Histórias de esquecimento e radicalismo político

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WASSERMAN, Cláudia. A Teoria da Dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: FGV, 2017. 236p.

 

Capa do livro A Teoria da Dependência de Claudia Wasserman

 

Há tempos queria escrever essas linhas sobre A teoria da dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo, da historiadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cláudia Wasserman, lançado no final de 2017 pela Editora FGV. A autora percorre a trajetória de quatro intelectuais, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, os quais só conhecia por rodapés ou pela oralidade do professor de economia Nildo Ouriques, divulgador de suas obras junto ao Instituto de Estudos Latino Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Aqui uma dupla falha: a minha como pesquisador, mas também a dos cursos que frequentei, da graduação ao doutorado, cujos programas passaram ao largo desses autores.

O prefácio da obra é assinado por Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Em sua apresentação sugere a ideia de uma “história da derrota”. Talvez esse não seja o melhor termo, penso que uma “história do esquecimento” seria mais adequada. Esquecimento tanto pelo exílio, visto que os quatro jovens intelectuais deixaram o Brasil após o golpe de 1964, quando protagonizavam a gênese de um pensamento crítico nacional na recém fundada Universidade de Brasília (UnB), mas também um esquecimento arquitetado por parte das ciências sociais uspiana, que monopolizou a crítica, reorganizou a pauta política do subdesenvolvimento dentro da ordem e que relegou o marxismo e sua práxis a um  restrito clube de leitura, protagonizado por jovens promissores da intelligentsia nacional, conhecida como a Escola Paulista de Sociologia (OURIQUES, 2017).

Nesse sentido, o livro de Cláudia Wasserman se torna fundamental porque: 1) recupera uma história pouco conhecida do pensamento social brasileiro, tão acostumada como a notoriedade de nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, etc; 2) porque discute, à luz da história crítica e da pesquisa empírica densa, o papel desses intelectuais na sociedade, suas interpretações da realidade concreta pela ótica marxista e revolucionária, bem como seus projetos políticos de superação da condição de dependência dentro dos quadros do imperialismo; 3) porque atualiza debates pretéritos e substanciais num momento de total vazio de ideias e propostas políticas, tanto à direita, quanto à esquerda; e, 4) porque contribui para o estudo da História Intelectual brasileira e latino-americana, apontando para a importância desses agentes de transformação social em detrimento do acadêmico, há muito engolido pela lógica produtivista do mercado curricular imposto pelas instâncias de fomento (JACOBY, 1990).

Dentre os pontos acima, a questão do vazio de ideias me chama mais a atenção na leitura do livro, na medida em que a prosopografia geracional apresentada pela autora insere os personagens no centro nervoso de acontecimentos políticos do seu tempo, descrevendo uma rica e conflituosa disputa intelectual por projetos de país, num cenário de tensões ocasionadas pela guerra fria e pela vitória da Revolução Cubana.

De modo que até o golpe de 1964 os diferentes projetos sociais que passavam pelo ideário do nacionalismo, à direita ou à esquerda, tocavam em questões essenciais do país, como industrialização, política externa independente, aliança com a burguesia industrial, capital estrangeiro, reformas de base, etc. Debates que variavam em forma e conteúdo, a exemplo dos artigos da Revista Brasiliense, de Caio Prado Júnior, que propagava certo tipo de capitalismo estatal, num acordo de classes, mas que previa disciplinamentos aos investimentos diretos de capital estrangeiro, sobretudo na remessa de lucros ao exterior e ao pagamento de royalties e dividendos. Ou do ISEB, que em sua fase inicial apoiou, a partir do Plano de Metas, a plataforma nacional-desenvolvimentista do governo JK, mesmo em suas mais evidentes contradições, como o endividamento do estado e a reprodução dos latifúndios durante a construção de Brasília.

Todavia, vale ressaltar, que em sua fase posterior o ISEB radicalizou o discurso, instituindo, no apoio ao governo João Goulart, uma pauta antiimperialista, reformista e muito mais comprometida com as classes trabalhadoras, visto em publicações  como os Cadernos do Povo Brasileiro, que entre 1962 e 1964, se tornou um importante instrumento de divulgação de ideias e de luta política no campo popular. Dentre os títulos, destacam-se Quem é o povo no Brasil?, Por que os ricos não fazem greve?, Quem dará o golpe no Brasil?, Como seria o Brasil socialista?, Como atua o imperialismo ianque?, entre outros assuntos hoje encobertos pelas chamadas pautas identitárias (LOVATTO, 2009).    

No caso do grupo estudado, havia a viabilidade da chamada Revolução Brasileira, cuja proposta visava a superação das condições dependentes e periféricas pelas vias do socialismo. Posição que o grupo não abriu mão, mesmo durante suas andanças no exílio, entre Chile e México. Naqueles países encontraram o apoio intelectual necessário para divulgar suas teses de integração latino-americana e de superação do capitalismo dependente, vistas em uma dezena de publicações em espanhol e pouco divulgadas no Brasil até os dias de hoje, salvo esforço de integrantes do IELA/UFSC na compilação, tradução e publicação de alguns títulos importantes dentre os quais: Subdesenvolvimento e revolução (1969), de Ruy Mauro Marini e O capitalismo dependente latino-americano (1972), de Vania Bambirra[1].

Eis então, outro ponto positivo do livro de Wasserman, a recuperação desses textos e livros, criticamente discutidos ao longo de três capítulos, em consonância com os debates sobre a modernização do país, possibilitando ao leitor a compreensão de uma história e posteriormente da constituição de uma memória das ideias políticas brasileiras, bem como de seus silenciamentos, que vão dos anos 1950 à década de 1990. Ou como sugere na capa, do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo.

O livro também aponta para a ideia de “não lugar” quando narra o retorno do exílio dos quatro intelectuais, às voltas com incertezas e medos quanto ao futuro que se abria após a lei de anistia em 1979. Àquela altura estava clara a crise de adesão às utopias da modernidade, aos valores das sociedades ocidentais advindas do Maio de 68, das metanarrativas e a contestação ao marxismo como única teoria capaz de explicar o mundo contemporâneo. A pauta acadêmica a partir dos anos 1980 era outra. O Plano Nacional de Pós-Graduação posto em prática pelos militares anos antes foi fundamental nesse processo, que adensou o produtivismo, muitas vezes estéril e criou a figura do especialista, alijando do debate acadêmico nossos personagens (OLIVEIRA, 2018).

Fora da universidade se vincularam ao trabalhismo, ao brizolismo e se viram imediatamente identificados com uma “velha esquerda”, populista, saudosa do pré-1964, emparedados entre a “nova esquerda”, encabeçada pelo PT, e a pretensa social-democracia do PSDB, onde estavam alojados os autores da teoria da dependência que se tornou hegemônica e que se metamorfoseou em neoliberalismo, à medida que nunca acreditou na possibilidade da livre-iniciativa do empresariado nacional, sempre disposto a abrir mão do nacionalismo em detrimento do capital multinacional ao qual estão associados e representam (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2017, p. 14-15).

O livro aborda ainda o esforço dessas personagens em construir um arcabouço teórico livre da dependência filosófica, teórica e epistemológica dos países centrais, que explicasse a América Latina, seu subdesenvolvimento e examinasse as possibilidades e alternativas aos povos da periferia. Dentre a fontes utilizadas se destacam os memoriais acadêmicos produzidos pelas personagens para retomar suas atividades nas universidades brasileiras, nas quais a autora percebe os sentimentos envolvidos na tentativa de retomar a vida profissional, pessoal e cidadã.

Por fim, vale destacar a crítica da autora à chamada “democratização sem sobressaltos” e à “higienização da intelectualidade” de esquerda dos anos 1980, das quais o grupo de Brasília foi vítima, sofrendo o ostracismo como consequência de terem mantido uma posição política e teórica radical. Importante, porém, é que recentemente seus projetos e diagnósticos começam a ser reabilitados dentro de um trabalho de crítica que poderá servir de ponto de partida para novos questionamentos tanto no Brasil, quanto na América Latina.

Desse modo, frente um cenário atual de incertezas e de avanço neoliberal, o livro é um estímulo para que a academia, os movimentos sociais e os partidos políticos retomem o quanto antes, a batalha de ideias. Em outras palavras, qualificar o debate e buscar soluções radicais (no sentido de ir à raíz dos problemas), propondo mudanças estruturais necessárias, focadas no desenvolvimento industrial e tecnológico, na manutenção e ampliação de direitos conquistados, no investimento público em setores estratégicos, na valorização da cultura e da história, na crítica eficaz ao rentismo e de maneira mais imediata, propor alternativas aos problemas que assolam a vida de milhões de brasileiros.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Prefácio: A história como derrota. In: WASSERMAN, Cláudia. Teoria da dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

JACOBY, Russel. Os últimos intelectuais. A cultura americana na era da academia. São Paulo: Edusp; Trajetória Cultural, 1990.

LOVATTO, Angélica. Ênio Silveira e os Cadernos do Povo Brasileiro. Lutas Sociais, São Paulo, nº 23, p. 93-103, 2º sem. 2009.

OLIVEIRA, Rodrigo Perez. O engajamento político e historiográfico no ofício dos historiadores brasileiros: uma reflexão sobre a fundação da historiografia brasileira contemporânea (1975-1979). História da Historiografia, nº 26, jan/abr, ano 2018, p. 197-222.

OURIQUES, Nildo. O colapso do figurino francês: crítica às ciências sociais no Brasil. 4.ed. Florianópolis: Insular, 2017.

 

 

 


NOTAS

[1] Vale ressaltar que enquanto elaborava o texto desta resenha acabava de ser lançado um volume organizado por Luis Bernardo Pericás, Caminhos da Revolução Brasileira, editora Boitempo, 2019,  que resgata, entre outros, textos de Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos.

 

 

 


Créditos na imagem: Presidente Juscelino Kubitschek inaugura o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1956. Arquivo Nacional.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Rafael Pereira da Silva

Bacharel, licenciado e mestre em História pela UFSC e doutor em História pela UNICAMP com período de estágio (PDSE) na Università di Roma- "La Sapienza". Atuou como docente da educação básica nas redes pública e privada de Santa Catarina e como colaborador junto à Olimpíada Nacional em História do Brasil-UNICAMP. No ensino superior, como docente substituto, lecionou na Universidade Brasília -UnB, as disciplinas de Introdução aos Estudos Históricos e Prática de Pesquisa Histórica. Atualmente é Pesquisador Colaborador e bolsista de Pós-Doutorado (PNPD) junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UnB, realizando pesquisa e atividades no seguintes áreas temáticas: memória histórica, história intelectual, biografia e arquivos pessoais, historiografia brasileira.

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