O dia em que li Bell Hooks pela primeira vez

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“Ensinar é um ato teatral. E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as mudanças, a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras pra evidenciar os aspectos únicos de cada turma. Para abraçar o aspecto teatral do ensino, temos de interagir com a platéia, de pensar na questão da reciprocidade.

(Ensinando a Transgredir, bell hoocks)

 

Estava no meu primeiro Estágio Docência do doutorado, a disciplina era de Ensino de História e o texto discutido na aula seria Ensinando a Transgredir de bell hooks. Nunca tinha lido um texto dessa autora antes, e sabia que ela era uma mulher negra. Estava animada. Não me lembro de ter lido autoras negras durante as minhas aulas da graduação, os professores ainda eram os mesmos porque permaneci na mesma Universidade, e tudo isso significava, para mim, que de fato havíamos avançado, que as investidas do movimento negro estavam ali também. Sei que autoras negras ainda não estão presentes na maioria das bibliografias ensinadas na Universidade, precisamos nos reinventar, precisamos exercer uma autocrítica quanto ao conteúdo que debatemos, quanto aos autores e autoras que utilizamos para falar de desconstrução…. Mas naquele momento me dei conta de que alguma aluna preta seria apresentada a uma autora negra muito antes de mim, e isso me encheu de esperança.

Mulheres negras sempre se encontram em algum ponto, é claro que as oportunidades variam de acordo com as condições financeiras e culturais, mas ainda sim, todas, absolutamente todas, compartilham histórias muito parecidas. Nunca conheci uma mulher negra que não pudesse falar sobre o racismo e a violência de gênero que sofreu e continua a sofrer, nunca li um texto ou assisti uma palestra ministrada por uma mulher negra na qual não me reconhecesse em suas palavras. bell hooks é uma autora norte-americana, nascida em 1952, ela viveu o período de grande segregação racial nos Estados Unidos, seu contexto é completamente diferente do meu, eu não sei de que música ela gosta, se gosta de dançar ou de assistir filmes, mas ao ler os seus capítulos e ensaios me reconheço em muitos parágrafos.

Nesse texto em questão, bell hooks fala sobre a sua relação com a sala de aula. A forma pela qual a escola e suas professoras negras do ensino fundamental a ensinavam a resistir. Resistência, esta é uma palavra extremamente importante na trajetória da autora, estudar e tornar-se uma professora significava para ela “um ato contra-hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista”[1]. Nas primeiras escolas que frequentou só havia estudantes negros e negras, e apesar de todos os problemas inerentes ao apartheid, e, à todas as políticas de exclusão e agressão a homens e mulheres negras, naquela escola havia espaço para opinar, discutir e sonhar.

Com o passar dos anos, e com as mudanças políticas que assumiam outras posturas em relação ao racismo e a inclusão, bell hooks passou a estudar em outras escolas. Seus colegas de classe agora eram brancos e negros, e as professoras já não reivindicavam a resistência como mote do ensino e da luta racial. A escola tornou-se apenas um lugar para decorar, aprender fórmulas, encaixar-se em formas pré- delimitadas e silenciar-se. De repente as questões da mulher preta tornaram-se lutas secundárias, não ditas, deixadas para depois…. E qual mulher não se reconheceria nessa autora? Que homem negro não se identificaria? Que mulher negra não pode contar uma história parecida?

A resistência que ainda temos a essas demandas surge, entre outros motivos, de um lugar de muito medo. Claro, não é fácil sair da zona de conforto, não é fácil admitir que erramos todos os dias, que preferimos não falar e não fazer. Todos erramos em escalas e em circunstancias diferentes, todos, mulheres e homens, negros e brancos, e admitir isso é o primeiro passo para a construção, para a tentativa de acerto, para a reinvenção. Não é à toa que bel hooks se identifica com a produção de Paulo Freire, ambos dissertam acerca da necessidade do reconhecimento na sala de aula, da reinvenção do dia a dia, da liberdade. A liberdade que há em uma aula e professor abertos às experiências de seus alunos, a liberdade que há em receber críticas e criticar, a liberdade que há em transformar as escolas e Universidades em espaços de construções cada vez maiores.

Após a experiência com a escola, bell hooks adentrou os ambientes Universitários, foi aluna e também professora. “O entusiasmo no ensino superior era visto como algo que poderia perturbar a atmosfera de seriedade considerada essencial para o processo de aprendizado”[2], e também, como um desafio assumido por ela com responsabilidade e com amor. bell hooks nos fala sobre a resistência encontrada em determinada turma de alunos, e que a construção precisa ser um coletivo de ideais e enfrentamentos. Eu aprendi muito com a minha primeira leitura de Ensinando a transgredir, e continuo aprendendo porque que não consegui parar de ler as obras de autoras negras como ela. Espero que tenhamos cada vez mais professoras (es) como bell hooks no mundo, e, que o mundo esteja cada vez mais preparado para receber professoras (es) assim. S2.

 

 

 


REFERÊNCIAS

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

 

 

 


NOTAS

[1] HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017. p 10.

[2] Idem, p.17.

 

 

 


Créditos na imagem: Ethics.org / Disponível em:  https://ethics.org.au/big-thinker-bell-hooks/

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Ana Paula Silva Santana

Doutoranda em história no programa de pós graduação em história da Universidade Federal de Outro Preto (PPGHIS-UFOP). Mestre pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES. Graduada em história licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto. Graduada em História Bacharelado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade (NEHM). Integrante do Grupo de História Ética e Política (GHEP). Editora Colaboradora da Revista HHMagazine- Humanidades em Rede. Pesquisadora vinculada à linha de pesquisa Poder, Espaço e Sociedade do PPGHIS -UFOP. Interesses:Teoria da História, Gênero, Romantismo Brasileiro, História do Brasil Império

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