FREUD E O DIABO NAS MEMÓRIAS DE SCHREBER: aspectos da relação entre o mal e o ódio na paranoia.

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O tema do ódio tem se tornado muito presente em tempos furiosos como o nosso. Nesse ensaio [1] se desenvolve uma reflexão que procura contribuir com anotações freudianas clássicas, para dar mais densidade ao debate. Trata-se de um reflexão exploratória da história cultural dos significantes sobre o mal e do ódio, analisados em diferentes aspectos em casos clínicos da relação do paranoico com o Outro, tomando como foco a função do mal(-estar) e do ódio na lógica do delírio. Para tanto, recorta-se trechos das Memórias de Schreber (1995) que encenam o mal-estar na paranoia, a fim de aproximar o leitor da expressão literária de “um doente dos nervos”. Pensamos assim vislumbrar os mecanismos da operação delirante acionando os signos elencados aqui para a análise: mal, ódio, diabo. Percorre-se este trajeto procurando na obra de Freud, as operações teóricas psicanalíticas que buscam dar conta e explicação dessas operações psíquicas em foco.

Schreber relata que na sua relação com Deus[2], um processo de purificação[3] era realizado para apreensão do que designava como a língua fundamental. No inferno, as almas submetidas a esse processo eram denominadas por diversos tipos de figuras diabólicas, como satãs, diabos, diabos auxiliares, superiores e inferiores:

Os diabos, quando feitos como “homens feitos às pressas”, tinham uma cor peculiar (vermelho-cenoura) e um peculiar odor repugnante que eu próprio pude constatar em muitas oportunidades no chamado Sanatório Pierson que denominei de “cozinha do diabo” (Schreber; [1903]1995, p. 38).

Freud, na carta 57 endereçada a Fliess (FREUD; [1897] 2007), expressa peremptoriamente seu interesse na história do diabo e em sua significação cultural. Onze anos mais tarde sua afirmação ganha uma nova dimensão teórica quando atesta que “o diabo é a personificação da vida pulsional inconsciente reprimida” (FREUD; [1908] 2007). Mais ainda, o reconhece no campo figurativo da inquietante estranheza (FREUD; [1911] 2007), como representante paterno (FREUD; [1923] 2007) e, finalmente, como encarnação do mal (FREUD; [1930] 2007).

Assim a equação freudiana considera que o mal pode se exteriorizar como ódio, tendo em vista que entre o paranoico e o Outro há o ódio, na função de enlace. O ódio, ao ser endereçado, pode viabilizar a amarração de significantes que tornam um laço possível, não sem mal-estar. Não é à toa que, em sua análise do caso Schreber, Freud vai explicar com detalhes, não só a defesa que o paranoico utiliza diante da castração, mas como o afeto de ódio está presente no laço do sujeito com o Outro.

Mas quem foi Schreber? Um juiz de alta cultura, ilustrado em alta literatura. Entre suas citações prediletas encontra-se Fausto de Goethe, da qual se refere reiteradamente no “roubo de almas”, justamente para apresentar seu conceito de “assassinato de almas”. É com essa referência que escreve sobre o diabo, uma figura que se apodera das almas e que, ao contrário do que comumente se pensa, não é inimigo de deus. É nessa passagem que Schreber revela também que o Dr. Flechsig, seu médico psiquiatra, teria “sido”, no século XVIII, um tipo de “diabo auxiliar”.

Na sequência de suas Memórias, Schreber fala sobre a “Cozinha do Diabo” como o lugar no qual “foram cometidos os milagres mais absurdos e desatinados” e salienta que “em nenhum outro período houve tamanha profusão de “homens feitos às pressas”. Em sua transferência para o Hospital Sonnenstein,  as  vozes  denominavam  seu  quarto  de “castelo  do diabo”. Com a expressão, “o diabo passa pela porta da fechadura”, Schreber explica que os “fios dos raios” os alcançam sem nenhum obstáculo físico.

Recuperando a questão inicial, pode-se questionar sobre a função do significante diabólico no laço do paranoico com o Outro – no que se refere ao mal-estar evidenciado no objeto persecutório – como lugar de exteriorização e figuração do ódio. Freud vai demarcar nesse domínio, em toda sua obra, a necessidade de lidar com a gênese da consciência moral no campo do mal-estar. Reconhece a consciência moral como fonte de angústia, quando discorre sobre as neuroses de angústia ([1895] 2007). Ao retomar, em outro texto, a questão das neuropsicoses de defesa ([1896] 2007), Freud reitera que os “escrúpulos da consciência moral” são reiterados no campo defensivo primário e atribuídos à representação obsessiva na formação do sintoma. A título de diagnóstico diferencial, uma comparação entre neurose obsessiva e paranoia se circunscreve, no  primeiro caso, em torno da “desconfiança  de  si”, e no segundo, por efeito da projeção, na “desconfiança contra os outros”.

Em Totem e Tabu a natureza e a gênese da consciência moral são investigadas. É na consciência moral do tabu que se situa a forma mais antiga do fenômeno da consciência moral como “a percepção interior de que desestimamos determinadas moções de desejo existentes em nós”. Portanto, a angústia é da consciência moral, de suas fontes inconscientes que determinam o sentimento de culpa pelo desejo e, por isso, “é provável que também a consciência moral nasça sobre o solo da ambivalência de sentimentos” (FREUD; [1913] 2007, p. 73).

O estudo empreendido por Freud sobre a consciência moral se amplia ainda mais, e em 1914, com Introdução do Narcisismo (FREUD; [1914] 2007), texto capital para compreender a psicose, esta noção é utilizada para analisar o delírio de ser observado a partir de sua aproximação com o conceito de ideal do eu. Para Freud, a formação do ideal é tutelada pela consciência moral e agenciada pela chamada voz da consciência[4].

No caso da paranoia, essa “instância censuradora”, a consciência moral “o enfrenta então em uma figuração regressiva como uma intromissão hostil[5] de fora” (p. 93), o que faz coincidir a autocrítica com a observação de si. Análise retomada na 26ª Conferência, em 1917, quando Freud afirma que a instância observadora é o que chamamos de  censor  egóico  ou  consciência  moral:

é  a  mesma  que  nas  noites  exerce  a  censura sobre os sonhos, e da qual partem as repressões das moções de desejo proibidas. E quando, no caso do delírio de observação, ela se decompõe, nos revela que provém da influência dos pais, dos educadores e do meio social, da identificação com algumas destas pessoas modelo (FREUD; [1917] 2007, p. 390).

O que Freud vai deixando claro, na sequência de seus textos que abordam a consciência moral, é que esta instância crítica é função do ideal (do supereu) e no caso da paranoia, pela via projetiva, é reconhecida como vindo desde fora, sem deixar de exercer sua função na formação dos ideais e identificações. A consciência moral é efeito de um laço social, efeito de um enlace do sujeito com o Outro. É por isso que, em Psicologia das Massas e Análise do Eu Freud vai ser categórico ao afirmar que “o núcleo da chamada consciência moral é a ‘angústia social’” ([1921] 2007, p. 71) e em 1923, com O Eu e o Isso a noção de consciência moral ganha sua dimensão alteritária transformando- se no “império do supereu”, pois “a gênese da consciência moral se enlaça de maneira íntima com o complexo de Édipo, que pertence ao inconsciente” ([1923] 2007, p. 53), o que pode fazer desta instância uma agência castigadora e injuriosa. A instância do supereu revela, como nos diz Lacan ao comentar o “Diabo Enamorado” de Cazotte, sua forma terrorífica (LEITE, 1991).

Nas Novas Conferências Introdutórias, Freud ([1933] 2007) realiza uma reformulação da noção de consciência moral a fim de situá-la em sua segunda tópica. O supereu será a instância estrutural com a função do ideal, da observação de si e da consciência moral, originada por formação reativa diante da angústia de castração e o sepultamento do complexo de Édipo, como já expresso em O Eu e o Isso. Freud então separa três variações da angústia em conformidade aos três tipos de vassalagem do eu: 1. Realista – Mundo Externo; 2. Neurótica – do Isso; 3. Da Consciência Moral – Supereu.

O sentimento de culpa é efeito da consciência moral. Com Colette Soler elucidamos com maior clareza o papel da consciência moral na paranoia a partir do reconhecimento de que a perseguição aponta uma falha, mas uma falha no Outro, o que o faz existir, assim, o “inocente paranoico” “não é culpado, mas perseguido” (SOLER; 2007, p. 53). Ou seja, “essa rejeição da culpa é uma recusa em admitir no simbólico os significantes que constituam vestígios da implicação do sujeito” e então “a culpa foracluida lhe retorna do exterior, sob a forma de censuras que os outros supostamente lhe dirigem” (p. 58). Esse endereçamento que o sujeito paranoico atesta, em sua certeza, vir do Outro em sua direção é o que Sonia Alberti afirma: “Onde o Nome-do-Pai falta, o Outro não barrado é o supereu, que exige um gozo do sujeito; um gozo imperativo que retorna no ponto em que falta o gozo fálico” (2009, p. 112).

Nesse sentido, podemos aproximar a noção de kakon (inimigo interior) com os efeitos da foraclusão dos significantes advindos da formação da consciência moral. Nos três momentos nos quais Lacan fala do kakon ele se refere ao caso Aimée. Mas será em A Agressividade em Psicanálise que a noção de kakon se liga à consciência moral quando se localiza “o extremo arcaísmo da subjetivação de um kakon no campo original da “formação primária do supereu” (Lacan; [1948] 1998, p. 119).

Lacan alerta sobre a importância teórica de reconhecermos o supereu como um ideal da consciência moral, que sua “opressão insensata está na raiz dos imperativos motivados da consciência moral” ([1948] 1998), assim como seu núcleo real ([1956] 1999). Contudo, é em sua tese sobre Aimée que Lacan nos dirá que o avanço teórico de  seu estudo sobre a psicose paranoica demonstrou que a paranoia é “um modo reacional da personalidade”, ou seja, “um conflito da consciência moral” ([1936] 1997, p. 348).

No caso de Schreber, vimos como a forma terrorífica do supereu torna-se diabólica, fazendo com que o objeto a que Schreber traz em seu bolso determine seus atos por meio das vozes (da consciência moral) que legitimam um destino. Destino este na construção de uma metáfora delirante.

O ódio, em sua origem tão complexa, se situa na fenda entre o Real e o Imaginário (LACAN; [1953] 1979) – no lugar do ato fundador do sujeito (LACAN; [1967] 2018a) – e também no lugar do gozo do Outro (LACAN; [1974] 2018b). Na paranoia, esse laço odioso permite que o Mal-Estar retorne ao ato de fundação do sujeito e inaugure uma nova amarração capaz de construir um sinthome, quando permite uma passagem do diabólico ao simbólico, no sentido mesmo que nos fala do diabolus como o princípio deste mundo  que o simbólico vem completar.

Em História do Diabo o filósofo Vilém Flusser (2006) propõe uma instigante leitura do significante diabo como aquilo que instaura o tempo e o espaço. Reconhece o diabo como idêntico à  língua  e esta como  um “véu  na  superfície  da  intemporalidade”. Propõe  uma  reflexão sobre a travessia necessária que parte do diabólico em direção ao simbólico, pois o diabo “nada na correnteza do tempo, quiçá a dirige, ele é histórico no sentido estrito do termo”. Na paranoia de Schreber diabolus veio no real convocá-lo a tecer sua metáfora delirante, a simbolizar o ódio, numa reconciliação com o Outro que partiu do diabólico em direção ao simbólico.

Pode-ses concluir que, longe de uma visão maniqueísta, a investigação sobre o ódio revela e realça a economia pulsional, permitindo analisar sua função e seus caminhos e contemplar a investigação sobre a criação, delirante ou não, que o sucede. Para tanto, é necessário não esquecer de voltar às formulações sobre o supereu para reintroduzir as questões sobre o ódio na constituição do sujeito. Pois, como é sabido, o ódio endereçado à mãe e ao pai segue seu destino, após o sepultamento do Complexo de Édipo, postulado fundamental da teoria freudiana.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALBERTI, Sonia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.

FLUSSER, Vilém. A história do diabo. São Paulo: Annablume, 2006

FREUD, S. [1985]. Projecto de psicologia. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1896]. Nuevas puntualizaciones sobre las neuropsicosis de defensa. O.C. Vol. III. 1. ed. 9. reimp. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1897]. Carta 57. O.C. Vol. I. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1908]. Caráter y erotismo anal. O.C. Vol. IX. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1911]. Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia descrito autobiográficamente. O.C. Vol. IX. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1913]. Tótem y tabú. O.C. Vol. XIII. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1914]. Introducción del narcisismo. O.C. Vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1917]. 26ª Conferência. Conferencias de introducción al psicoanálisis. O.C. Vol. XVI. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1921]. Psicología de las masas y análisis del yo. O.C. Vol. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1923]. El yo y el ello. O.C. Vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1930]. El malestar en la cultura. O.C. Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

___. [1933]. 31ª y 32ª Conferencia. Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis. O.C. Vol. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

LACAN, Jacques.  [1936]  Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987

___. [1948] A agressividade em psicanálise. In, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (pp. 104-126).

___. [1953] Os Escritos Técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1979.

___. [1956]. O Seminário. Livro 3: As Psicoses. Rio de Janeiro, Zahar, 1999.

___ [1967] A lógica da fantasia. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2018a.

___. [1974] Os não-tolos erram / Os nomes do pai. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018b.

LEITE, Marcio P. Souza. O Deus odioso: psicanálise e representação do mal / O Diabo amoroso. São Paulo: Escuta, 1991.

SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

SOLER, C. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

 

 

 


NOTAS

[1] Texto em homenagem póstuma à psicanalista Adriana Cajado Costa (1973-2012).

[2] Havia um deus superior Ozmud e um deus inferior Ariman.

[3] Os termos purificação e punição são utilizados como sinônimos nas Memórias de Schreber (1995).

[4] Não é à toa que no caso de Schreber as vozes que lhes chegam para atestar sua missão. Freud ainda nos alerta que a única vez que Deus falou diretamente com Schreber, sem intermediários, foi para lhe injuriar, insultar moralmente. (FREUD; [1911] 2007).

[5] O objeto hostil é, simultaneamente, o primeiro objeto de satisfação (FREUD; [1895] 2007), mas no caso da psicose, a não extração do objeto a, faz o sujeito ocupar o lugar de objeto e assim retomar sua face hostil, em decorrência da foraclusão do significante primevo.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Capa do livro “MEMÓRIAS DE UM DOENTE DOS NERVOS”, de Daniel Paul Schreber.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Alexandre Fernandes Correa

Sociólogo com formação pós-graduada em Antropologia Cultural. Professor Associado na UFRJ-Macaé.

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