1990: a professora que findou a Guerra do Golfo numa aula de história

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Recordo-me de uma passagem d’O Retrato de Dorian Gray em que o narrador, dizendo do excêntrico e decadente dândi, Lorde Henry, informa ao leitor sobre a atitude da personagem de adotar o atraso como princípio, já que considerava que a pontualidade representava um roubo de tempo. Diferentemente da postura do aristocrata romanesco, sem qualquer compromisso com o tempo homogênio e industrial que rege as nossas vidas de reles mortais, me beneficio desse perspicaz oximoro criado por Wilde a fim de, menos do que me redimir, justificar que a pontualidade iria me roubar, no caso, o tempo de poder transformar em um ensaio o que seria inicialmente um breve depoimento de rede social.

Explico-me: a partir de novos elementos que, de lá pra cá, andei ruminando até o ato de elaborar essas reflexões, exponho somente agora, com quase dois anos de atraso, a minha adesão a uma campanha lançada pela Anpuh – Associação Nacional de História: “A aula de história que me marcou”. Naquele mês de outubro de 2021, dedicado a homenagear as professoras e professores pelo seu dia, a entidade pretendeu reafirmar o papel que tais profissionais exercem no processo de construção do conhecimento e de humanização dos sujeitos. A recomendação era de que gravássemos uma curta homenagem e a publicássemos em nossas redes sociais com a hashtag #auladehistoriaquememarcou.[1]

Pois bem, ao não concretizar a recomendação à época, uma vez que outras pontualidades me roubaram o tempo daquele justo acontecimento, apresento nas linhas que se seguem o que, talvez, tenha sido a minha primeira experiência efetiva – e afetiva – em uma aula de história que se deu ainda na infância, no ano de 1990. Ela me marcou na medida em que cumpriu uma função antes terapêutica do que pedagógica, num primeiro momento, a ponto de guardar até hoje, com bons detalhes, tais traços mnemônicos. Estávamos na 5ª série. A escola era a Estadual Professor Antônio Gonçalves Lanna, o famoso e velho “Estadual”, localizado no chamado Centro Comercial da cidade de Ponte Nova, Zona da Mata mineira.

Dona Neide – não me lembro do seu sobrenome, e era assim que a chamávamos respeitosamente –, de estatura baixa, branca, de óculos e relógio dourados, cabelos bem curtos e claros, percebeu, assim que entrou na sala, uma certa agitação, bem como os rostos apreensivos das pequenas e pequenos sob a sua guarda. O fato era que, de quando em quando, ecoavam e se espalhavam vertiginosamente entre as alunas e alunos os rumores milenaristas, temporalização escatológica antiga na história da humanidade e magistralmente trabalhada por Georges Duby, em seu clássico O ano mil. Grosso modo, é a crença difusa, ainda hoje compartilhada e relativamente estruturante da psique coletiva, de que o mundo, no fim dos milênios, irá sofrer um “reboot” apocalíptico para em seguida trazer tempos de paz e renovação. Tais esquemas milenaristas, dirá o historiador francês, “ainda não perderam completamente, na nossa época, o seu poder de sedução na consciência coletiva” (DUBY, 1967, p. 9). E, tal como no medievo, salvaguardadas as proporções, essa “miragem histórica” acomodava-se com facilidade nos rincões do Brasil dos anos 90, “universo mental” disposto a acolhê-la intensamente (DUBY, 1967, p. 9).

Podíamos ouvir dos nossos avós, dos pais e mães dos nossos amigos, das senhorinhas e senhores da vizinhança, das benzedeiras, dos religiosos, dos moleques e trabalhadores dos comércios e bares reprodução muito semelhante das narrativas medievais oriundas de testemunhos sobre “uma ansiedade latente de que tiravam partido os pregadores da penitência” (DUBY, 1967, p. 35). O abade de Saint-Benoît-sur-Loire, Abbon, por exemplo, recorda que, por volta de 975, a propósito do fim do mundo, ouviu “pregar ao povo numa igreja em Paris que o Anticristo viria no fim do ano mil e que o Juízo Final se seguiria pouco depois” (DUBY, 1967, p. 36).

Ora, quem viveu nos anos 90, sem computador e internet, ou qualquer outro dispositivo imagético de comunicação de massa alternativo à televisão, sabe o quanto era viva, principalmente no interior, a ideia de que o mundo iria “arrasar” por meio de desordens cósmicas, como eclipses de longa duração, cometas, colisão de estrelas, além de epidemias, fome e, claro, guerras e catástrofes de dimensões globais.[2] E era exatamente uma guerra, de características absolutamente novas, que excitava as consciências e nos apavorava diante da televisão. Pudemos, eu e a minha geração, assistir, de modo inédito, porque em tempo real, às imagens, tal qual um videogame, dos mísseis verdes reluzentes cruzarem os céus dilúculos da capital do Iraque, Bagdá, na chamada Guerra do Golfo – conflito entre Estados Unidos e Iraque, que se encerrou em 28 de fevereiro de 1991.[3]

Essa guerra, historicamente a primeira televisionada em dimensões planetárias, completou, a propósito, seus 30 anos exatamente em 2021, quando da campanha da Anpuh ora recuperada. Sua difusora, a gigante estadunidense CNN, “entrou para a história da mídia global graças a um satélite retransmissor estrategicamente colocado em órbita estacionária” (SUDRÉ, 2021). Segundo José Arbex Jr., jornalista que cobriu o conflito, à época editor da Folha de São Paulo, tal procedimento exigiu enorme aporte de capital e tecnologia de ponta militar, requerendo acurada precisão estratégica, além do imprescindível monopólio da informação, “já que a internet não havia sido desenvolvida o suficiente para oferecer versões alternativas ao público” (SUDRÉ, 2021).

Enquanto os soldados estadunidenses eram esbeltamente representados a partir de detalhes que os humanizavam, como informações pessoais, gostos e costumes, as imagens retratavam os iraquianos de modo desumanizado. Crianças, por exemplo, eram flagradas empunhando metralhadoras, e mulheres, sob véus, usando como transporte camelos da Arábia Saudita (SUDRÉ, 2021). Incontornavelmente, “isso serviu para a construção da islamofobia pela mídia, que trata 2 bilhões de seres humanos como atrasados, violentos, e para justificar os ataques aos países islâmicos, que, não por acaso, são os que concentram riqueza de petróleo” (ARBEX JR. apud SUDRÉ, 2021).

Voltando ao Brasil, a cobertura desse significativo evento da história contemporânea ficava sob o monopólio da Globo, a qual detinha os direitos de imagem e transmissão ao vivo por meio da CNN. Lembro-me que, em meio a qualquer atração da grade da emissora, como novelas, filmes e jogos de futebol, podíamos ser surpreendidos a qualquer momento por um plantão que nos exibia os ataques dos mísseis sobre os edifícios descaracterizados em sua função pública ou privada, como se fossem simples componentes espontâneos e vazios de uma maquete naïf. Não se via pessoas morrendo. A deliberada angulação das câmeras nos conferia o estatuto de meros espectadores de games da modalidade shoot’em up, os quais se popularizariam, poucos anos depois, nos lares que possuíam cobiçados consoles como Super Nintendo e Megadrive, por exemplo, ou PC’s com dispositivo de CD Rom acoplado. Tal modalidade consiste em controlar, do alto, poderosos caças que combatem imponentes máquinas de guerra inimigas e arrasam tudo o que veem pela frente nas cidades frias e inertes abaixo de seus alvos.[4]

Em meio a todo esse vórtice, até então extraordinário, de fatos e imagens, 24 horas, despontava uma vinheta produzida pela Globo para os plantões, onde um barril de pólvoras, aceso, com o mapa de parte do Oriente Médio em sua tampa, e atravessado subitamente por um fuzil com baioneta, nos aterrorizava com a sua trilha de caráter épico composta por tímpanos, cellos e violinos sintetizados.[5] Foi da famigerada vinheta que partiu Dona Neide para nos ensinar – e nos tranquilizar subitamente –, transpondo o raciocínio para o nosso grau possível de sensibilidade e compreensão, que aquilo não passava de uma peça de marketing sensacionalista para conquistar audiência e gerar lucros. E que – o mais importante que queríamos ouvir – a guerra era localizada e não nos atingiria, ao menos diretamente, a partir de uma ideia prenunciada de fim do mundo. Não custa lembrar que faltavam apenas nove/dez anos para o fim do milênio, e que os alvoroços populares acerca do arrasamento do planeta, no ano 2000, viam na guerra – entre outros eventos que marcavam um mundo apenas saído da Guerra Fria – o seu funesto prelúdio.

Após aquela aula – ou aquele grande parêntese fora do script –, os semblantes assombrados se dissiparam, saímos para um recreio mais feliz e com uma pálida noção, por óbvio, do que se dera, ali, foi a efetivação da natureza crítica e desalienante da disciplina, bem como as suas relações com a verdade e a mentira, com a mídia e a administração espetacularizada do medo coletivo para fins lucrativos e de dominação.

Eis, portanto, o nosso papel como professores e professoras dos domínios de Clio: “pensarmos a aula como momento de intensidade a contrapelo da normalização e das tecnologias do cotidiano” (ARAUJO, 2012, p. 76). Preservado em muitas línguas modernas, o sentido latino da palavra aula, dirá Valdei Araújo, “não significava apenas ou principalmente uma lição dada a um pupilo, mas o lugar ou situação onde uma lição poderia acontecer. Assim, mesmo em português, a parte mais interior de um santuário ainda pode ser chamada de aula” (ARAUJO, 2012, p. 76). Para além da mera dimensão física de um espaço no qual algo está em jogo, tal acepção configura-se como o “acontecer de uma situação. Não é uma situação do dia a dia, mas uma situação interior, do plano do religioso em seu sentido etimológico, do refazer as ligações entre os humanos e o seu mundo” (ARAUJO, 2012, p. 76). Pois bem, assim procedendo, Dona Neide findou, então, para nós, já em 1990, a Guerra do Golfo.

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ARAUJO, Valdei Lopes de. A aula como desafio à experiência da história. In: GONÇALVES, Marcia de Almeida; MONTEIRO, Ana Maria; REZNIK, Luís; ROCHA, Helenice (Org.). Qual o valor da história hoje?. 1 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2012, v. 1, p. 66-77.

DUBY, Georges. O Ano Mil. Trad. Teresa Matos. Lisboa: Edições 70, 1967.

SUDRÉ, Lu. Kuwait 1991: 30 anos da “primeira guerra televisionada”. Brasil de Fato. São Paulo, 28 fev. 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/02/28/kuwait-1991-30-anos-da-primeira-guerra-televisionada. Acesso em: 09 jun. 23.

 

 

 


NOTAS:

[1] https://www.youtube.com/watch?v=UxX43A_ewcY&ab_channel=Associa%C3%A7%C3%A3oNacionaldeHist%C3%B3ria-AnpuhBrasil

[2] Ver DUBY, Georges. O Ano Mil. Trad. Teresa Matos. Lisboa: Edições 70, 1967, p. 99-110.

[3] https://www.youtube.com/watch?v=RzNC5p06H7U

[4] https://alvanista.com/leojiraya/posts/3254798-meus-10-melhores-shoot-em-up-snes

[5] https://www.youtube.com/watch?v=LMlp7dy1g5M&ab_channel=DersonRubimNostalgia

 

 

 


Crédito nas imagens: Reprodução: Thumbnail (tratado no Adobe Photoshop) do vídeo “Flashback: Operation Desert Storm”, veiculado pelo site da NBC News (https://www.nbcnews.com/flashback/video/flashback-operation-desert-storm-602522691675).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Dalton Sanches

Possui doutorado em História (2019) pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Realizou, em 2017, período de estágio sanduíche - bolsista PDSE-CAPES - no Dipartimento di Lingue, Letterature e Culture Moderne da Università di Bologna, Itália, sob orientação do Prof. Dr. Roberto Vecchi. Tem interesse nas áreas de Teoria da História e Historiografia, História Intelectual, Historiografia Brasileira e História do Brasil Republicano, com ênfase na cultura historiográfica da primeira metade do século XX. Nesse recorte, tem se debruçado, especificamente, sobre aspectos da obra de Sérgio Buarque de Holanda em contraste com a de alguns dos seus grandes interlocutores. É filiado ao Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM), à Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e à Associação Nacional de História (ANPUH). No âmbito da prática docente, atua na Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga (FADIP), lecionando as disciplinas abarcadas pelas áreas das Humanidades e Ciências Sociais.

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