).

Tendo em vista a importância do meio jurídico para a população escravizada oitocentista, para a obtenção de sua liberdade, podemos defender que para além da população escravizada, tal meio era relevante para outros grupos de pessoas negras, como os africanos livres. Esse grupo soube manipular os códigos legais da época, buscando uma liberdade mais plena, que entendiam como direito. Como exemplo, temos o africano Félix Mina.

Félix José Fernandes Monteiro, que se identificava como “mina”, entrou com uma petição junto ao ministério da Justiça, em março de 1857, alegando estar servindo em repartições públicas a mais de 20 anos. Sendo assim, tomando como base o alvará de 1818 e o decreto de 1853, que marcaram o prazo de 14 anos para obterem suas cartas de emancipação, apontando para a necessidade de ser emancipado (MAMIGONIAN, 2010, p. 71-74).

Nesse caso, é interessante pensar que Félix demonstrava conhecer a peculiaridade de sua situação jurídica de livre, e acreditava que a justiça devia assegurar sua liberdade, pois era seu direito. Como estratégia, Félix compromete-se inclusive a retornar para o continente africano. Esse fato do uso da justiça para alcançar a liberdade, não foi uma exceção do caso de Félix, e outros vários são apresentados pela própria Mamigonian, como o caso coletivo da Fábrica de Ipanema (MAMIGONIAN, 2010, p.71-74)

 

 

 


REFERÊNCIAS

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. 3a.ed.rev. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.

GONÇALVES, Andréa Lisly e CASSOLI, Marileide Lázara. Nas fímbrias da liberdade: agregados, índios, africanos e forros na província de Minas Gerais (século XIX). Varia História, FAFICH/UFMG, v.27, n.46, jul/dez. 2011, p.645-663.

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Do que? O preto mina? É capaz: etnia e resistência entre africanos livres. Afro-Ásia, n. 24, 2000.

MAMIGONIAN, Gallotti. José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas: notas sobre a reconstituição de trajetórias da era da abolição. Topoi (Rio de Janeiro), v. 11, p. 75-91, 2010.

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Revisitando a “transição para o trabalho livre”: a experiência dos africanos livres. In: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.389-417.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.

SALLES, Ricardo. Vassouras–século XIX. Da liberdade de se ter escravos à liberdade como direito. In: DE CARVALHO, José Murilo. Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2007, p.p. 287-311, 2007.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Arquivo Jean Baptiste Debret – Loja de barbeiros, 1821.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Eduarda Câmara

Maria Eduarda Câmara é natural de Embu das Artes- SP, mas viveu basicamente toda sua vida na cidade de Piranga-MG. É graduanda em História pela UFOP, membra do Coletivo Negro Braima Mané, e pesquisa sobre a luta de pessoas negras contra o sistema escravista no século XIX. Sua área de interesse principal, é a história e resistência negra. Atualmente ela é bolsista do projeto de extensão da UFOP e da UFMG, “Promoção da igualdade de gênero no contexto da pandemia da Covid-19: ações na Escola Municipal Bento Rodrigues a partir da literatura negro-brasileira do encantamento infantil e da literatura indígena”, que trabalha relações étnico raciais e de gênero na escola de Bento Rodrigues.

1 comment

  1. thiago 28 dezembro, 2022 at 11:41 Responder

    Acredito que os projetos de liberdade recuperados no XIX dentro da legalidade (sujeitos de direitos, petições e afins) são usados politicamente nos estudos contemporâneos como forma de aprovar uma disputa do Estado brasileiro no século 21. Embora fiquei subentendido nas entrelinhas de dada historiografia tal proposta. Certo?
    Ao meu ver, precisamos produzir textos que analisem qualitativamente os variados projetos de liberdade para ver no que resultaram. Logo, entendendo se tal proposta serve como exemplo para o hoje, porque se não qualquer projeto de liberdade é visto como referência legítima para o enfrentamento do racismo na atualidade. Acredito que a história tenha outro objetivo além de tecer curiosidades, ela nos instiga evitar erros no aqui e no agora.

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