Estrada do Mundo Novo: Transitoriedades na obra de Abigail de Andrade

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Em tempos de transições, a vida pede que se tenha em mente o sonho, a esperança, o discernimento. Acredito que uma das obras mais interessantes sobre o tema seja a de Abigail de Andrade (1864-1890), Estrada do Mundo Novo com Pão de Açúcar ao fundo, pintada em 1888. Em termos iconográficos e técnicos, é uma obra que apresenta aspectos comuns ao Realismo: atenção à realidade, ao popular e ao cotidiano. A paleta se volta aos tons terrosos e azuis suaves; vemos três planos, a estrada, as casas e árvores e o Pão de Açúcar. Uma pequena figura humana faz seu caminho rumo ao novo, ao desconhecido.

Tendo exibido suas obras ao público pela primeira vez em 1882 na exposição do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, por não ser aluna regular da Escola Nacional de Belas Artes, Abigail enquadrava-se dentre os artistas amadores da exposição. A distinção positiva conferida a Abigail se faria muito presente nas críticas de arte neste início de sua trajetória e, mais à frente, já em meados de 1884, Abigail tornou-se uma das poucas mulheres a quem a crítica se referia como uma verdadeira artista. A obra que analisaremos é uma de suas últimas produções conhecidas, e nela vemos alguns dos diferenciais que alçariam Abigail aos elogios da crítica, que muitas vezes se mostrava surpresa por sua condição de amadora mesmo apresentando obras de grande valor artístico.

Em fins do século XIX, o Rio de Janeiro crescia economicamente com a exportação do café, e a capital fluminense se desenvolveria também em outras áreas, como a cultural, e corrida pela modernidade moveria intensas discussões e ações. Este discurso de anunciação do Mundo Novo, no entanto, era um desenvolvimento exclusivo no que diz respeito às periferias e culturas não-europeias ou não-brancas. Em obras como Canto do Rio (1920), de Georgina de Albuquerque (1885-1962), este ideário está bem claro: duas figuras bem vestidas se encontram sentadas em um ambiente que lembra uma cafeteria a céu aberto, conversando, e tendo como cenário de fundo o mesmo Pão de Açúcar, que surge junto às outras montanhas cariocas. Embora as duas obras tenham cerca de 30 anos de diferença em suas datas de produção, é interessante tecer um paralelo: se Georgina “fala” de dentro do Mundo Novo, Abigail escolheu ir para fora dele para falar de lá. A noção do “aqui” e do “lá” trazidas pelas duas obras revelam os conflitos que o contexto da modernização trouxe no âmbito sociocultural. A atenção de Abigail está, sobretudo, na estrada de terra, nas casas simples e nos animais, trazendo também uma ideia de aridez no ambiente. O meio se sobrepõe aos dois personagens que transitam pela paisagem: o homem ao centro caminha devagar e, ao fim da linha do horizonte, uma mulher está agachada colhendo algo da terra. A presenças das figuras é um aspecto importante para a construção da narrativa, ao mesmo tempo em que, somadas ao restante da composição, guiam o olhar para o assunto principal: a caminhada rumo ao novo, onde bastou à artista incluir a silhueta do Pão de Açúcar para que pudéssemos identifica-lo como sendo a capital fluminense.

A obra, assim como várias outras pintadas pela artista nascida em Vassouras (RJ), apresenta um problema de forma objetiva, mas deixa parte da solução à cargo do espectador, o que abre espaço para outras interpretações. Apesar de a memória acerca de Abigail de Andrade ter sido impactada com os julgamentos pessoais durante sua gravidez, a figura da artista, após seu falecimento, recebeu considerações como a publicada no periódico A Estação, onde o autor a identifica como a “única pintora brasileira”; é importante que nos atentemos à excepcionalidade do talento de Abigail segundo a crítica. Na passagem para a Primeira República, o crivo da excepcionalidade não deve ser analisado em seu sentido literal, mas deixa claro o reconhecimento diferenciado por parte do campo artístico à uma artista. Chamar à reflexão sobre a realidade brasileira é uma característica ímpar no trabalho de Abigail de Andrade. O que havia por trás do Mundo Novo que começava a se desenhar? O que este poderia representar para o caminhante da obra? Por quê a outra figura humana ao fundo parece manter-se indiferente dentro da narrativa proposta pela artista? A objetividade do Realismo, quando situada no contexto brasileiro de meados da década de 1880 a 1890 possibilita à artista um olhar fora dos padrões acadêmicos e elitistas vigentes. A temporalidade da tela revela o movimento da transição em seus vários sentidos, com uma essência fácil de ser aplicada a contextos atuais e pessoais.

 

 

 


REFERÊNCIAS

A cidade e os theatros. A Estação. 31 de mar. 1882, p. 61-62. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709824/188

Chronicheta. A Estação. 20 de fev. 1891, p. 19-20. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709824/1066

High Life. A Estação. 15 de set. 1884, p.80. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709824/428

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Estrada do Mundo Novo com Pão de Açúcar ao fundo. In: Ficheiro: Abigail de Andrade, 1888, Estrada do Mundo Novo com Pão de Açúcar ao Fundo – Coleção Sérgio Sahione Fadel. S. L

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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