A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: Carnavais (1/5)

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Dentre os diversos modos de celebrar o carnaval no mundo e no Brasil, as escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro se destacam pela excelência técnica com que criam um espetáculo que envolve as artes visuais, a música, a dança, a literatura, os espaços da cidade, a economia, e a interação entre a sociedade conduzida por uma narrativa-enredo. Anualmente são apresentadas novas fantasias, alegorias, música, mas, principalmente, novas experiências para as milhares de pessoas envolvidas no processo de concepção, execução e apresentação das escolas de samba. Cada desfile explora possiblidades de contar estórias e de repensar a História.

No caso das escolas de samba do Grupo Especial, aos cerca de três mil componentes de cada uma se somam as pessoas que trabalham nos bastidores, materializando o que o enredo se propõe a contar. E maior ainda é o público que presencialmente ou a distância assiste o animado e intenso cortejo.

Cada novo desfile das escolas de samba cariocas cria um conjunto de informações que vai se esmaecendo com o tempo e se fundindo com o conjunto de recordações dos carnavais. Histórias e memórias do pré-carnaval, do desfile e do pós-carnaval. Cada participante, à sua maneira, percebe, registra, conta e resgata as experiências sobre as disputas: o local do desfile, o impacto ou a falta de impacto da escola, os bastidores, as expectativas, o êxtase, as frustrações.

O formato da festa celebra o efêmero. Diferente do teatro ou balé, cujas produções podem ser reapresentadas várias vezes, as escolas de samba desfilam somente uma vez. Duas, no máximo, se voltam no Desfile das Campeãs. Cada desfile, ao som de versos como “Somos a voz do povo, embarque nesse cordão/Pra ser feliz de novo, vem como pode no meio da multidão” (COM DINHEIRO OU SEM DINHEIRO, EU BRINCO!, 2018), é como uma chama que arde rapidamente. Os lampejos desse momento entram para a história e para a memória.

Pierre Nora afirma que “a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente […]” (NORA, 1993, p. 9). A história procura sedimentar um passado de algum modo validado por documentos e especulações. A memória constitui um rastro, uma cumplicidade – individual ou coletiva – com algo que foi vivenciado. Como observa Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (1992), “a elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente”. História e memória são criadas e reelaboradas a partir da perspectiva do presente.

Em meio ao excesso de informações e estímulos que caracteriza o carnaval das escolas de samba, uma possibilidade de tratar o assunto é por meio de um pensamento por montagem. Para Paola Berenstein Jacques esse tipo de pensamento é “um processo de mistura temporal, mas também de narrativas e narradores, de tempos e narrações heterogêneas, um processo de montagem que formaria também uma série de anacronias e de polifonias” (JACQUES, 2015, p. 57). Jaques alicerça a possibilidade de abordagem de um tema utilizando ideias criadas, problematizadas e expostas de maneira livre e multifacetada a personagens do início do século XX, como Walter Benjamin, no campo das palavras, e Aby Warburg, no campo das imagens (JACQUES, 2015, p. 48). A possibilidade de abordagens, ou de montagens, de narrativas envolvendo a história e a memória, é apontada por Walter Benjamin, que considera que “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1987, p. 37).

Ciente da dificuldade, ou inviabilidade, de tentar abarcar o todo de uma expressão cultural tão monumental e complexa, foram registrados, nesse artigo-narração dividido em cinco partes, fragmentos de experiências e percepções sobre o carnaval carioca. É um caleidoscópio de informações sobre “um tempo saturado de ‘agoras’ que se encontram com ‘outroras’ em relâmpagos ou breves lampejos, indicando possibilidades futuras” (JACQUES, 2018). Recorrendo-se aos desfiles da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, uma das mais tradicionais do carnaval carioca, e tendo como recorte temporal as apresentações realizadas entre os anos de 2016 e 2020, originadas de enredos propostos pelo carnavalesco Leandro Vieira, foram registradas algumas histórias, memórias e pesquisas. Os textos abordam: as origens desta escola de samba; as narrações sobre o carnaval; os enredos desenvolvidos; o Sambódromo e seu entorno; os desfiles; as diferentes percepções obtidas de acordo com o local em que se assiste a escola; as peculiaridades dos registros fotográficos; o ciclo carnavalesco; o peculiar carnaval de 2021, concebido no contexto da pandemia. É uma narrativa caleidoscópica, montagem de aspectos da festa, recortes da história e da memória. “Brasil, meu nego deixa eu te contar/A história que a história não conta…” (HISTÓRIA PARA NINAR GENTE GRANDE, 2019). A Mangueira tem muito o que contar.

Como relembra Ricardo Cravo Albin, “o local de nascimento da escola de samba foi o centro do Rio, ao sopé do Morro de São Carlos na Cidade Nova e no Estácio de Sá – vizinhos à Lapa boêmia e à Praça XI antiga, celeiros de sambas e de bambas” (ALBIN, 2009, p. 253). Daí o samba foi se expandindo para cidade, influenciado pelos ranchos e blocos carnavalescos.

O formato inicial das escolas de samba frequentemente é celebrado nos desfiles atuais, como registrado na foto de Fernando Grilli em 2018. “Pergunte aos seus ancestrais/Dos antigos carnavais, nossa raça costumeira” (COM DINHEIRO OU SEM DINHEIRO, EU BRINCO!, 2018). Em 1926 o Morro da Mangueira, denominação recebida devido à grande quantidade de pés de manga, “já era conhecido como reduto de sambistas. […] A Mangueira era um celeiro de manifestações de cultura popular” (CABRAL, 1996, p. 61).

Desfile da Mangueira, 2018, “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!”. Fotografia: Fernando Grilli.

A Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira foi criada no final da década de 1920 por participantes do Bloco dos Arengueiros. “As cores verde e rosa (em memória ao rancho de sua infância) e o nome da escola foram escolhidos por Cartola” (NOGUEIRA, 2005, p. 20). A agremiação reconhece seu ano de fundação como 1928, porém Sérgio Cabral, munido de antigos papéis timbrados da escola, argumenta que a data correta é 28 de abril de 1929 (CABRAL, 1996, p. 64). O nome da escola se refere a uma estação de trem. Mangueira era a primeira parada onde havia samba após a Estação Dom Pedro II. Nilcemar Nogueira registra que “a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira seria a convergência das necessidades de uma comunidade, com o espírito agressivo e poético do grupo dos sambistas que a arrebatava” (NOGUEIRA, 2005, p. 19).

Na atualidade a estação é conhecida como Central do Brasil e o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira é conhecido como uma das maiores e mais tradicionais escolas de samba do país. É a escola que conquistou o primeiro título de campeã do carnaval, em 1932. Feito celebrado por Cartola que, ao falar do Morro da Mangueira, canta: “Tem lá no alto um cruzeiro/Onde fazemos nossas orações/E temos orgulho de ser os primeiros campeões” (SALA DE RECEPÇÃO, 1976).

Ao longo das décadas a escola instigou várias iniciativas, como a Escola de Samba Mirim Mangueira do Amanhã, criada em 1987, e Programa Sociais nas áreas de educação, cultura, lazer e profissionalização. A repercussão das atividades vinculadas à escola desperta interesse no país e no mundo. Portanto, são frequentes as visitas de personalidades. Uma das mais emblemáticas foi a do então presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton, que acompanhado da primeira-dama americana, visitou a Vila Olímpica da Mangueira no ano de 1997. A recepção, que reuniu a comunidade mangueirense, foi conduzida pelo presidente da escola, Elmo José dos Santos, e do Ministro do Esporte, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.

A fama no exterior inspirou a criação, em 1985, de uma escola de samba na cidade de Yokohama, nos arredores de Tóquio, Japão, denominada G.R.E.S. Saúde. A escola de samba, que também utiliza as mesmas cores da Mangueira, mantém intercâmbio com a comunidade mangueirense. Em 2019 recebeu a visita do Presidente de Honra da Mangueira, o nonagenário Nelson Sargento (GRES Saúde, s.d.).

A trajetória da Mangueira é contada e recontada em diferentes modos e formatos, inclusive em seus próprios desfiles, como o do ano de 1978 que celebrou o cinquentenário da escola com o enredo Dos carroceiros do imperador ao Palácio do Samba. As narrativas sobre a escola estão fadadas a replicações e reelaborações, pois é por esse modo que conectam a sociedade atual aos ícones do passado, como Nelson Cavaquinho, e ao imaginário sobre a escola que emerge em momentos do cotidiano, como “Quando eu piso em folhas secas/Caídas de uma mangueira/Penso na minha Escola/E nos poetas da minha Estação Primeira” (FOLHAS SECAS, 1973). Em Mangueira o cotidiano é verde e rosa.

 

 

 


Referências Bibliográficas

ALBIN, Ricardo Cravo. Escolas de Samba, Carnaval, Rio de Janeiro. Textos escolhidos de cultura e arte populares, 2009: pp. 249-259.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 3. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Almir Chediak Produções, 1996.

COM DINHEIRO OU SEM DINHEIRO, EU BRINCO! Compositores: Lequinho, Júnior Fionda, Alemão do Cavaco, Gabriel Machado, Wagner Santos, Gabriel Martins e Igor Leal. In: Sambas de Enredo 2018. Som Livre, 2018.

FOLHAS SECAS. Compositores: Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. In: Nelson Cavaquinho. Universal Music, 1973.

GRES Saúde. Grêmio Recreativo Escola de Samba Saúde, homepage. s.d. Disponível em: https://gressaude.com/. Acesso em: 21 abril 2021.

JACQUES, Paola Berenstein. Montagem urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In: Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea, por Paola Berenstein JACQUES e Fabiana Dultra BRITTO, pp. 47-94. Salvador: EDUFBA, 2015.

JACQUES, Paola Berenstein. Pensar por Montagens. In: Nebulosas do Pensamento Urbanístico. Modos de Pensar (Tomo 1), por Paola Berenstein JACQUES e Margareth da Silva PEREIRA, pp. 206-234. EDUFBA, 2018.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A História, cativa da Memória? Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 1992: pp. 9-24.

NOGUEIRA, Nilcemar. De dentro da Cartola: a poética de Agenor de Oliveira (Dissertação de Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea). Fundação Getúlio Vargas, 2005.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História PUC/SP, dez. de 1993, n. 10, pp. 7-28.

SALA DE RECEPÇÃO. Compositor: Cartola. In: Cartola II. Discos Marcus Pereira, 1976.

 

 

 


Créditos na imagem:

Créditos na imagem: Desfile da Mangueira, 2018, “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!”. Fotografias: Fernando Grilli.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Oliveira Soares

Admirador, criador e pesquisador de narrativas. Doutor em Arquitetura e Urbanismo. https://linktr.ee/eduares

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