Por autoras negras nos programas, nas disciplinas e nas aulas

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Episódio de hoje: O que aprendi com Maria Firmina dos Reis

Precisamos conversar: Entenda, o racismo nos destrói de maneira muito particular, ele nos convence de nossa inferioridade. Uma aluna negra tende a não acreditar prontamente em suas capacidades intelectuais, não fomos política e socialmente educadas para isso, e se você quer que a sua aula seja de fato transformadora para ela, você precisa deixá-la reconhecer-se na bibliografia. Não se trata de uma acusação aos autores europeus, pelo contrário, não vejo problema nenhum em permanecer citando muito deles, mas também não se trata de um presente, ou uma doação. Representatividade Importa! A nossa coluna trabalha o enfrentamento de crimes e preconceitos e a utilização das artes no Ensino de História, por isso reservamos alguns “Episódios” à literatas negras. Quem sabe uma delas possa estar na sua próxima aula? E se não for o caso, quem sabe você se disponha a procurar e a encontrar uma autora preta essencial a sua bibliografia?! Existem várias… S2

O feminino no teatro de Gonçalves Dias, este foi o tema da minha pesquisa no mestrado, estudei especificamente duas obras dramáticas do autor: Beatriz Cenci e Leonor de Mendonça. Ao iniciar minha pesquisa de doutorado estava decidida a permanecer estudando o Romantismo e o teatro do século XIX, no entanto, meu orientador me sugeriu a leitura de um romance de Maria Firmina dos Reis. Ele me disse que uma vez lido, poderia decidir sobre a sua permanência ou não na pesquisa, e no mais, que mal haveria em ler algo novo? Confesso a vocês, depois de conhecer a obra de Maria Firmina nuca mais imaginei a minha pesquisa sem aquele texto. Com a leitura das primeiras páginas já havia decidido que aquele romance seria central em minha Tese. Maria Firmina dos Reis é uma autora maranhense do Romantismo brasileiro, escreve no mesmo século de José de Alencar, Machado de Assis e Castro Alves. Suas obras também são repletas de histórias de amor e críticas à moralidade oitocentista, seus enredos e poesias são regados a melancolia e coragem. Mas eu lhe pergunto, ainda que a resposta já esteja na ponta da língua, porque é que Maria Firmina dos Reis não cai no ENEM? Porque é que não a estudamos nas aulas de literatura? Porque ela não é um exemplo frequente no Ensino de História?

Maria Firmina dos Reis era preta demais, mulher demais e abolicionista demais para se tornar famosa no século XIX. Eu sei que grande parte dos escritores daquele século no Brasil também não tinham a pele branca. Sei inclusive que os escritores Românticos, costumeiramente chamados de idealistas, eram, na verdade, homens ativos na cena política e social do país. Estavam nos jornais, nas guerras, nas câmaras e na educação, mas não podemos desconsiderar o fato de que o tempo se encarregou de dar a Alencar e a Machado o reconhecimento merecido, enquanto isso, a obra de Maria Firmina dos Reis permanece ainda escondida. Assim como parte destes autores, ela também publicou em jornais e foi professora, mas eu a conheci apenas na pós-graduação. Talvez esta temporalidade atual ainda considere a literatura de Maria Firmina dos Reis preta e feminina demais para a maior parte das aulas e bibliografias, não nos esqueçamos que muitas escritoras pretas são silenciadas ainda no século XXI.

Para além da pele preta, a escritora Romântica maranhense escreve sobre personagens negras também. O romance que me foi recomendado como leitura para a Tese chama-se Úrsula, e, trata da experiência de diferentes homens e mulheres, sendo possível destacar duas questões que para mim tornaram-se essenciais[1]. A primeira coisa que aprendi com o romance de Maria Firmina dos Reis é que as personagens pretas e escravizadas podem sentir e falar. É claro que encontramos outras obras oitocentistas com determinada centralidade abolicionista, mas nas peças que estudava até aquele momento as pessoas escravizadas não tinham nome e nem voz. Úrsula me abriu a porta para outros romances e problemas próprios a escravidão daquele século. Entendi que estas mulheres inventadas pela literatura do século XIX ultrapassam o casamento e o conceito de traição, são corpos, presença e cor.

A segunda reflexão que Úrsula me proporcionou veio da presença de sentimentos essenciais à luta e à resistência: a amizade, o perdão e o amor. O amor representa a doação, a capacidade de se colocar em outro lugar e de se dispor a conhecer o outro; a amizade surge como um sentimento recíproco, a proximidade necessária para o cuidado e a retribuição. E o perdão, por sua vez, nos remete ao arrependimento transformador. E como não seria? Maria Firmina dos Reis nos coloca diante da possibilidade de amar e de voltar atrás, de nos tornarmos pessoas melhores a cada experiência de melancolia e de dor. Já havia lido outras obras e autores incríveis do século XIX, mas essa face do Romantismo eu ainda não conhecia.

Cada personagem criada por Maria Firmina dos Reis é repleta de profundidade e de sensibilidade. Aprendi um pouco mais sobre a sentimentalidade, sobre a escravidão, sobre o feminino e sobre a própria literatura oitocentista. Não deixaria de notar que parte das dores que encontrei em Maria Firmina dos Reis permanece nos depoimentos de mulheres negras do século XXI… Por um pouco mais de Maria Firmina dos Reis não apenas nas bibliografias, mas também em nossas vidas.

 

 

 


NOTAS

[1] REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Mulheres: Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Literafro- Portal de literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/322-maria-firmina-dos-reis

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Ana Paula Silva Santana

Doutoranda em história no programa de pós graduação em história da Universidade Federal de Outro Preto (PPGHIS-UFOP). Mestre pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES. Graduada em história licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto. Graduada em História Bacharelado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade (NEHM). Integrante do Grupo de História Ética e Política (GHEP). Editora Colaboradora da Revista HHMagazine- Humanidades em Rede. Pesquisadora vinculada à linha de pesquisa Poder, Espaço e Sociedade do PPGHIS -UFOP. Interesses:Teoria da História, Gênero, Romantismo Brasileiro, História do Brasil Império

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