Numa pandemia ou fora dela, só o afeto salva

 

Tentei pensar que pudesse escrever um texto apenas de um lugar, o de uma mulher que é mãe e fala dos seus dilemas pessoais. Na medida em que eu ia pensando, percebi que partes desses dilemas, se repetem nos relatos de outras pessoas. Todas que, assim como eu, viram as suas vidas mudar desde aquele dia 18 de março de 2020.

Naquela quarta feira o que era para ser o início de uma quarentena se tornou um confinamento mais longo cuja permanência sucumbiu toda a rotina da vida ordinária que tínhamos, impactando as famílias em seus mais diferentes formatos. Na minha casa, as crianças não foram mais à escola e tiveram imediatamente que deixar as atividades esportivas e lúdicas fora de casa. Eu, pelo fato de ser professora, tive as minhas aulas suspensas, ao passo que as reuniões virtuais começaram a ser uma realidade constante e cada vez mais recorrente. Tomada de assalto pelo que chamaram de “novo normal” começamos a pensar em como fazer para continuar, sem saber direito o que estava além do horizonte.

Com as crianças em casa, diuturnamente, cheguei a brincar que sentia saudade da antiga jornada dupla, aquela que eu encarava, com muito cansaço, entre ir e voltar do trabalho na universidade, tendo em casa as demandas domésticas bem estabelecidas. Algumas dessas demandas foram construídas no dia a dia com o tempo; outras são, cultural e historicamente, incorporadas ao cotidiano de todas as mulheres, por nada diferente do que é a estrutura machista, sobretudo no que se refere à divisão das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos. Ainda falta muito a ser construído e não é uma pandemia que faria ser diferente. Ao contrário.

Se antes do confinamento o fato de sair de casa maculava ou nublava, de alguma maneira, o olhar sob essas diferenças, com o confinamento, elas se tornaram mais evidentes, de modo que, para as mulheres e, mais ainda, para as mães, o confinamento retirou o tempo de trabalho fora de casa, que muitas vezes possibilitava um acesso ao controle do seu próprio tempo, uma sensação de vida própria. Entre um afazer ou outro era possível ir ao salão fazer as unhas; tomar um café com uma amiga; conversar rapidamente na porta da escola da hora de buscar os filhos, poucos prazeres que compunham uma sensação de vida própria.

Embora os sujeitos todos estivessem prisioneiros, de certo modo, de uma autonomia relativa, frestas do cotidiano, a mudança de ritmo instalou uma angústia. É nessa hora que somos como o rei que ouve a voz do narrador do texto de Italo Calvino, O rei e a escuta. Mesmo com o palácio todo, o palácio como seu ouvido, não podemos sair do trono. Prisioneiros em nosso próprio mundo, o mundo de escolhas que fizemos, temos que encará-lo de um lugar que não mais é o de sujeito: a voz subjetiva está calada, a comunicação agora, na maior parte das vezes, só pode ser travada ou cingida pela tela do computador.

Além disso, o tempo é atropelado de modo que nunca se pôde estar inteiro em uma coisa apenas: enquanto a máquina de lavar trabalha, a carne é retirada do congelador, ao mesmo tempo em que se percebe que o filho sentado de modo incorreto na cadeira, olhando para a “aula virtual”. Enquanto a carne é colocada na panela de pressão, o filho reclama que a professora não o ouve, será problema no microfone ou a instauração de um silêncio? Os telefones da sala virtual podem ser desligados pela professora – a voz segue, na sala de casa, ao mesmo tempo em que o chiado da panela e o barulho da máquina compõem outro som. O dia não cala e as vozes internas de muitos de nós tiveram ressonância apenas no de dentro e muitas vezes é impossível suportar.

Ninguém sabia ao certo o quanto tudo iria durar. A jornada dupla virou jornada única. A televisão começou a mostrar todos os riscos em relação à possibilidade de contaminação. A cada saída de casa, apenas em casos excepcionais, um conjunto de medidas era necessário, entre tirar toda a roupa, entrar pela área de serviço, usar álcool em gel em tudo que entra na casa, não receber pessoas, lavar as mãos vagarosamente e só sair de máscara. Um mundo novo, um canto chernobilzado da casa, chinelos e sapatos de fora.

Ao mesmo tempo as propagandas de venda de roupas, de lojas de celulares e carros, a possibilidade de viajar, fazia parecer que as coisas ainda não tinham alcançado um lugar tão grave. O tempo foi passando e os protocolos de segurança sendo aprimorados. Fronteiras fechadas. A difusão do vírus em ampla velocidade, a contabilidade da morte, os hospitais lotados, a proibição do abraço. O abraço é um toque de dois cotovelos. As entrevistas mostravam que a vacina era a solução. As informações sobre o prazo mínimo para a produção de uma vacina, mesmo desalentadoras, era uma promessa de horizonte.

Do ponto de vista mais íntimo muita coisa se alterou com o tempo. Vi na televisão a reportagem sobre a história de um casal que estava separado e que decidiu voltar a morar junto para garantir a segurança do filho em comum, já que, a noção de dentro e fora, mudou abruptamente, sendo recomendado pela máxima “fica em casa” traduzida de diversas formas: na boca de artistas, jornalistas, médicos e também em faixas escritas por profissionais da saúde que começaram a ser praxe nos programas de televisão. Também houve acirramento de incompatibilidades entre casais, que ficaram mais evidentes em tempos de pandemia, fazendo com que o número de separações aumentasse consideravelmente. Além disso, a própria busca no google por perguntas do tipo “como dar entrada em um divórcio” ou “quanto custa um divórcio”, aumentou, já no segundo trimestre pandêmico, em cerca de  1.100% segundo a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados – Censec. Houve aumento do número de violência contra mulheres e crianças segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a empresa Decode. A pandemia da Covid 19 não calou a pulsão invocante da vida conjugal. Os casais que se separaram o fizeram pela incapacidade de macular suas crises pretéritas no modelo de vida confinada uma vez que muitas contradições se tornaram mais claras e insuportáveis com o passar dos dias. Acordamos no mesmo dia todos os dias, há quase um ano e, muitas vezes, sem horizonte, de modo que pular de um barco que estava prestes a naufragar e se arriscar a nadar não parece ser o pior dos riscos.

Em face da possibilidade de recair no argumento de que esses fenômenos são exclusivos do momento da pandemia, vale ressaltar a tese de que a crise desencadeada pela Covid 19, tanto no que se refere a capacidade do Estado em agir na proteção das pessoas e na preservação das condições de vida, quanto na vida privada, são nada mais que o próprio símbolo do capitalismo mundial que nunca voltou o seu desenvolvimento a serviço do homem. Josué de Castro em seus últimos escritos ressalta que o cérebro do homem é a fabrica do desenvolvimento e sua vida deve desabrochar pela utilização de produtos postos à sua disposição pelo desenvolvimento. No entanto, o homem está arrastado pela engrenagem e nem sequer consegue aspirar algo fora desse sistema já que, muitas vezes, não conhece sequer o próprio desejo fora dele.

Muitas pessoas confinadas descobriram atividades que há tempos não podiam se ocupar. Uma tia redescobriu o crochê e montou um site para vender o resultado do seu novo ofício. Uma amiga começou a praticar ioga. Outra disse que queria organizar sua casa e, com o confinamento, fez uma horta, comprou uma bicicleta para andar pelo quarteirão, pediu demissão de um dos empregos e mudou a filha de uma escola distante para outra mais próxima.

A casa tomou outra dimensão. Se for pequena, se falta quintal, se tem espaço, se nela se pode pegar sol, enfim, todos os detalhes passam a fazer parte das preocupações. Por morar em uma chácara, ouvi de muitos amigos que antes me criticavam por estar na borda urbana uma mudança de posicionamento, sobretudo os que têm crianças pequenas. Quando não se pode sair a casa ganha outra dimensão. O apelo a criatividade se faz frequente: seja como recurso para que não tenhamos tédio ou mesmo para garantir qualquer nível de preservação de um mundo mais distante da televisão e dos outros aparelhos eletrônicos. Não teve quem não esgarçou os limites nesse quesito, exagerando mais do que acharia saudável ou aceitável fazer.

As contradições são múltiplas. Teve quem se atirou do nono andar de um prédio sem paraquedas. Pessoas que nem sempre lavaram as mãos corretamente, que usaram a máscara mais de uma vez, que não andaram com álcool a tiracolo. Nem sempre foi possível ser outro mesmo que o contexto exija. De algum modo se acirrou também uma enorme realidade: a desigualdade social daqueles que não puderam escolher ficar em casa e que foram jogados a própria sorte de situações como trafegar em ônibus lotados ou mesmo os que escolheram negar a gravidade da situação por incapacidade de acessar o conflito histórico que faz parte disso, o pano de fundo nessa ordem de coisas. Nenhum de nós deve ser julgado por qualquer deslize, por mais absurdo que pareça. O confinamento traz prejuízos de todas as ordens alguns dos quais tão nocivos quando a contaminação pelo vírus. Tomaram de assalto a nossa possibilidade de circulação, mesmo que já fosse desigual, que já esboçasse suas contradições e a esfera da perversidade.

O ano passou e a promessa da vacina foi soterrada por falta de interesse – ou na verdade, em nome de outros interesses, ao passo que vimos que não nos falta ciência. E pela primeira vez à volta as aulas não é uma volta, mas a continuação de um modelo que foi construído às pressas e que só reforçou ainda mais a desigualdade entre os que possuem condições de acompanhar as aulas remotas e os que não possuem nenhuma condição, nem física, nem tecnológica e nem social. Entre os que acompanham aulas existem tensões, muitas. Entre os que não o fazem, por pura impossibilidade, o déficit de conhecimento entrará para a conta, de modo que aquilo que deveria ser o mais prioritário nesse contexto, a garantia do acesso à educação, não se realizou.

No sistema escolar, a corda estourou nas mãos dos mais fracos, fazendo com que tanto a aprovação em larga escala quanto a reprovação fossem, na verdade, quadros de um sistema falido que não pôde significar a importância da educação na vida social de um país. Os ricos e milionários seguiram confinados em seus luxuosos espaços, sem qualquer impacto sob as suas fortunas ou rotina. A classe média e os mais pobres estão cada vez mais próximos, adoecidos, vendo seu poder de compra amplamente reduzido.

Em alguns momentos uma reclamação de alguém que está, como eu, em um lugar de maior conforto, parece ser uma perca de um senso de proporção…ou seja, teria mesmo eu o direito de reclamar de alguma coisa, gozando de condições favoráveis em comparação com outros? Coloco-me a fazê-lo correndo os riscos que decidi correr, por acreditar que depois dessa experiência não temos nada a temer ou a perder. Nasceu em mim e foi crescendo, de modo estranho, uma espécie de coragem, desde aquele março de 2020, proporcionalmente, gradativamente. Em meio a tantas contradições há saldos positivos também. Não tomo mais remédio para dormir; relaxei em relação ao papel da escola na vida dos meus filhos; comecei a fazer ioga; escrevo mais, por puro prazer, redescobri a psicanálise em outro lugar na minha vida e, o que é melhor: apaixonei-me. Por mim, pela vida, por outro. De novo. E é bom.

 

 

 


Créditos na imagem: Arte de Alexandra Levasseur, disponível em: https://www.kaifineart.com/alexandralevasseur

 

 

 


SOBRE A AUTORA

Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva

Professora Associada da Universidade Federal de Goiás onde exerce atividades de ensino, pesquisa e extensão. Coordena o VEREDAS, grupo de estudos, pesquisa e extensão, vinculado ao LAGICRIARTE - Laboratório de Geografia, Imaginário, Criatividade e Arte.

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