Necropolítica e a visão do favelado numa guerra não declarada

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O sangue do morro é o combustível do jato

Na seguradora até o manto sagrado

Hoje Deus anda de blindado, cercado e protegido 

por dez anjos armados (2x)

A pomba branca tem dois tiros no peito, dois tiros no peito

(Facção Central)

 

Achille Mbembe (2018), ao buscar entender o controle social do corpo negro a partir da experiência colonial, explica que o projeto político que delimita quais corpos são passíveis de morte e quais corpos são permitidos a viver é o racismo. Desse modo, a necropolítica consiste em uma política de morte que etiqueta e define quem vive e quem deve morrer na sociedade. Desse jeito, os corpos que são categorizados como não humanos, são identificados como uma classificação social direcionada às pessoas negras (pardos e pretos) para legitimar a violência contra seus corpos (2018, p. 20-21)

Entendendo a relação de poder nos países colonizados, em seu sentido complexo, os espaços considerados como zonas de guerra no Brasil são conhecidos como favelas e se estruturam a partir de uma lógica de domínio colonial, na qual a violência é identificada por meio da instalação da barbárie e legitimação da violência contra grupos subalternizados. Assim, ao se deparar com diversas reportagens que relatam o genocídio de jovens negros em territórios periféricos depois de um operação policial, é possível demonstrar a naturalização dessa violência no cotidiano brasileiro. 

Segundo o último levantamento realizado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), existe uma seletividade racial nas ações policiais, na qual 76,5% dos assassinatos representaram pessoas negras em 2021. Sabe-se que essa realidade se manifesta em diversos territórios periféricos no Brasil, como pode ser notado na maior chacina cometida durante uma operação policial no país na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro que resultou em 29 mortes. Dessa forma, se legitima a violência policial, por meio de uma ordem jurídico social, na qual a busca pelo “bem estar” social garante o massacre cotidiano contra jovens negros e pobres.

Vale apontar também que esses territórios periféricos são considerados zonas de guerra, tanto por conta da disputa pelo controle da venda de drogas, quanto pela violência policial contra moradores que são rotulados como “bandidos”. Dessa forma, a partir da análise de Mbembe, o estado de exceção é instaurado por meio de uma lógica de estado de guerra, que além de demarcar territórios, produz a política de morte que atua fortemente sobre seus corpos. 

Podemos citar como exemplo a criação das Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs) no Estado do Rio, na qual os moradores percebem que o controle do espaço foi retirado das mãos do narcotráfico e passado para o comandante da unidade. Relatos como invasão de propriedade privada, torturas, revistas constantes, pedidos de fechamento do comércio, fim dos bailes funks, entre outros, fazem parte de um compilado de reclamações realizadas por moradores das favelas do Rio. Neste sentido, as UPPs funcionam como uma maneira de militarizar o espaço e o cotidiano. Além disso, a partir do discurso dos moradores é possível notar o exercício de um processo ditatorial exercido sobre os indivíduos por meio do poder disciplinar.

O projeto das implementações das UPPs no estado do Rio, mostra que o estado controla o espaço periférico com o discurso de que os traficantes, estes malfeitores perigosos, são os responsáveis pela insegurança da população, criando a necessidade da permanência da polícia “cidadã” nos becos e vielas da quebrada decidindo o que é melhor para os moradores da favela sem ouvi-los. Ou seja, a razão da intervenção do estado pode se converter em golpe violento e mortífero, inclusive, sacrificando alguns em benefício do “bem-estar” social. A partir desta análise, se entende que a experiência da militarização do cotidiano é um mecanismo de controle dos corpos não brancos. 

Segundo André Duarte (2008), a biopolítica e o biopoder são entendidos enquanto formas globalmente decisivas no exercício cotidiano de um controle policial/vigilante, que investe na preservação da vida por meio da aniquilação da própria vida dos corpos indesejáveis. Isto é, pode ser notado a partir de Mbembe em conjunto com as observações de Foucault, que o sujeito desprovido de humanidade é reconhecido socialmente como um não-sujeito, por isso a violência proferida contra seu corpo é legitimada e sua ligação está relacionado com o processo histórico da diáspora africana. 

Desta forma, a atuação da polícia brasileira dentro das UPPs não segue o projeto no papel, na realidade mostra a restrição dos direitos dos moradores das comunidades, como os “toques de recolher” que decidem se o comércio e a circulação dos moradores é paralisada à noite. Mais que um simples método de ordem, as UPPs ultrapassam o limite de ação, usando meios que podem ser equiparados aos meios usados pelo narcotráfico que antes comandava as comunidades. Em alguns casos, a única diferença que pode se destacar da ação do narcotráfico em relação a ação dos policiais é que apenas um deles é institucional (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2012, p. 5). Desta forma, o processo de militarização do cotidiano faz a população periférica se sentir ameaçada e privada dos seus direitos.

Por esse ângulo, o rapper Eduardo Taddeo, ex vocalista do grupo Facção Central, busca evidenciar, a partir de seu livro A Guerra Não Declarada na Visão de um Favelado (2012),   que o contexto de guerra dentro das periferias do Brasil funciona como uma cortina de fumaça que é instaurado por trás da “democracia” que implica em punição ditatorial contra o favelado. Desse modo, segundo Taddeo, os direitos fundamentais que deveriam ser garantidos a todo cidadão brasileiro a partir da carta magna, direciona o favelado a usurpação da sua liberdade. Logo, qualquer morador de uma comunidade carente que tenta expressar revolta diante da sua realidade de descaso por conta do estado de exceção, pode ser violentamente reprimido com rajadas de metralhadoras disparadas por integrantes de uma tropa de choque, ou seja, o braço armado do Estado. 

Dessa maneira, o desenho da guerra que faz parte do cotidiano periférico evidencia um estado de guerra não declarado vivenciado nas comunidades brasileiras. Os moradores de periferias aprendem desde cedo, que nos fronts de batalha oficiais onde eles habitam, não existe carnaval e micareta para a população preta quando tem ação policial na favela. Nesse cenário,  a Guerra Não Declarada do ponto de vista do favelado no país não pode dar aos aniquilados a chance de se defender, de empreender fuga ou de ao menos se despedir de entes queridos, já a faz gravitar num patamar de malvadez até então nunca visto pelo homem (TADDEO, 2012, p. 36).

Taddeo deixa claro que os campos de batalha no Brasil, não são camuflados e clandestinos, mas sim habitados por corpos historicamente marginalizados, na qual o horror faz parte do espetáculo cotidiano de assassinato em massa. Para tanto, a política possui um papel social de manter o “bem estar”, na visão do favelado, garantir a preservação da vida em detrimento do assasinado dos sujeitos rotulados como vetores de violência. Quando se trata de esquartejar a paz no sentido figurado ou literal, segundo Taddeo, os opressores nacionais são os maiores especialistas na implementação do estado de guerra contra a população negra e pobre. 

Assim, ao comparar o número de homicídios no Brasil em relação a países em guerra, percebe-se que o Brasil possui um número maior de mortes. A diferença é que nesses países a guerra é reconhecida pelo Estado, enquanto do Brasil, não. Desse modo, Taddeo chama a atenção que a diferença dessa perspectiva está relacionada com o lugar de quem vivencia essa realidade. Isto é, para o favelado, o estado de guerra permanente faz parte do seu dia a dia, enquanto a elite brasileira finge não perceber essa realidade, justificando que o país vive em uma “democracia”. Desse modo, esse cenário de guerra provocado pelo armamento, pelo estado permanente de morte e a militarização do território evidencia que o contexto brasileiro é similar às guerras em curso no mundo, com diferença de mísseis, bombas atômicas e reconhecimento pelo Estado dessa realidade.

O Estado de guerra brasileiro é naturalizado no cotidiano e camuflado pelo estado “democrático” por direitos que legitimam a barbárie e a violência em territórios periféricos. Dessa forma, do ponto de vista dessa narrativa da visão do favelado, as periferias do Brasil podem ser entendidas como campos de concentração por meio de uma guerra não declarada oficialmente. Ademais, essa realidade legitima a ideologia colonial nos territórios ocupados por maioria de pessoas pretas e acarreta um estado de apartheid social.

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Sílvio L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (Minas Gerais): Letramento, 2018.

DUARTE, A. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI, 2008.

FANON,F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira,1961,p.3-2.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte. São Paulo. n-1 Edições. 2018.

MALCHER, Ândrea. “83% dos mortos pela polícia são negros, aponta relatório.” Correio  Braziliense, 20 Julho 2023.

TADDEO, Eduardo. A Guerra Não Declarada na Visão de um Favelado.São Paulo. n-1 Edições.2012.

CANO, Ignácio; BORGES, Doriam; RIBEIRO, Eduardo. O impacto das unidades de polícia pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, (2012).

 

 

 


Créditos da imagem: Reprodução.

 

 

 


SOBRE A AUTORA

Luana Brunely da Silva

Natural do Espirito Santo, sou graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Possuo estudos voltados para área de conhecimento sobre Tempo Presente e Pós-colonialismo com foco nas relações de dominação e exploração enraizadas historicamente na colonização nos países latinos americanos. Ademais, sou membra do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da UFOP e também atuo como membra coordenadora do Coletivo Negro Braima Mané, vinculado a Universidade Federal de Ouro Preto(UFOP).

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