A revolução não será (apenas) televisionada

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Sobre as Forças de Exu e do Axexê nas Telas da Rede Globo 

 

Quando de sua convocação para defender a seleção brasileira de futebol durante as Olimpíadas de Tóquio, o atleta Paulo Henrique Sampaio Filho, Paulinho, jogador do Bayer Leverkusen, comemorou em suas redes sociais: “nunca foi sorte, sempre foi Exu”. E ao render, nos meios digitais, as suas homenagens à controversa divindade do panteão afro-brasileiro, ele, o meio-campista, assumia, assim, publicamente a sua fé. Isso, bem o sabemos, foi postura corajosa diante da hegemonia cristã, de católicos e evangélicos, no universo atlético. Pois, como o esperado, as reações, por parte dos fãs, logo ocorreram, e o reiterado debate em torno do caráter supostamente diabólico e malfazejo de Exu se requentou. Por uma ironia que é muito típica ao deus, Paulinho anotou um golaço logo na partida de estreia da equipe no Japão. E no calor desse feito, o narrador Gustavo Villani bradou, em plenos microfones do SporTV, o canal esportivo da Globo, a maior emissora televisiva do Brasil: “GOL, PRA EXU APLAUDIR!”. Talvez o locutor não soubesse da correção expressa em suas palavras, pois, longe de se constituir malévolo, Exu, no candomblé, é, mesmo, a força da vida, das realizações; potência evocada e veiculada no bater das palmas, ato produtor de sons. E sob os aplausos divinos, Paulinho fez o gol, e isso satis-fez, realizou, membros das comunidades de terreiros, que, contemplados, orgulhosos, replicaram exponencialmente as cenas da jogada na voz de Villani. Distante do mero acaso, isso é Exu – e sempre foi –: o ímpeto realizador emergido, crescente, desde o dinamismo presente em polêmicas, muvucas e desafios. “Nunca foi sorte…”.  

Há poucos dias, apenas algumas semanas depois dos jogos olímpicos, outra cena veiculada pelo Grupo Globo passou a ocupar, nas redes, perfis dos frequentadores de terreiros, embora, é verdade, em menor escala quando comparada à anterior, a do golaço anotado por Paulinho. Trata-se, agora, do trecho extraído da atual telenovela chamada “Nos Tempos do Imperador”, ambientado durante realização de um rito fúnebre, celebrado por africanos e descendentes escravizados, na época aludida no título da produção. Sem qualquer levantamento mais sistemático, e em rápida passagem por perfis nos quais a sequência foi reproduzida, torna-se aqui novamente notável a expressão do orgulho e da representatividade quando das interações na seara virtual. E confesso sobre isso ter me surpreendido, por conhecer candomblecistas para quem os rituais funerários são – ou deveriam ser – envoltos em véu de mistério, inalcançáveis aos olhares leigos – todavia, no mais das vezes, as cerimônias tenham caráter público, mas pouco frequentadas na comparação com as festas de orixás. De qualquer forma, não encontrei condenações das cenas exibidas na programação aberta, que, ao invés disso, alimentaram o brio dos telespectadores ligados aos cultos de matriz africana no Brasil: suas vidas, e, inclusive, as maneiras de homenagem aos mortos, estavam ali atuadas e publicizadas para outros; o que, afinal, lhes imprime reconhecimento e existência – como nem só de cristãos se faz o futebol, campo de Paulinho. 

Do vívido e driblador Exu aos orixás evocados nas solenes ações de cunho funerário, algo parece mudar nas grandes mídias brasileiras – e, sem ingenuidade, não descartemos que há, nisso, muito da capitalização de temas literalmente caros aos pretos e aliados. Seja como for, pelo “bem”, pelo suposto “mal”, a controversa divindade está, sempre, na boca do povo, e frequentemente como o próprio estereótipo da pejorativa “macumba”: mesmo os críticos e leigos sabem das suas relações com as encruzilhadas, onde se costuma deixar o característico ofertório com velas, farofa e cachaça. Já para os “de dentro”, adeptos dos cultos, as ligações são, de fato, tão intensas que, nos processos de descolonização do pensamento, as encruzas têm sido destacadas como valor epistemológico fundamental da forma como os terreiros concebem as realidades – sob os múltiplos e as possibilidades de fuga, em detrimento dos binarismos e das prisões identitárias. Mas e quanto aos ritos póstumos, recentemente representados na telenovela global, orgulhosamente assistidos e comentados da parte dos religiosos de axé, apesar de desconhecidos pela maior parte da audiência? Do que tratam? Quais princípios estão ali implicados? E como, a partir deles, podemos captar e compreender demandas mais amplas do multiverso afro-brasileiro, expressas na satisfação por tê-los encontrado nas telas? 

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Primeiro, o que se convencionou nomear “candomblé” resulta dos encontros, religiosos e existenciais, entre, por um lado, as populações compulsoriamente afastadas e embarcadas da África ao Brasil, para, aqui, servirem de mão-de-obra escravizada, e, pelo outro, cosmologias e ontologias já existentes no atual território brasileiro – como as pajelanças indígenas – ou cá trazidas do continente europeu – catolicismo popular e, recentemente, o espiritismo. Impulsionado por uma população iletrada e que não firmou os seus valores em escrituras sagradas, e na ausência das autoridades centralizadoras, o candomblé – quando concebido no singular – tornou-se um complexo internamente muito diverso, a depender dos arranjos formados durante os séculos do tráfico atlântico de escravizados, cujo início ocorreu ainda no XVI. Assim, nos terreiros autorreferenciados no predomínio das tradições “nagô”, os ritos fúnebres costumam ser chamados “axexês”, enquanto os adeptos das matrizes “jêje” e de Angola preferem chamá-lo “sirrum”. E por se tratar de cerimônias póstumas, cabe, antes de abordá-las, propor algumas rápidas considerações sobre a Morte, conforme as perspectivas gerais típicas dos candomblecistas.   

Na concepção das comunidades de terreiro, a Morte – passível de grafia assim, em letra maiúscula – transcende o acontecimento que subtrai dos corpos físicos as suas funções orgânicas; ao invés disso, ela se constitui um agente, uma deidade – o orixá Iku –, com prerrogativas fundamentais para a manutenção do equilíbrio cósmico. Certo mito conta que outrora a humanidade e os deuses viviam, todos, no Orum – o plano imaterial –, e à primeira nada faltava, desde que não se esquecesse das devidas homenagens aos segundos; porém, do conforto e da afluência dados das divindades, os seres humanos passaram a se considerar divinos e se fizeram relapsos com as suas obrigações. E, desse modo, Iku foi criado por Obatalá – encarregado de confeccionar tudo aquilo que existe nos mundos –, quando, então, tornamo-nos mortais, sob a inevitável e permanente lembrança da nossa posição no cosmos. No entanto, Iku só pode agir, em cada caso, desde a determinação de Olorum, o grande Deus demiúrgico, que decidirá, particularmente, sobre o tempo da vida no Aiê – na Terra. E, decerto, para a própria continuidade da dimensão terrena, enquanto uns partem daqui para o Orum, outros, de lá, regressam.     

Diversa, também, da concepção cristã sobre as relações entre corpo e espírito indivisível, a cosmo-ontologia dos terreiros considera que quando Olorum assente o intervir de Iku sobre alguém, iniciam-se os processos, múltiplos e complexos, dos encaminhamentos póstumos. A síntese sugerida em um breve escrito do sociólogo Reginaldo Prandi (2000) ensina, por exemplo, acerca de o corpo (“ará”) decompor na terra, (re)integrando, pois, a natureza imanente, e, ainda, em restituição à lama mítica, da qual Obatalá confecciona as pessoas humanas. Esculpidas, elas são animadas com o “emí”, hálito vital de Olorum, valiosíssimo, jamais desperdiçado e retornado ao seu proprietário original, para novos sopros, após definitivamente esvaído das carnes. Como também acontece com o “iporí”, ou massa de conteúdos mitológicos usada na composição dos seres e determinante das suas regências cósmicas, potencialidades e dos interditos no Aiê; com a morte física, o conteúdo retorna ao todo de um orixá, digamos, “geral”, do qual é parte infinitésima. Já o “orí” – sinônimo de “cabeça” – equivale à individualidade e ao destino da pessoa, e, logo, não pode subsistir sem o correspondente portador – e evanesce no processo. E, enfim, o “egum”, formado da memória remanescida daquele outrora vivente material e dos laços sociais construídos no decorrer da sua biografia; essa intensidade, liberada do suporte orgânico, alcança o abstrato Orum e pode, depois, vir a (re)nascer na mesma linha de descendentes biológicos. 

Como ensina o mito mencionado mais acima, os humanos, se escolhidos para cultuar os orixás, devem cumprir, para com esses últimos, as devidas obrigações, iniciadas nos ritos inaugurais, periodicamente renovados, quando os laços entre ambos, pessoas físicas e deuses, são estreitados. Diante desse pressuposto, a função imediata dos rituais fúnebres, os axexês, é a de reverter o processo da contínua formação de alguém enquanto membro, em vida, da sua comunidade sagrada, a fim de que a partida rumo ao Orum ocorra de maneira plena. Do contrário, uma vez ignorada a oficialização do cerimonial, o egum, ou aquele conteúdo energético já mais individualizado do falecido, pode seguir conectado ao Aiê, seja pela inconsciência acerca da atual condição ou, então, devido à recusa na tomada do seu novo, e necessário, rumo – aqui, porque ainda apegado aos gostos e hábitos cultivados na Terra. Não se trata, contudo, somente da liber(t)ação definitiva do morto, mas também de uma dinâmica voltada à sua sublimação. Afinal, os candomblecistas satisfatoriamente cumpridores dos destinos lhes reservados, depois de homenageados nas celebrações funerárias, se considerados ilustres, notáveis, nas comunidades das quais são parte, adquirem direito ao recebimento de cultos nos assentamentos para si montados; dali contemplados e energizados, pode acontecer uma elevação ao ponto de algo dessa substância póstuma ser digna de invocação e da composição, coletiva, de novos seres – e tal compatibilidade com o emí, arrisco, indica a divinização da outrora pessoa.  

No limite, a celebração do axexê visa, portanto, reorganizar as experiências entre os vivos e mortos, sob o controle ritualístico dos trânsitos energéticos: em um lado, o egum, já despedido, digamos, abdica de extrair a vitalidade dos entes queridos e corpóreos, junto dos quais poderia permanecer encostado; porém, pelo outro, recebe cerimonialmente as forças cabidas, que, socialmente emanadas, e, portanto, abundantes, seriam passíveis, agora sublimadas, de invocação e da redistribuição com algum conteúdo divino. O ser espectral, assume, então, caráter de um ancestre sagrado e atuante em favor do bem coletivo. Essa (cosmo-onto)lógica deixa mais compreensíveis certas características comumente referenciadas na abordagem dos candomblés mortuários: primeiro, a extensão dos rituais, prolongados, às vezes, por várias noites, repetidas no intervalo de anos – pois devem ter a proporção equivalente àquela dos vínculos de inserção, cósmica e comunitária, antes construídos em vida –; segundo, a aniquilação dos pertences sagrados acumulados durante a biografia do finado – já que os bens diziam respeito à trajetória humana individual enquanto membro da Terra e do terreiro, ora, assim, cumprida, ultrapassada, sem a atual necessidade de rastros e reminiscências que confundiriam, perigosa e demasiadamente, os dois mundos: este e o do além.        

*** 

Mesmo nos limites permitidos por esta aproximação muito breve, parece inegável que, nos candomblés, a Morte não é o fim, mas, sim, uma força cósmica cuja ação implica, como em qualquer outra, consequências, reações. Nesse caso, ao invés do imaginado, talvez, pela maioria, as contrapartidas envolvem a possibilidade dos (re)inícios: das complexas trajetórias do múltiplo espírito no Orum, e daqueles, de algum modo, retornados, dali, para o Aiê. Logo, tais realiz-ações exigem os ímpetos (re)criativos de Exu, Rei da encruza, onde tudo se faz de todo jeito, em qualquer direção: o final da vida pode, sim, ser a morte; mas os fins da morte não trariam consigo a prerrogativa da vida? Ambas, uma e outra, para quem pensa posicionado nos centros das encruzilhadas, estão muito mais sobrepostas do que opostas ou, mesmo, paralelas. Sem negar, portanto, essas concepções irradiadas da alçada do popular Exu, os discretos axexês, quando festejados pelas comunidades de terreiro – seja literalmente, como rito funerário, ou pela sua encenação transmitida na novela global –, evidenciam uma gama de valores, cosmológicos, ontológicos, existenciais, imprescindíveis entre os seus membros: destaco, aqui, afora outros, a continuidade, o equilíbrio e a restituição, condições do povoamento da realidade.     

Na ampliação desses princípios, assim fundamentados, para o campo filosófico mais tradicional da política, poderíamos afirmar que a sociedade brasileira consolidou as suas elites – econômicas, e cultural e religiosamente hegemônicas, brancas – sobre as costas dos africanos escravizados e, depois, dos descendentes; lhes usurpou, inicialmente, a vida na terra de nascimento e junto do seu chão sagrado; isso, sabemos, fez do Brasil, hoje, um dos países mais desiguais do mundo, com umas pouquíssimas fortunas acumuladas à custa do trabalho não pago ao povo preto. A dívida histórica não qualifica exatamente a situação, pois a temporalidade como “O” caminho e “A” verdade só diz respeito aos homens e à Igreja, quando no cosmos das encruzas vibram Exu e Iku; o sequestro da continuidade, a perpetuação dos desequilíbrios e a falta para com as restituições resultam – melhor – dos cerca de 500 anos de axexê sem celebração pelas instituições conformadoras do atual Estado nacional, em honra de seus legítimos construtores. O gol do Paulinho e a cena da novela – como as “mulheres do tempo” nos telejornais, o topo da lista das obras mais vendidas, as cotas raciais nos concursos públicos e universidades – constituem, sem dúvida, avanços notáveis, conquistas dignas de muito orgulho, mas ainda são apenas prenúncio de todo o necessário à vida em plenitude, aqui, e ao descanso, já póstumo, daqueles que cá estiveram. E que o lume dessas velas recentemente acesas, de pronto, faça exorcizados – cada vez mais distantes daqui – os obsessores, kiumbas e vampiros desta nação – também nagô, jêje, Angola, indígena –, apesar de parcela deles ainda prosseguir, ao menos corporalmente, bem viva.            

 

 

 


REFERÊNCIAS

PRANDI, Reginaldo. Conceitos de vida e morte no ritual do axexê: tradição e tendências recentes dos ritos funerários no candomblé. In: Martins, C.; Lody, R. (Ed.). Faraimará – o caçador traz alegria. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. 

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Axexê – cerimonial fúnebre (Carybé).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thomás Antônio Burneiko Meira

Thomás Antônio Burneiko Meira é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua, desde 2011, como docente e pesquisador no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM). É iniciado, como ogã de Omolu, no culto dos orixás; e seu verdadeiro nome é Ojatossun.

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