A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: percepções (4/5)

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O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é um espetáculo com tantos atrativos que tende a gerar as mais diversas percepções. Cada componente da escola pode se identificar com uma peculiaridade da apresentação e é ela que vai impactar na sua avaliação sobre o desfile. Para alguns a atenção recai na parte visual. Para outros, no modo como a narrativa do enredo é desenvolvida. Um samba com letra e melodia arrebatadora parece superar qualquer percalço do desfile e indicar que a escola é a mais indicada para vencer o campeonato, ou, ao menos, receber a aclamação de “É campeã!” por parte do público.

Para quem desfila, avançar a cada setor do Sambódromo é uma experiência emocionante e arrebatadora. “Vou no toque do tambor… ô ô/Deixo o samba me levar… Saravá!” (MARIA BETHÂNIA: A MENINA DOS OLHOS DE OYÁ, 2016) embalou a passagem de 2016. Pisar no solo sagrado do samba e integrar essa espécie de ópera popular é se sentir um pouco artista. É emocionante vislumbrar a reação do público, alguns em sintonia com o espetáculo, outros nem tanto.

No Sambódromo cada espectador aprecia o desfile a partir de um ângulo de visão. Os olhos e a atenção oscilam entre o que está próximo e o que está distante, entre o conjunto da escola e os pequenos detalhes. Tanto das fantasias e alegorias, quanto da intensa movimentação de diretores e equipes de apoio. A reação do público também direciona a atenção.

Assistir ao desfile nas frisas, ao nível do chão, permite olhar nos olhos dos componentes das alas, compartilhando emoções e vendo as minúcias das fantasias e alegorias. Já do alto da arquibancada, o conjunto se impõe. Fica mais perceptível a coesão plástica da escola e os acertos ou desacertos da harmonia. Bem como a criação dos famigerados “buracos”.

Os setores mais no início do Sambódromo propiciam que se acompanhe o “esquenta” da bateria, momento sempre impactante. Porém a tensão gerada pelo acompanhamento da entrada das gigantescas alegorias pode desviar a atenção do que está bem à frente do olhar. Assistir ao desfile nos últimos metros da pista permite verificar o final morno ou apoteótico da apresentação, bem como acompanhar se o tempo máximo será respeitado. A cada ano o tempo máximo de apresentação diminui, orbitando por volta dos 70 minutos. De forma incrível, em questão de minutos, muitas escolas conseguem retirar a bateria do recuo e encerrar o desfile.

Curiosamente, algo bem mais adiante – ou atrás do ponto em que se está – pode despertar a atenção. Em rápidos momentos, ao deslocar o olhar, o desfile aparentemente já mudou. Com isso perde-se parte do espetáculo. Ao conversar sobre o que foi visto, ler reportagens a respeito, assistir as gravações ou observar as fotografias, pode parecer que se viu um outro desfile.

Confrontar percepções sobre a apresentação da escola faz parte do fascínio acerca dos desfiles. As diferentes narrativas são complementares, pois partem de observadores atentos a variados aspectos. Após essa intensa experiência presencial, resta o contato com o desfile por meio das gravações audiovisuais e das fotografias. Ambas trabalham com a edição de uma realidade, com a escolha entre o que mostrar e o que não mostrar. Nas fotografias, mais especificamente, é possível perceber o desejo de recriação da narrativa visual criada pelo carnavalesco.

Em se tratando de registros sobre os desfiles das escolas de samba, as narrativas fotográficas realizadas por profissionais da área de comunicação constituem interessante documentação. Ao paralisar o frenético tempo da apresentação e silenciar a música que a caracteriza, a fotografia transpõe a composição visual de cada escola para um ambiente que propicia silenciosa contemplação. Com isso pode-se redescobrir as narrativas visuais de cada desfile.

As capturas fotográficas não pretendem somente registrar o que se observou. As fotografias criam – por meio da perpetuação de um instante – um testemunho particular do seu autor. Para Ana Maria Mauad a fotografia articula na sua criação dois segmentos: a expressão e o conteúdo. “O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais como enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor etc. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a fotografia” (MAUAD, 1996, p. 82). Apesar da possibilidade dessa separação para fins de análise, a apreensão das imagens se dá considerando o todo.

Nos desfiles no Sambódromo acontece algo peculiar, talvez até contraditório. Enquanto o público, incluindo os temidos jurados, assistem as escolas lateralmente, grande parte do registro audiovisual e fotográfico se dá em uma visão frontal. Esse ângulo frontal, presente na farta documentação iconográfica gerada a cada ano, integra a historiografia sobre a festa e fomenta a memória e o imaginário.

O fotógrafo Fernando Grilli, autor das imagens presentes nesta série de textos, cria registros a partir de uma torre localizada na Passarela do Samba. Conhecida como Torre de TV, ela recebe exclusivamente profissionais da área de comunicação. A cada apresentação, cerca de uma dezena de pessoas tem acesso a esse privilegiado mirante.

Tendo como base o conjunto cênico criado pelo carnavalesco a partir de um tema, os fotógrafos definem a expressão e o conteúdo que pretendem registrar em cada foto. Grilli afirma que “a plástica das imagens que a Marquês de Sapucaí entrega são sublimes e únicas no mundo. Vejo em cada integrante das Agremiações (em cada um deles), nos seus atos e movimentos; um filme, uma expressão teatral, uma poesia” (EXPOFOTOCARNAVAL, s.d.). O resultado que Fernando Grilli obtém nas suas fotografias concilia, em diferentes doses, a intenção plástica de cada enredo, as características arquitetônicas do Sambódromo, e o arranjo expressivo pretendido pelo fotógrafo.

Em 2016 Fernando Grilli registrou o Mestre-Sala e a Porta-Bandeira em um ângulo que destaca ainda mais a icônica fantasia de Iaô, um dos pontos altos do desfile mangueirense. Na imagem o casal parece flutuar solitário na passarela, algo que contrasta com a visão do público em geral, exposto a um excesso de atrações visuais.

A imagem capturada por Grilli em 2017 – apresentada em A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: Desfiles (3/4) – valoriza as linhas arquitetônicas do Sambódromo e o sempre mágico momento do amanhecer. Nela está mais uma imagem marcante de Leandro Vieira: o elemento cenográfico Santo e Orixá, com o Cristo Oxalá dentre a ala que representa a Lavagem do Bonfim.

Em 2018 a Mangueira celebrou a grande brincadeira do carnaval, apresentando esculturas em alegorias e adereços de diferentes tamanhos. A imagem de Grilli – presente no primeiro texto desta coluna sobre a Estação Primeira de Mangueiradestaca a massa compacta dos foliões que brincam o carnaval em fantasias em tons pastéis.

O registro de 2019 – veja no próximo texto desta coluna – acentua a cromia intensa da escola e destaca as sombras ao redor do carro abre-alas. A intensidade das cores, mais próxima da expressividade das fotografias do que da realidade visualizada na passarela, reafirma a cocriação exercida pelo fotógrafo em cada imagem.

A fotografia do desfile de 2020 – apresentada em A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: Narrativas (2/5) – destaca versões de Jesus. O foco privilegia a imagem barroca do Menino Jesus em contraste com a mais marcante alegoria dos desfiles de 2020, denominada O calvário. A apresentação de um Jesus jovem, negro e de cabelo descolorido materializou os versos do samba-enredo: “Mas será que todo o povo entendeu o meu recado?/Porque de novo cravejaram o meu corpo/Os profetas da intolerância/Sem saber que a esperança/Brilha mais que a escuridão” (A VERDADE VOS FARÁ LIVRE, 2020).

Na procura de cenas que serão perpetuadas, fotógrafos elegem imagens carnavalescas que irão gerar histórias e despertar memórias sobre as velozes noites de carnaval. Dos fartos acervos, são realizadas seleções, que se abrem a várias possibilidades de interpretações das narrativas carnavalescas apresentadas no Sambódromo a cada ciclo anual. Ciclo ineditamente quebrado pela pandemia do Coronavírus.

 

 

 


Referências

A VERDADE VOS FARÁ LIVRE. Compositores: Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo. In: Sambas de Enredo 2020. Universal Music, 2020.

EXPOFOTOCARNAVAL: UMA DESCONSTRUÇÃO DE SER E TEMPO DO CARNAVAL CARIOCA ATRAVÉS DA FOTOGRAFIA, homepage. s.d. Disponível em: https://expofotocarnaval.gruporjbproducoes.com.br/. Acesso em: 30 maio 2021.

MARIA BETHÂNIA: A MENINA DOS OLHOS DE OYÁ. Compositores: Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão. In: Sambas de Enredo 2016. Universal Music, 2016.

MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história – interfaces. Tempo, 1996: pp. 73-98.

 

 

 


Créditos na imagem: Fernando Grilli. Desfile da Mangueira, 2016, “Maria Bethânia: a Menina dos olhos de Oyá”.

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Oliveira Soares

Admirador, criador e pesquisador de narrativas. Doutor em Arquitetura e Urbanismo. https://linktr.ee/eduares

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