As comemorações de efemérides podem produzir um esvaziamento do presente em detrimento do passado. Esse ano de 2022 parece ser diferente: o passado rebate no presente, que o atualiza. Isso é porque o passado ainda não passou. Depois das discussões em torno do centenário da Semana de Arte Moderna, que renderam uma discussão pública de interesse, e ainda antes das comemorações do Bicentenário da Emancipação, que acontecerão mais ou menos a um mês da eleição de outubro, temos o centenário do PCB, cuja comemoração (a discussão pública é já uma comemoração) não teve o impacto que a Semana de 22 teve e que o Independência promete. Para além das cerimônias comemorativas, o que me parece ter acontecido de realmente importante foi a publicação pela Boitempo, junto com a Fundação Astrojildo, de um conjunto de obras do crítico literário que foi um dos fundadores do partidão. De toda essa produção tornada mais uma vez disponível para o público interessado, gostaria de chamar atenção para o livro sobre Machado de Assis, o escritor sobre o qual o crítico mais produziu e em cuja bibliografia deixou uma marca considerável.
Diga-se de antemão: o tipo de crítica que Astrojildo praticava não está na moda por dois motivos, um que considero justo e outro absolutamente injustificável. O motivo justo é que, a rigor, Astrojildo não pratica crítica literária no sentido que a entendemos: não guia sua análise (raramente há análise!) por categorias literárias bem delimitadas, o que o leva a uma série de confusões indesculpáveis. Confunde a obra com o homem, o homem com seus personagens. Diz com certa facilidade que determinada afirmação de determinado personagem pode ser considerada a posição do próprio autor. Usa informações biográficas para determinar a descrença religiosa de Machado de Assis e, com isso, pretende dizer algo sobre sua obra. Os exemplos são muitos e um leitor experiente em crítica literária facilmente reconhecerá esse aspecto datado do livro, fruto de uma época em que a crítica não era ainda uma atividade profissional institucionalizada dentro da universidade. O outro motivo, e esse considero extremamente injusto com o autor, é o fato de que, marxista de primeira hora, Astrojildo praticava o que se chamaria de crítica sociológica, que está fora de moda pelo menos desde a década de 1960 com o surgimento do estruturalismo e depois do pós-estruturalismo. Um estudioso engajado numa atualização afoita da bibliografia consideraria o texto do crítico carioca como algo que cheira a mofo, essa coisa estranha que alguns ainda produzem que é a crítica que entende a relação entre a literatura e a vida social, para além dos jogos simples de linguagem. Considero esse um motivo injusto por dois motivos. Primeiro, se é verdade que o essencial da literatura acontece na linguagem, sua feição social é inescapável, ou seja, que, como fenômenos de linguagem, a literatura também é um fenômeno social e, como tal, um objeto que pode ser apreendido em sua determinação sociológica mais básica é algo que não se nega. Mesmo que a sociologia da literatura não seja propriamente crítica literária, ela recolhe informações e fornece contextos que a crítica propriamente, o trabalho detido e delongado com o texto literário entendido em sua literariedade (para usar o termo dos formalistas russos), simplesmente não pode ignorar. Segundo, em nossa própria tradição temos exemplos de críticos que, partindo da relação entre literatura e sociedade, praticaram propriamente crítica literária e não sociologia da literatura. Para ficar nos dois mais eminentes, temos Candido e Schwarz.
Mas para além dessas colocações de princípio, é preciso dizer que Astrojildo Pereira tem mesmo contribuições a nos dar sobre Machado de Assis. Mesmo com suas deficiências (e são muitas!), ele é capaz de intuir aspectos que me parecem fundamentais e que podem ser usados como substrato para uma compreensão crítica mais apurada do autor. Talvez a mais importante delas esteja desenvolvida nos dois primeiros ensaios do livro: “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado” e “Instinto e consciência de nacionalidade”. Partindo da concepção segundo a qual há no Segundo Reinado uma disputa entre uma burguesia ascendente e a aristocracia vinculada à terra, Astrojildo identifica a obra de Machado dentro desse conflito no campo progressista, a saber, o da burguesia nacional. Vejamos como o autor elabora sua visão da história nacional:
Está visto que o aparecimento da burguesia como tal na arena política não significava apenas o “desejo” de partilhar do poder; significava principalmente o início da ascensão histórica de uma nova classe dirigente, que subia do meio para o ápice da pirâmide, impulsionada pela força de novos interesses acumulados em consequência do deslocamento subterrâneo que se operava na estruturação econômica do país. Ora, este fenômeno de deslocamento – portanto de transição – lastreou toda a evolução social do Brasil a partir de então (…) (PEREIRA, 2022, p. 36).
Algumas páginas depois, ele nos diz sobre Machado:
Note-se que ele desde cedo começou a investir contra semelhante concepção não na qualidade de reformador social – qualidade completamente estranha ao seu temperamento e à sua formação intelectual – mas porque, indivíduo que emergia de uma camada social oprimida pelas condições dominantes, ele exprimia, instintivamente pelo menos, uma nova concepção moral relativa ao triângulo amor, casamento e família, em consonância com o novo tipo de civilização que se ia elaborando, lentamente, nas entranhas da sociedade brasileira (PEREIRA, 2022, p. 40)
Aqui temos a oportunidade de ver tudo o que dissemos acima em operação. Note-se, primeiro, como ele identifica a posição social da obra de Machado à origem social do homem Machado de Assis. Note-se ainda como ele considera que, por causa dessa origem, o autor “exprimia instintivamente pelo menos” uma visão de mundo vinculada a uma sociabilidade burguesa. O adjetivo instintivo é, quase sempre, um equívoco quando se trata de um artista tão consciente quanto Machado. Na citação anterior, veja-se ainda que ele considera a burguesia nacional como uma classe que emerge do centro da pirâmide social, ou seja, como classe de origem popular e não como franja da classe aristocrática que herdamos da Colônia. Isso, obviamente, relaciona-se à famigerada tese do PCB sobre a necessidade de uma revolução burguesa no Brasil, protagonizada exatamente por essa nova classe, que se imaginava, à semelhança da burguesia europeia, oriunda das classes populares. Tudo isso me parece correto e os problemas de trechos como esses são muitos. Mas há uma intuição do autor que, acho, permanece válida e a crítica posterior, muito mais munida de instrumental analítico, de alguma forma confirma: Machado, apesar das muitas facetas de sua obra, parece ter realmente produzido uma obra que dramatiza a derrocada de um velho Brasil em detrimento de um país moderno que surgia das entranhas desse novo organismo social que começou a se estabelecer durante o Segundo Reinado. Pense-se, quanto a isso, no trabalho de Chalhoub (2003) e de Roberto Schwarz (2012a; 2012b), que, apesar de suas diferenças de perspectiva e de intensidade analítica, enfrentam o mesmo problema e nos apresentam, apesar de suas diferenças, um Machado a um só tempo crítico do país que acabava e cético quanto ao país que surgia. Não é exatamente esse drama que o narrador volúvel dramatiza? Apesar de sua formulação intuitiva, a tese de Astrojildo parece ficar em pé.
No segundo texto da coletânea, “Instinto e consciência de nacionalidade”, discutindo o mesmo problema, Astrojildo parece nos oferecer um conjunto de problemas que seu texto não propriamente enfrenta ou enuncia, mas que está ali latente quando o lemos em conjunto com o primeiro. A tese fundamental é que Machado, além de perceber o instinto de nacionalidade na literatura brasileira, no famoso ensaio de 1873, é também a figura que alça nossa literatura à sua consciência. Essa tese tem longa história na crítica: é a conclusão da Formação da Literatura Brasileira, de Candido, está na Prosa de Ficção, de Lúcia Miguel Pereira, e, quase com vocabulário repetido, no A tradição afortunada, de Afrânio Coutinho. Trata-se, todas essas, de obras mais ou menos contemporâneas que discutem a posição de Machado no desenvolvido da literatura brasileira e de sua consciência como tal e todas elas, mesmo que por motivos diferentes e com terminologias distintas, acabam concordando com a tese que também Astrojildo nos apresenta neste ensaio.
Um dos elementos distintivos de sua forma de ver a questão, e isso não me parece lateral, é o fato de que, para ele, Machado pertence a uma geração que foi capaz de ideologicamente promover a modernização do Brasil, a saber, a Geração de 1870. Daí sua leniência com um crítico como Sílvio Romero, que ele é capaz de perceber pelas suas qualidades, embora não deixe de notar as deficiências. Embora seja um membro ilustre, Machado ainda é apreendido como membro de sua geração, como homem de seu tempo, tirando-lhe a edulcoração do gênio e do herói. Outro elemento, este essencial, parece-me vir do cotejo dos dois primeiros ensaios. Não estaria Astrojildo nos sugerindo que o problema nacional na literatura é uma das posições progressistas (burguesas) no interior do conflito com o país colonial que se desmontava? Essa hipótese, que ali não está enunciada, mas que creio podermos sentir, tem a imensa vantagem de atribuir conteúdo de classe a um problema que tende a se apresentar tão longe de sua feição classista. A nação, antes de tudo, é um projeto de classe dominante, engajada ideologicamente na derrocada da Colônia. Não cabe aqui um desenvolvimento elaborado da questão, mas creio ser essa uma das contribuições mais destacadas do livro de Astrojildo para a compreensão não apenas de Machado de Assis, como também do desenvolvimento cultural e ideológico brasileiro.
A apresentação que fiz é evidentemente incompleta: o livro é composto por muitos outros ensaios além dos que comentei, todos eles com um grau próprio de brilhantismo e limitação. Cito mais um que mereceria um texto só para si, o “Pensamento dialético e materialista”, que é um misto de levantamento brilhante de problemas (como a importância da materialidade metafórica do olhar, ou a relação de Machado com a filosofia) e incapacidade flagrante de desenvolver esses mesmos problemas. Dos textos menores, vários mereceriam menção, mas me reduzo a lembrar o leitor do texto comemorativo ao centenário do nascimento do escritor, que Astrojildo publicou na Revista Proletária, “Machado de Assis é nosso, é do povo”. Esse texto de intervenção, destinado a um público não-especializado, ou mesmo não-interessado, Astrojildo apresenta-nos um Machado de Assis que a crítica contemporânea tem insistido em apresentar como grande novidade, mas que já estava ali, na pena do comunista de 1922:
A Revista Proletária presta, aqui, o seu tributo à memória de Machado de Assis e concita o povo brasileiro a reivindicar como um patrimônio seu, inalienável, a obra, sob tantos aspectos digna de ser refletida e meditada, do mestiço glorioso que foi em si mesmo um desmentido vivo e eloquente às calúnias sobre a nossa “inferioridade racial” posta em voga – e não por acaso – pelos Oliveira Viana e outros apologistas do “arianismo” antinacional e dissolvente. Ele completa a galeria ilustre dos Luís Gama, dos Lima Barreto, dos Patrocínio, dos André Rebouças e tantos mulatos e negros que honram a literatura, a arte e o jornalismo no Brasil. Machado é nosso, é do povo (PEREIRA, 2022, p. 264).
Note-se que o texto, de 1939, tem evidente intuito de opor-se ao nazi-fascismo. Para além disso, esse texto propagandístico revela ainda uma relação pessoal com o romancista carioca, transformada quase em lenda pela crônica de Euclides da Cunha, também reproduzida no livro. Diz a crônica que Astrojildo, ainda adolescente, tendo sabido da notícia da doença de Machado, resolveu prestar-lhe uma visita, mesmo não o conhecendo ou estando em seu círculo social. O trecho final da crônica de Euclides reforça o caráter social desse pessoalidade, que o trecho acima também atesta: “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo, no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra” (CUNHA apud PEREIRA, 2022, p. 261).
Referências
PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022. 277 p.
Créditos na imagem: Reprodução: Instituto Astrojildo Pereira.
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Filipe de Freitas Gonçalves
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