A representação escrita e imagética como meio de revolução no modernismo argentino

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O trabalho de Gorelik circunda por elementos de análise diversos dos habituais no campo da atuação profissional da arquitetura e urbanismo, valendo-se de significados aplicados na obra literária do poeta Borges, das fotografias do Cópolla, além dos textos musicais do tango e outros objetos de estudo valiosos. De tal modo, nessa explanação se estabelecerá algumas relações entre a produção literária e a representação fotográfica da cidade dentro do período abarcado nos textos.

De modo geral, é apreensível notar ao longo do trabalho de Gorelik a condição de importância dada ao fenômeno da identidade para a cidade de Buenos Aires e a produção do crescimento habitacional dentro de uma estrutura traçada pelo poder público dava à cidade a aparente integração entre si e com a cidade existente.

Desse modo, entre 1910 e 1920, a parte marginal geográfica e social da cidade tornou-se um centro político e cultural, com a cultura popular avançando sobre o centro, desafiando a resistência da cultura oficial, atraindo os interesses políticos, culturais e até urbanísticas.

É nesse ínterim que a produção literária age como articular dentro da agenda política das cidades, sejam pela escrita artística de denúncia social, seja dentro dos jornais e suas manchetes. Diante dos acontecimentos desse período, a campanha de reformismo do governo abre um destaque para as discussões mais vibrantes.

A imprensa da cidade de Buenos Aires ganha um papel de destaque na relação com a cidade, ao destacar os bairros novos como um potencial de “novo centro”, e dentro dessa publicidade política, o tema urbanístico sobressalta dentro das prioridades e demandas. Desse modo, a imprensa atuou como órgão de denúncia fomentista, ao dar visibilidade para os conflitos internos à vizinhança e reinvindicações populares. Entretanto, cabe ressaltar que a cidade desempenhou um papel revelador ao causar efeitos na maneira de se produzir e orientar as notícias dentro da imprensa, quando os jornais passaram a ser reformulados para acompanhar o ritmo urbano.

Gorelik afirma que para alcançar a conversão definitiva em “bairro” era necessária uma produção literária que entregasse um mito, justamente pela busca de identidade, zelando para não condenar o produto na modernização à obsessão pela busca de uma identidade e tradição. É nesse debate de conflitos que o tango e a literatura da margem surgem como novos modelos de produtos culturais, como reação às intervenções reformistas.

O contínuo paradoxo das demandas de progresso (por parte de uma cidade de quadrícula) e de tradição (em busca de seu símbolo histórico) por vezes ocasionará discussões por não serem coincidentes em alguns pontos. A imprensa é reconhecida como um dos poucos âmbitos em que essas demandas paradoxais podem coincidir e atuarem como ativadoras uma da outra, concomitantemente, sabendo publicizar o progressismo como cordial e a tradição como necessidade; e isso acontece porque o novo jornalismo e a nova literatura estão nas mãos de autores que vieram do subúrbio.

A colaboração entre o cotidiano no bairro e a imprensa como dupla nessa necessidade de destaque à capacidade cultural constituiu um espaço para falas de extrema relevância, pois vão contribuir para a formação de um repertório de material gráfico e escrito que descreverá grande parte do processo da busca pela identidade que as pessoas do bairro e de Buenos Aires arduamente perseguiam.

A boemia tangueira tomará proporções que ocuparão outros gêneros textuais dentro da linguística, através do poeta Borges que introduziu uma mudança radical nesse cenário, mantendo o bairro no lugar central do texto, ao propor circuitos caminháveis urbanos que trafeguem por vários bairros argentinos, na síntese entre a modernidade e a tradição, entre cidade e pampa, sendo um autor polêmico ao identificar o bairro como lugar de grande intimidade, permite a sensação de eternidade. Um olhar ambíguo considerando que Borges afirmava que o tango deveria ser mantido na clandestinidade.

É simbólico que a fotografia de Horacio Cóppola caminhasse com Borges nesse momento, visto que retratava as imagens inspiradoras para Borges a ponto do poeta incluí-las nas suas obras, inclusive elaborar um trabalho inteiro com o registro de um percurso fotográfico sobre a cidade.

A proposta figurativa das fotografias de Cóppola somada às palavras de Borges propuseram uma Buenos Aires mais próxima do real, sem uma mitificação do que se espera, mas do que efetivamente é, ao ter em vista que o próprio bairro tem em si os elementos de objeto literário, sem a necessidade de criar um cenário arquetípico de onde as histórias deveriam acontecer.

Essa operatividade histórica de Borges propunha se vê plenamente reafirmada pelas fotografias de Cóppola, não pelo fato documental apenas, mas por compartilharem o mesmo olhar, de perceber o bairro como lugar de tradição e novidade, no tempo presente. O subúrbio era resistência à modernização, mas também não era repetição da cidade tradicional. Assim, Borges não registrava em sua literatura imagens congeladas da cidade, mas de uma cidade que se desloca.

A arquitetura a ser registrada por essa vanguarda artística e literária buscava construir um aporte de olhar-manifesto sobre a cidade, recortando seus fragmentos ideais, de modo que Cóppola registrava as casas simples suburbanas, que em sua simplicidade carregavam motivos da tradição do colonial pobre criollo. Nesse momento, a ausência de um passado histórico arquitetônico argentino e a busca pela identidade do passado se enxerga numa vanguarda centro-europeia, oferecendo uma dignidade à pobreza da arquitetura história de Buenos Aires.

Diante do exposto, é relevante reafirmar o poder simbólico que a literatura e a fotografia possuem. A maneira como a representação escrita e a imagética podem transcender ao real e como podem atuar como meios de revolução, diante de uma causa. Os registros históricos nesse formato são capazes de desvendar dizeres que nem na época eram ditos e permite uma reflexão sobre o modo que produzimos a cidade, o espaço urbano e a forma como os encaramos e convivemos.

O caráter de ser um carregador de significado faz o texto (partindo do princípio que, seja escrito ou fotografado, tudo subtrai um texto) adquirir os poderes de alcançar indivíduos de maneiras que a comunicação verbal convencional por vezes não dá conta, e construir um percurso lógico dentro das ciências sociais requer abdicar de determinadas metodologias em busca de outras que possam disseminar mais dados do que se espera.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Interior do Teatro Oficina de acordo com o projeto de Lina Bo Bardi e Edson Elito Foto: Tuca Vieira

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paolla Clayr De Arruda Silveira

Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Mestre em Cognição e Linguagem pela UENF e MBA em Administração e Gerência de Cidades, pesquisadora da discussão dos sentidos e significados dentro da Arquitetura, com viés na semiótica e análise do discurso.

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