“Como vamos fazer pro menino aprender?”: relatos da pandemia – Parte 2

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Acaso o escasso o leitor ou leitora desse relato não tenha lido a Parte 1, entre aqui: https://hhmagazine.com.br/como-vamos-fazer-pro-menino-aprender-relatos-da-pandemia-parte-1/ . Lá contei um pouco do processo de suspensão das aulas presenciais em função da pandemia do novo coronavírus em um município mineiro de 270 mil habitantes, localizado algo próximo de 200 kms a leste de Belo Horizonte, a capital do Estado. Mas eu o fiz, e assim permaneço, a partir de um ponto de vista particular: o lugar de um professor de história membro da equipe técnica pedagógica da Secretaria de Educação e que deveria pensar e executar em termos pedagógicos essa nova e inesperada modalidade de ensino, o remoto, para uma rede pública inteira de ensino básico. Hoje, conto como foi a construção dos demais Blocos de Atividades Temáticos, as dificuldades, reclamações e potencialidades dessa proposta, o dilema de recuperar as aprendizagens, os processos de avaliação em meio remoto, a formação dos professores e o resultado final desse trabalho em 23 de dezembro de 2020. E eu o farei através de cartas endereçadas aos colegas professores de história1 

 

Ipatinga, 17 de junho de 2020 

Prezades colegues professores de história, 

 

Venho, por meio desta, informar a vocês que as aulas irão voltar! Mas, acalmem-se, não será no modo presencial e, sim, remoto. Tentarei explicar a vocês como vai funcionar.  

No último dia 03, foi publicada uma Resolução (Nº 03/2020) que regulamenta o ensino remoto2. Entre outras coisas, ela regulamenta como serão as atividades pedagógicas não presenciais. Primeiro ponto que queria esclarecer com vocês: essas atividades não substituem, jamais, a presença física do professor, mas elas visam apenas que se evite o retrocesso nas aprendizagens do aluno, aumentando a perda do vínculo escolar e consequente aumento da evasão e abandono. Isso está escrito lá no artigo 3º, vale conferir. Segundo ponto que queria destacar com vocês é sobre as formas e tempos de interação com seus alunos. Vocês podem e devem usar o maior número de meios digitais possíveis (WhatsApp, Telegram e as ferramentas do Google) e nesse tempo orientem os alunos sobre como resolver as atividades, enviem vídeos e tirem dúvidas. Bom colegues, terceiro ponto, essas atividades que os alunos deverão fazer são Blocos de Atividades, divididos por temas. 

Você deve estar se perguntando: “Riler, como assim temas? Isso não vai engessar meu trabalho demais?”. Calma, já explico. Olha, todos os alunos vão receber as atividades impressas porque é o único modo de acessar a todos. Por isso, o foco de vocês deve ser construir esses blocos de atividades. O primeiro deles foi elaborado por nós, da assessoria pedagógica aqui no Cenfop3, teve como tema “Aedes Aegypti em foco” e valerá pelo período de 15 a 28 de junho. Aí você deve estar se perguntando: de onde nós tiramos essa ideia? A gente discutiu muito e decidimos ser temático pelo motivo simples de que nós acreditamos que as atividades deveriam dialogar com os tempos de isolamento que estávamos vivenciando, mas também que fosse significativo para o aluno (a famosa aprendizagem significativa). A gente fez esse primeiro justamente para ser um modelo, um padrão para os outros, até porque não sabemos quanto tempo a pandemia irá durar. 

Último ponto que queria discutir e comunicar a vocês hoje é sobre o Currículo. Ora, a gente vinha numa discussão sobre Base Nacional Comum Curricular – BNCC e Currículo Comum de Minas Gerais já fazia algum tempo, mas nós ainda não tínhamos o Currículo do Município finalizado e um currículo é sempre um processo de seleção e construção. Então, tivemos que pegar o Currículo usado na rede estadual e fazer algumas adaptações para a pandemia, para esse modelo remoto. Sendo assim, vocês receberão esse Currículo com algumas habilidades e objetos de conhecimento tachados, ou seja, não serão trabalhados de maneira remota. Vou explicar melhor: a gente da assessoria pedagógica acredita que existem algumas habilidades que são impossíveis ou inviáveis de se trabalhar remotamente. Habilidades que envolvam discussão, debate ou determinado tipo de aprofundamento são praticamente impossíveis de trabalhar de modo remoto. Eu escrevi para vocês os critérios que usei para excluir determinadas habilidades, veja no início do documento. 

Bom colegues, é isso por hoje. Espero ter sanado algumas dúvidas e angústias. 

Um abraço, 

Riler B. Scarpati 

 

A carta acima foi um apanhado do que fizemos no encontro de formação de professores que tivemos no dia 18 de junho, em que eu e meus colegues de história nos reunimos virtualmente para explicar a retomada das aulas remotas. Cada assessor, de cada componente curricular, criou um grupo no WhatsApp e uma sala de aula do Google para comunicar com os respectivos professores e deixei claro a eles que podiam me mandar mensagem com dúvidas que eu responderia. Nós queríamos que ficasse bem nítido que nossa proposta era a construção coletiva, que não tínhamos compromisso com o erro e que muitas questões eram incertas ainda devido à excepcionalidade do momento. O leitor deve imaginar que “choveu” de mensagens para mim questionando uma série de demandas.  

 

 

 

Ipatinga, 15 de julho de 2020 

Prezado Riler, 

 

Nós4, seus colegas professores de história, queríamos compartilhar algumas das angústias, questionamentos e frustrações sobre as diretrizes adotadas nesse período de aulas remotas. Então, você vai ter que nos escutar agora. 

Primeiro lugar, você falou que nós tínhamos que nos preocupar em elaborar os blocos de atividades e organizar os grupos das salas em ferramentas digitais como o WhatsApp e o Google Sala de aula. O problema é que meu telefone fica praticamente 24 horas por dia recebendo mensagem de aluno, estamos ficando doidos com isso. Aluno mandando mensagem a todo tempo, querendo um milhão de coisas, como que a gente faz, Riler?! Disseram na escola que é para nós arrumarmos um novo número e usá-lo só no horário de trabalho e que não é para respondermos fora do horário de nosso trabalho, é isso mesmo?! 

Outro ponto, hoje a equipe de coordenação da escola veio me falar que a assessoria pedagógica da Secretaria de Educação esteve aqui e disse que minhas atividades não estão alinhadas ao tema, como assim?! Vão dizer que o que sempre fiz está errado?! Que minhas atividades não servem?! Você disse que nossa tarefa era elaborar as atividades e enviar à coordenação da escola e que todo o resto seria função deles, certo?! Então, como assim não posso usar atividades de anos anteriores?! E, pior, disseram que minhas atividades não correspondem às habilidades do Currículo. Não estamos gostando disso. 

Riler, não leve a mal nossas reclamações, a gente sabe que é difícil estar na sua posição aí, mas veja o que pode fazer por nós. 

Um abraço 

Professores de história de Ipatinga 

 

Esses foram os primeiros questionamentos que recebemos de modo geral sobre a proposta de atividades remotas por meio dos Blocos de Atividades. Uma das questões que havíamos discutido na assessoria era sobre como essas atividades deveriam ser feitas e em que se basear. Antes de propormos este modelo, tínhamos analisado o que a Secretaria de Estado de Educação de MG tinha feito no seu Programa de Estudos Tutorados – PET e queríamos justamente o contrário. Queríamos que o professor fosse um autor de sua aula, que ela tivesse traços autorais, que as atividades propostas não fossem apenas um “copia e cola” de livros e de anos anteriores. 

 

 

 

Ipatinga, 22 de julho de 2020 

Prezades colegues professores de história, 

 

Colegas, realmente a construção desses primeiros Blocos de Atividades, devido à urgência do momento, ficou atribulada e alguns questionamentos são recorrentes. Acolho várias de suas críticas e gostaria de nesse encontro evidenciar melhor o que estamos chamando de Bloco de Atividade e como construí-lo, ou seja, quais parâmetros vocês devem usar. 

Um dos eixos do Currículo Referência de Minas Gerais – CRMG são as habilidades dentro de cada componente curricular. Aqui, a gente precisa diferenciar o que são essas habilidades do componente curricular com as habilidades básicas de leitura (cujo nome técnico é “descritor”). Estes descritores nós nos apropriamos de avaliações externas como a Prova Brasil (INEP/MEC) e Simave (SEE/MG) e que também são aplicados na nossa avaliação interdisciplinar sistêmica aqui na rede municipal de ensino, que chamamos de Simulado. 

Ainda em relação aos exercícios que farão parte do Bloco de Atividades, estamos fazendo um alinhamento em relação à quantidade de itens ou questões, para que não ocorra problema de professores com poucas aulas semanais darem mais atividades que aqueles que tem mais aula. Agora com relação ao tema, o ponto principal é: vocês devem criar as atividades e os exercícios a serem colocados no Bloco de Atividades. Gente, hoje com a quantidade de informações disponíveis sobre todas as áreas e componentes curriculares disponíveis em vários meios e formatos, é muito difícil fazer algo significativo para os alunos. Por isso a opção pelos “temas” nos Blocos de Atividades, para que seja algo autoral, que tenha a sua marca enquanto professor para seus alunos. É óbvio que vocês podem utilizar suportes textuais disponíveis na internet e em livros, o mais importante é a proposta do que ensinar, que isso seja algo que tenha a ver com você e com o que você acredita. É isso que queremos. 

Um abraço 

Professores de história de Ipatinga 

 

Após esse encontro, nossos objetivos parecem ter se tornado melhor compreendidos pelos colegues de história. A dinâmica prossegui desta forma pelos meses de julho a novembro. Sempre íamos às escolas fazer a conferência do trabalho dos professores, corrigindo os Blocos de Atividades e orientando o modo de como fazer. De fato, foi um trabalho em que precisávamos “dar a cara pra bater”, afinal era um trabalho de rotineiro, de fazer e refazer, mas que cujo objetivo deveria sempre nos guiar na ação cotidiana. Somente em novembro, houve novidade. 

 

Ipatinga, 18 de novembro de 2020 

Prezado Riler, 

Nós5, seus colegas professores de história, formos informados de que foi publicada uma Resolução (08/2020)6 pela Secretaria Municipal de Educação com os critérios para progressão dos alunos do ensino fundamental. Temos algumas dúvidas que queríamos compartilhar. 

Pelo que entendemos, o ano letivo continuou com 3 etapas letivas, totalizando 100 pontos, mas todos terão nota mínima de 60 pontos, ou seja, todos serão considerados aprovados e vão progredir para o próximo ano/série letivo. Ok, mas se vai ser assim, para que teremos que pontuar cada um dos 12 (doze) Blocos de Atividades com pontuação diferenciada em muitos deles? Imaginamos que seja para valorizar um pouco o esforço dos alunes e famílias que tiveram compromisso com as atividades ao longo desse período, certo?!  

Lá no capítulo II “Do currículo e da recuperação da aprendizagem” está escrito que a rede municipal de ensino de Ipatinga trabalhará com um continuum curricular 2020/2021, o que se quer dizer com isso? Pelo que entendemos, as aprendizagens que os alunes não tiveram de maneira satisfatória em 2020, por exemplo no 6º ano, terão que ser contempladas no 7º ano. Ou seja, no 7º ano existe um objeto de conhecimento nomeado “Reforma religiosa: a cristandade fragmentada”, como vou trabalhar esse objeto se ele não aprendeu de modo satisfatório o surgimento da cristandade no 6º ano? Por isso, devemos “voltar” ao 6º para dar prosseguimento ao 7º? Isso é o continuum curricular? 

Um abraço 

Professores de história de Ipatinga 

 

Algumas das respostas aos questionamentos finais dos colegues professores foram respondidos de modo pontual e não sistemático, ou seja, não houve encontro de formação com os colegas para sanar essas dúvidas finais. O ano letivo, conturbado por excelência, se encerrou em 22 de dezembro de 2020, cumprindo oficialmente, por meio dos Blocos de Atividades, as 800 horas anuais de aula previstas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 

O raro leitor pode estar se perguntando o porquê de escrever esse texto praticamente um ano depois de tudo ter se encerrado faz tanto tempo? É um texto desatualizado, ao olhar de muitos. Mas a questão é que, pelo menos para mim, essa experiência foi extremamente marcante e continua sendo, um passado que não passou, seja pelo ineditismo ou seja pelas dificuldades e desafios impostos; desafios estes que não se esgotaram com o retorno das aulas presenciais neste 2021 na maior parte do Brasil e com as incertezas para o 20227. 

 

 

 


NOTAS

1 Agradeço à minha amiga Camilla Cristina Silva pela leitura atenta e pelos comentários sempre inteligentes que contribuíram na formatação final deste texto.

2 Disponível em: <https://www.ipatinga.mg.gov.br/abrir_arquivo.aspx?cdLocal=12&arquivo={B1CDC030-DEAC-BD2C-CC35-B36EDEBB47DB}.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021.

3 Centro de formação pedagógica da Secretaria Municipal de Educação. Espaço voltado para formação de professores e fica em outra região da cidade, já que a Secretaria de Educação fica na Praça dos Três Poderes, no centro.

4-5 Evidentemente, que a carta dos professores de história não se refere a todos os professores da rede municipal. Tentei reunir os argumentos e questionamentos dos que se manifestaram de algum modo

6 Disponível em: https://www.ipatinga.mg.gov.br/abrir_arquivo.aspx?cdLocal=12&arquivo={57BBDACA-B7DE-8CE1-7C2E-D4CE5857E1E6}.pdf#search=%22resolu%C3%A7%C3%A3o%22. Acesso em: 13 dez. 2021.

7 PALHARES, I. Sete estados não definiram se retomam aulas presenciais para todos em 2022. In: Folha de São Paulo (on-line). 08 dez. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/12/sete-estados-nao-definiram-se-retomam-aulas-presenciais-para-todos-em-2022.shtml. Acesso em: 13 dez. 2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Agência Brasil.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Riler Barbosa Scarpati

Doutorando em história pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, com bolsa Capes. Pesquisa memória, arquivos, museus e ensino de história. Professor há 17 anos. Possui experiência na educação básica e superior, em espaços não formais como museu.

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