A universidade e seus fins

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Abri a gaveta e ali estavam: duas caixas de chá preto, as pastas com as aulas preparadas à mão, um caderno, minha caneca térmica. No armário, alguns dos meus livros. Abri as caixas de chá e vi que não tinham mofado como supus, mas que tinham vencido em novembro passado e comentei a respeito em voz alta, ao que um colega respondeu, “chá não vence”. Era algo que eu já sabia, mas precisava ouvir confirmado. Coloquei as caixas e as pastas na mochila sem pensar, como se não pudesse arriscar deixar novamente nada para trás.

Escrevi em outro lugar[1] sobre a relação entre o tempo e a universidade, mais especificamente sobre a realidade das universidades federais como aquela em que sou professora. Isto é, já tinha refletido sobre essas questões antes, mas nada me preparou para a sensação de, ao reencontrar meus colegas pela primeira vez depois de dois anos, perceber o tempo como que cortado com um bisturi; os últimos dois anos extirpados, e o passado e o presente suturados de forma grosseira. Parecia que eu tinha estado ali com eles na semana anterior até o momento em que alguém se areferia a algo que revelava o tanto de tempo transcorrido. Sentia ter de revirar algum entulho ou gaveta para encontrar o que eu mesma tinha feito e vivido nesse período.

Leciono em uma cidade na fronteira do Uruguai, onde o tempo se faz sentir de outras formas, porque a dinâmica de uma cidade de vinte e sete mil habitantes não é a mesma de Porto Alegre e de Montevidéu, ambas mais ou menos a mesma distância dali em direções opostas. Em dois anos de pandemia, como muitos colegas professores e muitos discentes, estive apartada da cidade. Cheguei a estar ali por umas horas, em março de 2020, quando a realidade orçamentária e o baixo número de ingressantes já eram um prenúncio do que a pandemia apenas agravou: naquela ocasião os cortes das verbas repassadas às universidades federais e a crise econômica já tiravam de muitos a possibilidade de cursar o ensino superior. Com o COVID-19 e o rastro de destruição que ele deixou, a maior parte daqueles discentes que iniciaram nosso curso em 2019 e aqueles que o iniciariam em 2020 simplesmente sumiu.

Dei aula por um ano e meio no modo que foi chamado de “ensino remoto emergencial”, sem saber direito o que fazia, em que pese os esforços de colegas que entendem essas coisas em tentar nos ensinar. Ensino à distância é uma coisa; ensino remoto foi outra. Eu não via os discentes, pois a fragilidade das conexões de internet estabeleceram o protocolo de que eu seria a única a manter a câmera ligada – às vezes nem isso. Falava para o vazio, implorando volta e meia para saber se o que estava comunicando chegava a algum lugar. Deixava aulas síncronas gravadas e, no final destes dois anos, falava tão rápido que, ao contrário da maioria dos alunos e alunas, alguns fazendo minhas disciplinas disseram que costumavam diminuir a velocidade do vídeo para poder me entender. Descobri, nesse primeiro mês de retorno, que uma aula que eu dava naquela modalidade em uma hora rende umas três horas e meia presencialmente.

Em março de 2020 não custou muito para eu me dar conta de que os efeitos da pandemia no Brasil seriam devastadores. Contudo, nada me preparou para a realidade de ter de enviar remessas de dinheiro mensalmente para que kits de cesta básica fossem comprados não para aqueles que já imaginava que passariam dificuldades, mas sim para meus próprios alunos, discentes de fora da cidade e que ali permaneceram mesmo com a suspensão das aulas. Compreensivelmente, com o início da pandemia, a cantina universitária teve suas atividades suspensas, mas sem que fosse traçado qualquer plano e qualquer alternativa para alimentar quem dela dependia. Pelo ineditismo da pandemia, os colegas envolvidos na gestão universitária possivelmente não tinham orientações precisas do que fazer; um ministério da educação praticamente inoperante tornou um cenário complexo em trágico.

A reitoria da universidade em que leciono foi bastante ágil em disponibilizar verba para aqueles discentes que quisessem retornar a suas casas naquela segunda quinzena de março. Não compreenderam ou levaram em conta que muitos deles procuraram na universidade uma oportunidade de deixar para trás contextos de moradia precários e lares desestruturados, por vezes até mesmo situações de abuso. Em 2020, aqueles discentes que correspondem a esse perfil ficaram sem ter para onde ir, e em casos de outras instituições, até mesmo onde morar.

Um aluno que generosamente me contou um pouco do que passou naqueles meses – cuja voz angustiada eu ouvia nas muitas plenárias em que discutimos a situação do campus – disse que finalmente entendeu o imperativo de a universidade se expandir para além de seus muros quando ele próprio foi deixado de fora da instituição, passando fome junto com o restante da população. Ele e alguns daqueles que ficaram na cidade não só se engajaram na luta por moradia e alimentação digna para si – com reivindicações à gestão da universidade e ao governo federal – mas também se envolveram na construção de um Sopão Solidário nos bairros mais carentes da cidade. Nos olhos dele, que agora vejo por cima da máscara sempre que nos encontramos, o tempo parece, sim, ter passado, e deixado suas marcas. Foram vinte e um meses lendo relatórios de gestão, planilhas orçamentárias, e participando de reuniões, segundo ele, se humilhando, “dizendo que não era justo, dentro de uma universidade pública, ter aluno passando fome”.

Esse aluno em particular e a maior parte dos discentes do campus onde leciono são pessoas a quem a expansão universitária realizada nas últimas duas décadas no Brasil vinha atender: pessoas que são as primeiras de suas famílias a pisarem dentro de um campus universitário, com a possibilidade de uma educação superior e, em tese, de ascensão social. Diferem drasticamente do meu perfil e daquele da maioria dos meus colegas quando eu mesma ingressei na graduação há mais de vinte anos, para quem a precariedade física do espaço universitário era apenas um incômodo contrastante com o conforto de nossos lares. Casas do estudante, restaurantes universitários e algumas bolsas supriam ou ao menos tentavam suprir as dificuldades daqueles que não dispunham dos mesmos privilégios. O mercado de trabalho e o momento econômico do país também eram outros.

Com a pandemia, o horizonte de entrar em um curso de graduação não foi apenas eliminado para aqueles que o vislumbravam ao terminar o ensino médio: alguns de meus alunos e alunas foram literal e abruptamente deixados do lado de fora da porta da instituição, com o curso por terminar, o estômago vazio e o peito cheio de angústia.

Conversei também com uma aluna que se formou nesse período, com a cerimônia inclusive sendo virtual. Ela, que também vem de fora do estado e de uma situação de vulnerabilidade social, era minha orientanda. No final de 2019, havia se mudado para a casa dos pais do namorado, pelas situações de moradia e de assistência estudantil se encontrarem precárias já naquele ano. O que era para ser uma providência temporária, com a pandemia acabou se esticando por três anos e segue até hoje. Confessou que achava que ia ser fácil o ensino virtual, pois já estava acostumada a estudar horas a fio na frente do computador. Porém, o isolamento social agravou o sentimento de que a pesquisa em história pode ser algo bastante solitário. Sentiu falta de debater o que estava escrevendo para seu trabalho de conclusão com os colegas, saudade de nossas reuniões, geralmente reclamando do clima da cidade, onde faz muito frio no inverno e muito calor no verão. Se por um lado, a defesa pelo Google Meet do TCC possibilitou que sua mãe em São Paulo e sua avó em Fortaleza – analfabeta – estivessem com ela, por outro sentiu-se muito só na cerimônia de colação de grau, reconfortada apenas por mensagens de celular.

Só agora consigo compreender como o ensino remoto me afetou. Por não estar presencialmente na universidade, interiorizei que precisava trabalhar o tempo todo. Acabei me voluntariando para compor muito mais comissões e grupos de trabalho do que em cinco anos de docência em uma universidade federal, mantive dois grupos de estudos com discentes e mudei meus interesses de pesquisa. O resultado foi que não me recordo quando começou o segundo semestre de 2021; minha rotina era trabalhar, me exercitar e desempenhar tarefas domésticas. Precisava compensar de alguma forma tudo o que sentia que não estava fazendo estando ausente de meu lugar de trabalho, em não estar fisicamente em sala de aula, em não ver com meus próprios olhos as dificuldades dos alunos, dentro e fora dela. Sobretudo, também sentia que precisava compensar pelo fato de estar viva em meio a uma pandemia que matou mais de meio milhão de pessoas em meu país, sem contar aquelas que sucumbiram a outros de seus efeitos: a sobrecarga do sistema de saúde, os desgastes desse período, o abandono, a violência e a fome.

Além disso, jamais me senti tão profissionalmente despreparada. A expansão do sistema universitário no Brasil e do acesso ao ensino superior foi algo inequivocamente positivo, não apenas para aqueles discentes que dele se beneficiaram e para os docentes e técnicos administrativos que ela empregou. No entanto, as universidades criadas neste processo padecem há anos com cortes de verbas antes mesmo de sua implementação ter se concretizado. Falo de infra-estrutura, mas também de algo que é fundamental, em se considerando o perfil dos discentes que essas instituições contemplam e das comunidades que as receberam: políticas de assistência e permanência estudantil.

Falo aqui em primeiro lugar de questões materiais como casas de estudante, cantinas e restaurantes universitários, bolsas e outras formas de auxílio financeiro, porém devo também salientar que são necessários aportes de outra ordem, auxílio psicológico sendo o principal deles. Muitas das universidades criadas no âmbito do REUNI estão em cidades onde os discentes – muitas vezes de fora até mesmo de seus estados de origem – têm de contar com serviços públicos precarizados, o que inclui o acesso a médicos, psicólogos e psiquiatras. Nossos colegas técnicos administrativos em educação e aqueles docentes em cargos de gestão acabam muitas vezes sobrecarregados com situações que nem sempre seriam inclusive legalmente permitidos a tratar.

No entanto, o que também tem me preocupado em demasia é a defasagem da formação docente neste âmbito. Pressupõe-se que bastam aos professores universitários ter os devidos títulos acadêmicos que reflitam sua experiência em suas respectivas áreas e que saibam minimamente transmitir esse conhecimento de forma competente aos discentes. Jamais somos orientados, quando estamos na pós-graduação – que é quando se formam potenciais docentes universitários – a lidar com a realidade que encontramos nas universidades brasileiras: discentes que são homens, mulheres e pessoas não binárias de idades variadas, oriundos muitas vezes de realidades sociais completamente distintas, de estados e cidades muito distantes, e com diferentes históricos de formação.

O que quero dizer é que o proverbial buraco é sempre mais embaixo: o âmbito acadêmico via de regra está voltado estritamente para a produção de conhecimento, ignorando muitas vezes que ele só pode ser produzido se atrelado à sua comunicação a outrem e às formas com que os afetam. Muitos reclamam que textos acadêmicos são ilegíveis. Pois para mim, as relações, as bagagens, os potenciais conflitos e as diferentes necessidades dos discentes que encontro é que muitas vezes o são. Não deveríamos necessitar tanto de assistentes sociais para nos traduzir as dificuldades daqueles cujas vidas iremos afetar, às vezes de forma indelével. A continuidade da trajetória acadêmica dessas pessoas, do quanto elas realmente irão desfrutar do ambiente universitário, depende disso.

Atribuo tudo isso ao caráter ainda amador com que se trata isso que chamamos de vida acadêmica de forma geral. Amador na acepção original da palavra, do senso comum de que as pessoas estão neste âmbito sobretudo por amor ao conhecimento, aquilo que chamamos de vocação. Isso reflete uma ideia de produção de conhecimento que depende de privilégios materiais e de gênero: não sou a única a duvidar que a maior parte do pensamento ocidental teria sido produzido se seus autores não tivessem vidas materiais confortáveis e principalmente mulheres desempoeirando suas bibliotecas, lavando suas roupas e cozinhando suas refeições.

A abertura do mundo universitário para outros agentes, de identidade sexuais e de gênero distintas, e principalmente de condições materiais outras, torna urgente que o trabalho acadêmico seja considerado de fato trabalho: ou seja, que bolsas de iniciação científica sejam mais do que apenas “mesadas” de luxo para estudantes de classe média sustentados pelos pais; que vínculos de bolsistas de pós-graduação, pós-doutorado e de professores substitutos sejam tratados com a devida seriedade, remuneração e regulamentação laboral; que nós, professores universitários, repensemos nossas próprias formações, em termos estruturais, principalmente nesse momento de crise, não apenas econômica e sanitária, mas também das instituições como um todo e da própria ideia de ciência.

Minha mãe, esse final de semana, separou uma última caixa de coisas que me pertenciam e ainda estavam em sua casa para eu dar uma olhada: nela encontrei alguns textos encadernados tanto da graduação quanto do mestrado, entre livros inteiros e monografias de conclusão de disciplinas. Como os chás na minha gaveta na universidade, os textos também não estavam mofados ou mesmo apagados, como acontece com muitas fotocópias. Alguns guardei, pois se encontram inacessíveis, mas a maioria joguei fora, por obsoletos frente aos PDFs, mas não só. A maioria dos textos que li na graduação são obsoletos porque as preocupações do tempo presente demandam outros textos, de outros autores e autoras. Não necessariamente mais simples ou curtos, mas sim que reflitam a realidade de quem os lê, talvez por isso até mesmo mais difíceis, pois mais desestruturantes daquilo que o senso comum ainda reproduz sobre o que são história ou ciência. Quando passo textos que chamo de datados, como as conferências de Edward Carr ou a apologia de Marc Bloch, explico por que os escolhi e por que ainda são relevantes, e não tratando-os como se sua importância fosse uma evidência em si mesma, algo que eles próprios nos ensinam a questionar.

Na época em que li as fotocópias que encontrei na casa dos meus pais, a universidade e as perspectivas de quem estava nela eram outras. No entanto, algumas coisas mesmo naquele período já deixavam evidentes o que viria pela frente: por conta do maior número de ingressantes nos programas de pós-graduação, as salas de aula do prédio em que estudei começavam a ficar pequenas, já que tinham sido projetadas em uma época em que elas abrigavam no máximo uns dez alunos. Não demorou muito para que o maior número de bolsas, de egressos nos cursos de graduação e principalmente as ações afirmativas deixassem evidente o quão mofadas estavam as estruturas que sustentavam a universidade tal como estabelecida no Brasil ao longo do último século. Hoje, mesmo esse modelo desgastado encontra-se ameaçado, e as transformações que evidenciaram esse desgaste, tão necessárias, se encontram em franco retrocesso, com o desfinanciamento das universidades e da pesquisa científica, o fim das políticas de assistência social, o esvaziamento das salas de aula, a reforma do ensino médio e os ataques à Lei de Cotas.

Ao fim e ao cabo, talvez as transformações que penso serem necessárias na formação de docentes universitários acabem por não acontecer, não porque haja resistência em alterar esse ambiente, mas porque talvez ele deixe de existir, ao menos na forma em que conhecemos. Desde que entrei no sistema público federal, no final de 2015, aprendi a reconhecer aqueles alunos que deixarão minha sala em silêncio para não mais voltar e a perceber os sinais daqueles que mais tarde me enviarão emails dizendo que não é nada pessoal, mas terão de desistir. Temo, francamente, me tornar algo com uma personagem em uma peça a la Beckett sobre uma professora sem alunos.

Por um lado me pergunto se o que parece ser falta de formação docente muitas vezes não seja só relutância em alguns de nós professores em nos deixarmos ensinar ao assumirmos esse papel, mesmo que até isso tenha seus limites, e que necessitamos, sim, repensar nosso papel. Por outro, entendo que a realidade social do país parece tão em contradição com o que se espera das universidades – até mesmo em termos de carreira e perspectivas de emprego – que não parece haver espaço para se atender a tantas demandas. Uma colega e amiga, em um evento virtual em 2020, disse que estávamos vivendo muitos fins, entre as mudanças climáticas e a crise da democracia liberal, as transformações nas relações de trabalho e na vida tal como a conhecíamos antes da pandemia. Somo a isso o provável fim das instituições tradicionais de ensino. Por enquanto, a única coisa que espero é que as pessoas sigam entrando na minha sala de aula, e que a universidade, nesses fins tão dolorosos, deixe de ser esse ambiente por vezes tão intimidador, tão hostil, quando na verdade deveria ser apenas mais um espaço de construção de conhecimento. Ou seja, mais um dos lugares que nos permitem compreender o mundo, dar sentido a ele, em meio a tanto caos.

 

 

 


Notas:

[1] SASSO, Renata Dal. A universidade e os tempos. Medium. 15 de maio de 2021. Disponível em: https://rntdlsss.medium.com/a-universidade-e-os-tempos-ccb95e587d1d

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Sindicato Adurn. Por que querem o fim da universidade pública? Publicado em 30 de março de 2022.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Renata Dal Sasso

Renata Dal Sasso é professora de Teoria da História no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Pampa, Campus Jaguarão, Rio Grande do Sul. Estuda as relações entre história e prosa de ficção, e é integrante da HuMANAS - Pesquisadoras em Rede.

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