Escolher o que lembrar, o que esquecer. Como algumas pessoas conseguem fazê-lo tão facilmente? Esse foi o principal questionamento diante dos eventos políticos mais recentes. A memória existe, basta procurar; por quê, então, insistir no esquecimento? Eu não entendi, fiquei apenas olhando sem acreditar que o cenário permanecia, em diversos aspectos, o mesmo. Quatro anos, e ainda me sentia em 2018. Depois de tudo, já precisava lidar com recém-chegada angústia. O jogo da memória e do esquecimento rapidamente me tomou os pensamentos; seletiva seria pouco para descrever a memória que ressurgiu em proporção não esperada, depois de tudo. Mas a memória, ou a narrativa, havia pulado todos os sinais para parar e observar, segiu desenfreada. Que memória é essa? Ou melhor, que esquecimentos são estes, e de onde vêm?
Raïssa de Góes é natural do Rio de Janeiro, onde vive e trabalha. Suas obras mesclam Artes Visuais, escrita e literatura, além de traços do Teatro, área em que atuou anteriormente. Raïssa produz no ateliê, mas é nas ruas que seu trabalho realmente acontece: observar, ouvir conversas e traduzir em arte. A obra para a qual eu gostaria de chamar a atenção é Memória/ Esquecimento, que tem como base o diário da escritora Katherine Mensfield (Nova Zelândia, 1888-1923); ao “apagar” – pintando de branco – o diário de Katherine, Raïssa visava criar um trabalho sobre a memória, mas logo percebeu que se tratava de um trabalho sobre esquecimento.
A página vazia ainda ressoava as marcas das palavras. Nas palavras da artista, o esquecimento deixa rastros, deixa narrativas. O passo seguinte foi identificar qual narrativa o Brasil busca “apagar”, e que mantém ainda hoje seus traços. A artista se direciona às pessoas desaparecidas na época da Ditadura Militar no Brasil e na América Latina; as fotografias dos desaparecidos são passadas para o negativo e projetadas em um telão ou parede para o público durante um minuto, dando lugar em seguida à luz branca. O pós-imagem permite que o espectador veja os rostos das pessoas, que se tornam memória aos olhos de quem vê o negativo da fotografia – que pode ser interpretado como os traços do esquecimento – algo que delineia a forma de um indivíduo, mas não em seus detalhes, sua identidade e temporalidade.
Uma série de outras questões poderiam ser colocadas para serem apresentadas na obra, como sabemos. A questão abordada por Raïssa é motivo constante de preocupação, muito em função de seus fortes traços de permanência e pelo espaço de tempo – médio a curto – em relação à contemporaneidade. Gerações que viveram os anos de chumbo nem sempre têm a real dimensão dos desaparecimentos, abrindo a porta para o esquecimento sem ao menos ter contato com a memória. Acredito que a angústia que senti diz respeito mais ao esquecimento consciente; aquele que viveu, mas escolheu esquecer tendo como base um mesmo posicionamento parado no tempo. Uma memória que não se move, não olha para os lados. Felizmente, tivemos bons avanços; representatividades indígenas, negras e LGBT’s ocupam os espaços políticos, e esse foi o alívio. O respiro do fim de semana é a esperança de uma consciência coletiva. Sigamos na luta.
REFERÊNCIAS:
A arte de Raïssa de Góes. In: Revista Cassandra. 1 de out, 2021. Acesso em 03 de outubro de 2022. Disponível em: https://revistacassandra.com.br/a-arte-de-ra%C3%AFssa-de-g%C3%B3es-7a16b7e8b483
Raïssa de Góes. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 03 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/pag/raissa-de-goes/
Créditos na imagem: Diário (2007-2011). In: Raïssa de Góes. Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 03 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/pag/raissa-de-goes/
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Paula de Souza Ribeiro
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