Tornar-se fantasma e parte da fantasia também

0

Já te disse como é a dor?

Morrer traz uma dor tão grande!

E eu não estou falando do amor, da paixão, da compaixão, do que podemos raciocinar… Eu não vi nada se passar pelos meus olhos, nenhuma história ou saudade, nenhum arrependimento ou o segredo da vida, sentia apenas dor e não conseguia pensar nem sequer no quanto doía. Estou falando do corpo mesmo, desse corpo que me tornava humana, dessa carcaça de mulher, desse respirar de preta. Ele doía de uma forma que não consigo expressar em palavras nem em poesia. O meu coração, o órgão, o pedaço de carne, doía tanto, tanto que eu não aguentei e morri, isso é morrer.

Eu morri!

Era tanta dor, dor física, que não conseguia falar, não conseguiria descrever. Talvez tenha defecado, talvez tenha vomitado sem perceber. Eu não conseguia pensar em sentir, eu só sentia. Foram alguns segundos de dor, de dor intensa!

E depois disso…

Depois houve um silêncio ensurdecedor que me atravessava a alma. Só silêncio, silêncio sem exceção! Mas não doía mais! Não sei quanto tempo permaneci naquele silêncio até notar que ainda tinha corpo, até notar que estava sendo devorada pelos germes, até notar que estava me tornando parte deles.

Isso não doeu.

Foi então que percebi que estava me transformando.

Não doía, mas era completamente novo, extraordinário, maravilhoso, me sentia desfazer no universo… Eles, os germes, comiam o meu corpo vagarosamente. E vagarosamente eu me tornava parte deles. Em pedacinhos. E podia sentir cada uma dessas partes, porque todas eram eu, todas eram o meu corpo e a alma que havia nele. Ainda não conseguia pensar em absolutamente nada, não conseguia pensar em sentir, eu apenas sentia cada parte minha presente em algum lugar. Com o tempo aqueles germes se tornaram muitos e eu me tornei ainda mais.

Me tornei parte do todo.

Nada, absolutamente nada, pode ser tão maravilhoso. Nada pode ser tão presente e sentido ao mesmo tempo. Nada se perde no Universo e eu me tornei parte, e cada parte do universo tinha algo de mim, das estrelas à mônada presente na água do rio.

Era parte da chuva,

era parte das árvores,

era parte do próprio ar…

E ainda não podia pensar em sentir, eu apenas sentia com o meu corpo. Parte de mim estava no céu, outra parte na espuma da onda que toca a areia… Eu me espalhava cada vez mais. Então o tempo pareceu se espalhar também.

O tempo é parte e todo, e porque não seria?

Eu me espalhei pelo tempo e pelo todo que há nele. E de repente as concepções de passado e futuro não faziam sentido, não faziam nada, apenas sentiam. Eram o sentido e o toque.

Estão todas em mim, em um tempo só.

Não sei quanto tempo cada processo demorou, porque não é um processo. O tempo tornou-se constante e um…

no meu ser.

Então eu o toquei…

Toquei meu filho ali, no momento em que ele segurava o meu corpo morto no chão. Me toquei quando Bento me rasgou pela primeira vez e percebi que não estava sozinha. Toquei mulheres outras que eram e de alguma forma se tornariam parte do que eu sou. Eu me tornei parte dos sentidos e do ser. Eu me tornei parte de todas elas.

Me tornei um espectro enfim,

e começo.

Me tornei presente em absolutamente tudo que pudesse me sentir, me tornei presente em tudo que fosse sentido e ainda mais naquelas que conseguiam me deixar atravessar. Nessas eu passei a entrar pela boca e pelo nariz, passei pelo coração, pelo órgão e pelo amor, atravessei como uma faca que não pode ser vista por olhos nus. Me tornei a própria dor, os olhos, a boca e o momento inevitável da resistência.

Me tornei parte de cada uma delas,

gritei como no dia da minha morte,

amei como se sentisse o Escobar pela primeira vez,

respirei como se fosse o ar,

chovi e fui tomada com sede,

me tornei semente e flor queimada pelo fogo.

Me ouvi “puta” na boca de cada leitor.

Eu ainda vivo constantemente aquela dor,

eu ainda sinto todos os espíritos que me tocaram,

eu ainda estou deixando o Bento trançar o meu cabelo,

ainda estou traindo meu próprio corpo naquela noite e ao mesmo tempo eu sou parte do som que chorava quando eu nasci.

É mesmo bonito descobrir-se fantasma…

Fantasma, parte do atravessamento e 0porque não dizer, da fantasia também.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Como lidar com a dor da perda? G1. Foto: Banco e Imagens

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Ana Paula Silva Santana

Doutoranda em história no programa de pós graduação em história da Universidade Federal de Outro Preto (PPGHIS-UFOP). Mestre pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES. Graduada em história licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto. Graduada em História Bacharelado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade (NEHM). Integrante do Grupo de História Ética e Política (GHEP). Editora Colaboradora da Revista HHMagazine- Humanidades em Rede. Pesquisadora vinculada à linha de pesquisa Poder, Espaço e Sociedade do PPGHIS -UFOP. Interesses:Teoria da História, Gênero, Romantismo Brasileiro, História do Brasil Império

 

No comments

Veja:

No latim, amor. Em mim, você.

Eu sou, indiscutivelmente, compromissado com a origem e o significado das palavras, movimentos e coisas. As borboletas, por exemplo, parecem entender que o significado da ...