Eu sou uma mulher

Eu sou uma mulher, era isso que repetia incessantemente pra mim mesma naquela noite. Eu sabia que eu deveria obedecer e que depois daquela noite me tornaria enfim uma mulher.

Era o que tinha ouvido da minha mãe…

Pensava nisso algumas horas antes, enquanto me vestia de branco, enquanto subia no altar…

O que quer que ele fizesse não poderia ser tão ruim. Minha mãe era uma mulher, minha avó havia sido uma mulher também e ambas estavam bem(vivas), então bem (viva) eu deveria ficar.

Passei pela festa que minha sogra gentilmente pagou, cumprimentei cada um dos convidados, sorri, mas não conseguia parar de pensar no que é que me tornaria mulher.

Então, enfim sós.

Tive a impressão de que ele também não sabia o que fazer. Me levou para o quarto, me mandou deitar, e começou a tirar a roupa… Pensei em tirar a minha roupa também, mas ele não me mandou, fiquei vestida. Se ao menos meus braços ficassem livres das mangas, eu deveria obedecer, e era obediente, embora digam que não. Me cobriu com o lençol, que era branco também, e ergueu a saia do vestido, e foi então que comecei a me tornar mulher. Algo em mim era preenchido, rapidamente senti dor, mas deveria obedecer, não disse nada, ele não tinha o hábito de me deixar falar.

Ele tentava fazer entrar, mas meu corpo parecia resistir, senti que a culpa era minha. E ele tentava um pouco mais. Eu sentia como se algo em mim estivesse sendo rasgado, não parecia ser possível entrar. Meu corpo não estava quente, eu sentia frio, eu estava dura, ali, sem me mexer, meus olhos devem ter se enchido de lágrimas, mas eu não deveria chorar, não deveria gritar, estava me tornando uma mulher. Ele tentava um pouco mais e a cada vez que tentava algo se rasgava com mais força em mim. Ele parecia não se importar.

E então entrou, e pude sentir o sangue correr. Tinha mesmo sido rasgada. Eu sentia o meu corpo, sentia o corpo dele, mas ele não parecia se importar.

Eu já não era uma mulher? Já não estava rasgada? Ele continuava como quem desejava ter certeza. Ele agarrou as tranças do meu cabelo, bateu na minha cara com a mão trêmula e me chamou de puta, me senti uma presa…

a presa de alguém que tentava demonstrar, desesperadamente, o quão predador poderia ser.

Sabe o que é mais engraçado em tudo isso? Algo em mim queria gritar, chorar, bater, rasgar a cara dele e sair correndo daquele quarto com as gotas de sangue escorridas pela minha coxa, mas eu deveria me calar. Ele tinha que escrever um romance. E eu tinha que me tornar uma mulher. Então, como poderia culpá-lo por ter me rasgado com tanta força? Entende? Você entende que eu deveria ficar em silêncio e ao mesmo tempo era como se esse silêncio me tornasse culpada pela dor? A minha falta de reação, os meus olhos cheios de lágrimas, o meu corpo frio e duro…

Estava seca, seca como essas cascas de árvores que caem duras no mês de agosto e nas quais as crianças gostam de pisar para ouvir o barulho delas se quebrando…

Mas nada disso, nada disso seria suficiente para culpá-lo depois. Se eu não gritei, se eu não fechei as pernas, como ele poderia adivinhar, não é? Era como se eu, como se eu tivesse traído meu próprio corpo ali. Sou uma traidora de mim mesma. Não te dá vontade de gargalhar também?

Cinco minutos que pareceram ser cem.

Acabou.

Ele se virou, sem nada dizer. Meu corpo estava su(o)ando frio, não sabia se deveria retirar o lençol sujo de sangue, se deveria me limpar. Ele não me disse o que fazer e eu não conseguia falar. Então apenas me “virei de lado, num suspiro aliviado” e pensei uma vez mais antes de dormir:

“Sim,

ele,

o Bento,

o bentinho,

 o seminarista,

o filho da velha beata

havia feito de mim uma mulher. E uma traidora também”

 

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Chronosfer.

 

 

 

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