“Amigo é coisa pra se guardar” e escolher amar todos os dias

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Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam “não”
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
(Milton Nascimento- Canção da América)

Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento. Somos com frequência ensinados que não temos controle sobre nossos “sentimentos”. Contudo, a maioria de nós aceita que escolhemos nossas ações, que a intenção e o desejo influenciam o que fazemos.
(Bell Hooks- Tudo Sobre o Amor)

 

Ana Paula Santana
Dedico esse texto a Tainara e a Lais, as mais antigas e mais lindas amigas que a vida me deu

Franciele Vidal
Dedico esse texto aos meus queridos amigos de infância Dara, Thalita e Arthur.

Felipe Cabral
Dedico a todos os amigos que tenho e já tive, especialmente para a Kaira, minha amiga e meu amor.

 

Num dia desses paramos para conversar sobre amor e sobre amizade, depois da aula de terça-feira à noite. Havia uma lua no céu, a cerveja estava gelada e as palavras saiam fácil…  Foi então que percebemos que aprendemos e reaprendemos a amar depois de ler bell hooks. Em seu livro Tudo sobre o Amor, bell hooks nos ensinou uma premissa sobre o amor que mudou completamente a nossas vidas e a forma como amamos e como aceitamos ser amados: Você escolhe o que ama. Entender que você escolhe os seus amores e que você foi escolhido por quem te ama, muda tudo. De repente alguém que te agride e violenta provavelmente não te ama, não te escolheu amar. Você não precisa suportar a violência por amor, simplesmente porque não existe amor ali. Você não precisa aquentar um pouco mais. Você pode simplesmente escolher outros amores que sejam recíprocos. Você escolhe seus amores românticos, seus amores divinos e seus amores de amigo. Terminamos a conversa assim, falando da bell hooks e dos amigos que escolhemos e que nos escolheram amar no decorrer da vida. Foi leve, como deve ser.

Foi inevitável lembrar e cantar juntos essa que talvez seja a música escrita para um amigo, mais famosa do Brasil, guardada a sete chaves. Você conhece essa história de amor de amigo? Permitam-nos contar um pouquinho dela aqui.

De acordo com a publicação de Renato Arruda no site Letras, a música Canção da América é fruto de uma bela e sincera amizade entre Milton Nascimento e o músico sul-africano Ricky Fataar. Arruda nos fala que Milton estava em Hollywood para a gravação de seu álbum Journey To Dawn. E logo Ricky Fataar que estava no mesmo local, perguntou para o produtor de Milton, se ele poderia encontrar com o artista, pois gostaria muito de conhecê-lo.

A produção permitiu esse encontro, e Ricky Fataar começou a dialogar com Milton a respeito da amizade. Fataar disse a Milton que algo que o incomodava bastante em Los Angeles era a solidão, as pessoas não paravam para conversar, não tinham contato físico, faltava um ombro amigo. Desse modo, Milton se sentiu representado com o que Fataar dissera, ele disse a Fataar que já havia passado algum tempo em Los Angeles, e a falta de amizade era algo que também o incomodava.

A partir desse diálogo, uma amizade surgiu. Durante o tempo em que Milton ficou na cidade, eles passeavam juntos, se divertiam, e embora por pouco tempo, construíram muitas memórias. Ricky Fataar, de acordo com Renato Arruda, teria apresentado a Milton uma linda canção sobre amizade, todavia, Milton logo precisou retornar ao Brasil. Passado algum tempo, Milton Nascimento retornou a Los Angeles, e procurou por seu amigo Ricky Fataar, contudo, não o encontrou. Segundo Renato Arruda, Milton dissera que ninguém sabia onde Fataar estava, o que fez com que Milton, mesmo rodeado de pessoas, se sentisse sozinho. Afinal de contas, aquela amizade que ele tinha com Fataar era única e especial.

Assim sendo, Renato Arruda conta que Milton escreveu uma canção sobre amizade dentro do seu quarto, a qual foi escrita em inglês, e posteriormente traduzida por Fernando Brant, nascia então a Canção da América, um verdadeiro hino sobre o amor philia. Podemos observar o amor traduzido nos versos da canção, a fraternidade, a escolha e um lindo conselho: devemos guardar nossos amigos do lado esquerdo do peito, dentro do coração. Milton diz que:“mas quem ficou, no pensamento voou. Com seu canto que o outro lembrou. E quem voou, no pensamento ficou, com a lembrança que o outro cantou”.Logo, podemos perceber uma referência ao seu amigo Fataar, Milton estava dizendo que mesmo com a distância nenhum dos dois se esqueceria do laço de amizade que construíram. Que escolheram construir juntos.

Ademais, Milton também afirma: “Mesmo que o tempo e a distância digam “não”, mesmo esquecendo a canção, o que importa é ouvir, a voz que vem do coração”. A partir desses versos, vemos que para Milton o tempo e a distância não importam, a amizade se sobressai, o sentimento sempre fala mais alto, e é essa voz que Milton nos convida a ouvir, a voz do coração. Milton consegue sintetizar aquele sentimento de amizade, nostalgia, saudade e naturalidade, ao qual sentimos quando reencontrarmos com grandes amigos do passado. O amor philia (fraternal, amigo) é assim, resiste ao tempo e às distâncias.

Como vimos, para bell hooks o amor está intimamente ligado a escolha, o que vai de encontro ao amor philia, pois, nós escolhemos nossos amigos, o amor se torna então uma ação. Além disso, bell hooks afirma que o amor e a possibilidade de amar vêm se perdendo, de acordo com a autora não há muitos debates sobre o amor em nossa cultura hoje. Diante disso, nos deparamos novamente com uma escolha, a escolha de amar. No fundo, essa conversa sobre o amor e a amizade foi de grande valia, pois concluímos que o amor ainda é o melhor remédio. Ah e os nossos amigos? “Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”.

 

 

 


REFERENCIAS

ARRUDA, R. Canção da América: a história da música que virou hino da amizade. Letras.mus.br, 25 jun. 2021. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/blog/cancao-da-america-historia/>. Acesso em: 2 ago. 2022

Hooks, bell. Tudo sobre o amor: Novas Perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Milton Nascimento entre amigos na década de 1990. Disponível em: https://www.jobim.org/milton/handle/2010.5/31311

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Ana Paula Silva Santana

Doutoranda em história no programa de pós graduação em história da Universidade Federal de Outro Preto (PPGHIS-UFOP). Mestre pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES. Graduada em história licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto. Graduada em História Bacharelado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade (NEHM). Integrante do Grupo de História Ética e Política (GHEP). Editora Colaboradora da Revista HHMagazine- Humanidades em Rede. Pesquisadora vinculada à linha de pesquisa Poder, Espaço e Sociedade do PPGHIS -UFOP. Interesses:Teoria da História, Gênero, Romantismo Brasileiro, História do Brasil Império

SOBRE A AUTORA

Franciele Teixeira Vidal

Mestranda em história no programa de pós graduação em história da Universidade Federal de Ouro Preto (PPGHIS-UFOP). Bolsista CAPES. Graduada em história pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Pesquisadora vinculada à linha de pesquisa Poder, Espaço e Sociedade do PPGHIS -UFOP. Interesses: Teoria da História, Historiografia e Gênero.

SOBRE O AUTOR

Felipe Cabral Pereira

Cursando Licenciatura em História pela UEMG Carangola. Foi monitora da disciplina de História Antiga. Foi bolsista de iniciação científica durante do período de maio a dezembro de 2021, acerca do projeto "Historiadores e seus fins: crise do futuro e diagnósticos do contemporâneo". Possui interesse na área de Teoria da História e Historiografia Brasileira.

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